SOMBRA MINHA I -- 13 DEZ 2017
(Doris Day)
Eu me perco por aí e mesmo a Lua
mostra-se negra e me escurece o
rosto;
só me sobram as estrelas ao sol
posto,
enquanto marcho por minha senda
crua.
Até percebo que meu andar flutua
sob a luz estelar, qual sob o
mosto,
embriagado em lusco-fusco e
gosto,
tão só persigo uma sombra pela
rua.
Nem é que a veja em tanta
escuridão,
mas sei que ali passou mais de
mil vezes
e essa sombra é para mim estrela.
Por isso que a persigo em ilusão:
Oh, sombra amiga, nunca me
desprezes,
qual me esqueceu o antigo rosto
que te atrela!
SOMBRA
MINHA II
Existe
a sombra que se arrasta horizontal,
salvo
quando em diagonal sobre a parede
e
então depende da luminosa rede
do
Sol, da Lua, das velas, do torchal.
Antigamente
era a sombra mais leal,
mas
hoje à luz elétrica concede
sua
direção e permissão não pede
para
quem a projeta no beiral.
A
sombra dança como em Carnaval,
estroboscópio
oscilando na calçada,
em
lusco-fusco já tornado inatural,
em
que as halógenas já vencem o fluorescente
capenga
a sombra, a andar desordenada.
quais
siameses a fugir do incandescente.
SOMBRA
MINHA III
E
existe a sombra que é sempre vertical
e
que me espreita dos lugares por que passo;
em
vezes breves, procura o meu abraço,
porém
é tímida e hesita -- é natural
porque
ela vem de meu passado já mortal,
de
alguma forma prendida no meu laço;
algumas
vezes a persigo e mesmo caço,
e
então me foge qual donzela virginal.
Pois
essa sombra deixei quando passava
múltiplas
vezes pelo mesmo andar,
abandonada
quando entro em minha casa,
desconsolada
porque não mais estava
junto
de mim inteira em seu penar
e
então se evola em sopro como gaza.
SOMBRA MINHA IV
Mas andando pelas ruas a flutuar,
ela depara com suas similares,
as que outros deixaram nos
lugares
e o umbral da morte vieram a
atravessar.
Ela as evita, mas depois vai
encontrar
meu eu antigo dos velhos
caminhares;
elas se abraçam, reúnem-se
milhares,
torna-se forte esse meu duplo
singular.
Contudo, não dá sombra
horizontal,
somente se homizia nas sarjetas,
em emboscada por minha próxima
passagem.
Fazem contigo o mesmo, é natural,
mesmo que nunca percebas tal
miragem
a te encarar em súplicas
secretas.
COISAS
ÚMIDAS I == 14 dez 2017
Dionyso
é o deus das coisas úmidas
que
crescem desde a terra e que se espalham,
as
árvores e cereais que não nos falham,
fontes
de toda a nossa nutrição!
Dionyso
é o deus das coisas túmidas,
dos
órgãos mais sagrados que se encalham
uns
nos outros e em breve instante malham
até
o momento da sutil reprodução!
Dionyso
é também o deus do vinho,
da
embriaguez de toda a inspiração:
não
é meu ventre que abrigará criança,
mas
o meu cérebro no mágico azevinho,
a
parir de mil versos multidão,
da
própria vida a única esperança!
COISAS ÚMIDAS II
Não renego o dionisíaco senhor,
do santo espírito mais um avatar
que me preenche e faz em mim brotar,
de meu filtro de areia o sedutor.
Mas deus real, henoteísta seu
fulgor, (*)
cria gestalts perante meu olhar,
para em criança nova me emprenhar,
tão verdadeira como os filhos do
vigor.
(*) Deus supremo com atributos
subordinados.
Muito mais pura, sem haver mitose.
só do óvulo da mente traz gametas.
Por que é tão rara a verdadeira
poetisa?
Pois não precisa que Dionyso a
espose,
para outro par seus olhos lanças
setas
e então concebe como a luz e a
brisa.
