tarântulas fiéis
I (4/8/2007)
(Jane Russell, Hollywood Golden Age)
Estranho é o
piso do hospital. Aranhas
escondem-se nos
cantos e suas teias
recobrem
tijoletas, marcas feias
que já caçaram
tantas artimanhas.
Não sei quem fez
escolhas tão estranhas:
não é que sejam
feias, são enleias
a prender-nos os
pés, imóveis peias,
as teias verdes,
em impressões tacanhas.
Diziam, quando
ergueram o hospital,
que quem
entrava, ficava emaranhado,
para não sair
mais... teias famintas!...
Há quantos anos
que não me fazem mal!
Aranhas mudas,
inertes, no isolado
urdir de teias
feitas só de tintas...
tarântulas fiéis II (6/8/2007)
a dama clara de negros cabelos
decidiu ser estéril, mas ansiando
cuidar de um filho, com gentis desvelos,
e por solteira ser, não desejando
adotar um nenê, tomou a peito
apossar-se de um jovem, procurando
adquirir sobre ele algum direito,
o seu amor de mãe assim mostrando.
achou nele o que em filho não podia
e assim uniu-se com tal adolescente,
mútua maravilha se achou na situação;
teceu-lhe a teia e feliz achou-se; todavia
em seu casulo ele cresceu e, indiferente,
sugou-lhe dela ao
contrário o coração.
tarântulas fiéis
III – 18 mar 2023
Ela insistiu em
construir sua teia
no meio de uma
tenda de lençóis,
sem haver lona,
somente girassóis;
por filamento, de
sangue usou uma veia.
E nesse sangue
menstrual se enleia
a geração
indolente dos anzóis,
frescas marés ao
longo dos faróis,
lulas pescadas na
artéria de uma peia.
Teias volutas de voluptuosos
caracóis,
amendoados e com
duplas antenas,
enovelados em
gosmentos festivais,
grossas lianas
refletindo os arrebóis,
enquanto entrelaçava
em suas dezenas
novelos cinza de
nuvens estivais...
tarântulas
fiéis IV
As tarântulas de fato não te assustam,
não têm veneno para fatais picadas,
presas humanas não foram devoradas,
senão em pesadelos que te custam
horas de sono e que depois te frustram,
o rosto sobre fronhas ensopadas,
os lençóis e as sombras sudoradas,
formando a teia em que firme te ajustam.
Pois as tarântulas de teus pesadelos
são mais fiéis que as encontradas no caminho
e que por ti demonstram ter mais medo,
enquanto os beijos daquelas marcam selos,
em sua gosma pegajosa de carinho,
sempre escondendo de ti qualquer segredo.
tarântulas fiéis V
As tarântulas humanas têm veneno,
com o qual os aracnídeos nos sonharam,
mas para si de fato não caçaram,
sem transformar-nos em seu jantar pequeno.
Essas tarântulas porém com que te aceno,
por ambição ou por maldade retiraram
nada mais do que quanto precisaram
e realmente nem a estas eu condeno.
Porque faz parte da humana natureza,
preocupar-se diariamente com o futuro,
acumulando para si um certo bem
e se te tratam com maior vileza
é que suspeitam em ti desejo impuro
que o sumo delas queiras sugar também.
tarântulas fiéis VI
Há mais tarântulas pela sociedade
do que se poderia imaginar,
em mil casulos a te arrepanhar,
para sugarem, na maior tranquilidade,
quanto podem retirar de tua vaidade,
quanto beber de teu orgulho singular;
são tuas amigas a te acompanhar
até o momento da singularidade,
quando descobrem nada teres mais
com que possam alimentar seu apetite,
então das teias a casca tua desprezam
e ficam no monturo com as demais,
triste monturo que mesmo um rato evite,
enquanto com pudor suas preces rezam.
tarântulas fiéis VII – 19 mar 2023
Também existe a tarântula em mulher,
que quer prender em torno de sua teia
a quem por ela de desejo se incendeia,
para fazer depois quão bem quiser.
Encasulado será raro alguém perder
ou escapar-se da teia em que se enleia,
embora se saiba emaranhado em teia,
talvez não queira se libertar sequer!...
Que tal amor é uma liana pegajosa
e é muito raro quem libertar-se alcança,
mesmo após gasto o casulo, fica perto,
em sua esperança meio temerosa
de que será renovada essa aliança,
por ter-se exposto de coração aberto.
tarântulas fiéis VIII
De igual modo, da tarântula existe o macho,
muito pequeno o criou a natureza,
mas que na espécie humana, com certeza,
se comporta para as fêmeas como um facho
de atração, tendo de dinheiro um cacho
que assim o reveste de artificial beleza,
que tarântulas atrai à teia presa
e sobre elas caminha qual capacho.
Esses que julgam tecendo estar sua rede,
recaem nas malhas da rede represadas,
até que alguma o macho atinja bem certeira
e em seu tesouro satisfaça a sede,
dele restando só memórias ressecadas,
que a tarântula mais fiel é a derradeira.
tarântulas fiéis IX
Qualquer que seja das tarântulas o sexo,
elas se prendem de uma teia aos fios,
os filamentos da liana igual que cios,
as espirais qual bastidor conexo.
Nessa atração do mais arcano nexo
são os grilhões e cadeias bem esguios,
num palpitar de juramentos frios,
no sibilar mais traiçoeiro de um amplexo.
Ambas se prendem em idêntico baraço,
não é à toa que se fala em enforcamento
ao referir-se em troça ao casamento,
juntas armando da rede cada traço,
nela se prendem em igual consentimento,
na construção afinal do mesmo espaço.
tarântulas fiéis X – 20 março 2023
A pouco e pouco tal casal amplia
da rede mútua constritoras malhas,
seus filhos encapsulados nessas talhas,
talvez seus netos nessa mesma fantasia.
Ou então um par em outra tenda inseriria,
por insidiosas que sejam as suas falhas,
que na família da mulher é que te entalhas,
nesse círculo sedicioso que se cria.
Nem sempre são tarântulas famintas
de quantos se emaranham nessa rede,
âs vezes mesmo se mostram generosas,
porém te enleiam sem que sequer pressintas,
satisfazendo das emoções a sede,
que possam ser quiçá mais perigosas!
tarântulas fiéis XI
Mas além dessas, é o mundo vasta teia,
nos laços de uma empresa, de uma igreja,
no círculo da amizade que festeja,
nesse partido cuja ideologia nos ateia.
No futebol, a se vestir camisa e meia
desse time favorito quando enseja
um campeonato ou quando a gente beija
a taça prêmio de qualquer conquista alheia.
Bem mais difícil dessas teias escapar,
suas tarântulas lançam fios no teu caminho,
querem na rede também te conservar
e quem consegue o próprio leme manejar,
para si abrindo um espaço pequeninho,
só no tear da solidão se irá lançar.
tarântulas fiéis XII
Eis que toda a humanidade é teia só,
nessas fibras de deeneá entretecidas,
vem a teia de dentro de tuas lidas
e cada passo mais te aperta o nó.
E nem na morte te livras do cipó,
na teia da mortalha as despedidas,
nos cemitérios mil missões perdidas,
na teia de esqueletos o teu dó.
Não há tarântulas apenas no hospital,
saem contigo da maternidade
e te acompanham na maior fidelidade,
a cada instante de curta ou longa vida,
até ser dado o laço triunfal
em tua memória que a multidão olvida.
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