COISAS
ÚMIDAS III
A
vida toda é feita de umidade;
vírus
e liquens, por mínima que seja,
nunca
prosperam, salvo quando esteja
a
seu redor o líquido que invade.
Dionyso
no-lo dá em saciedade,
vinho
de vento que a gotejar adeja,
vinho
de mosto que tua alma beija,
da
cor e som a imensa variedade.
Assim
recebo em mim esse avatar
e
também tu em cada ideia criativa,
nessa
maré de toda a sedução,
pincel
e pena, a música a tocar,
em
sua ânsia de amor a bela diva,
enquanto
a alma desgasta na ilusão.
TEMOR
DO VENTO I -- 15 DEZ 17
eu
tenho medo que o vento,
soprando
teus ossos finos,
te
leve a outros destinos,
muito
além do meu alento.
tenho
medo que ao relento
os
teus beijos cristalinos
se
tornem quais peregrinos
e
não mais me deem sustento.
tenho
medo de um portento
que
te leva a desatinos,
que
teus lábios coralinos
vão
algures num momento.
tenho
medo que, avarento,
o
tufão te arranque os pinos
e
te envolva nos seus hinos
para
meu desvairamento.
Como
eu tive teu provento,
que
teus olhos ambarinos
nunca
mais me tanjam sinos
pelo
amor que te acalento.
TEMOR
DO VENTO II
tenho
medo que o soprar
da
brisa mais delicada
te
levite como fada
pelas
nuvens a passar.
tenho
medo que o suflar
do
zéfiro tua carne amada
transforme
em quimera alada
pelos
sonhos a boiar.
tenho
medo que o cantar
do
minuano em madrugada
te
possua violentada
e
te possa engravidar.
em
ciclone se tornar
o
vento pode em manada
de
meus braços arrancada
sobre
a terra te espalhar.
toda
a tua vida ao azar,
em
corrupio aventada
num
turbilhão arrojada
sem
intenção de matar
TEMOR DO VENTO III
tenho medo que o assoviar
do nordestão já te invada
e te assopre, acabrunhada
até as bandas do mar.
tenho medo que o rasgar
da tromba d'água encharcada
te arrebate na alvorada
para nunca mais voltar.
te arranque de meu portal
com seus silvos te arpoar,
de fato, sem se importar
de causar dano real.
e nutro um medo total
de o coração te arrancar,
volúvel sopro encontrar
por mais que sejas leal.
medo desse vendaval
que amor saiba arrebatar
e nunca mais te lançar
no fundo de meu quintal.
TEMOR
DO VENTO IV
mas
se o vento despedaça,
voarei
atrás do vento,
sem
sombra de desalento.
nem
ferida que me faça.
e
se o vento me transpassa
no
desdém desse momento
serei
mago num portento
da
magia em plena graça.
que
do vento eu te refaça
para
meus beijos alento,
na
armadura me acalento
que
tua vida então abraça.
redimida
da desgraça
por
meu engrandecimento
com
corda de sentimento
minha
própria vida te enlaça.
do
vento a vencer a traça
na
adaga do pensamento,
tua
alma tomando assento
nesse
amor que nos perpassa.
PULSAR NOTURNO I -- 16 DEZ 17
Durante as noites soam atabaques,
ferozes mais que o vento, sons
frementes
a perturbar os corações dos crentes,
a entusiasmar descrentes nesses
saques.
As pancadas de gemidos são ataques
desmembradas pela noite, tons
urgentes;
são insidiosos esses toques quentes,
como presságios para alheios baques.
Eles quebram a Lua em mil pedaços
e as estrelas despencam, mal
pregadas
na sotaina da noite, deusa antiga;
são desses novos deuses os abraços,
as promessas de fomes decepadas
pelo som malevolente da cantiga.
PULSAR
NOTURNO II
Durante
a noite ressoa o atabaque,
invocando
os exus e os orixás,
Xangô,
Ogum, Oxóssi e os Oxalás
mais
entidades de menor destaque.
Também
no coração ocorre um baque,
talvez
de Iemanjá, talvez do aliás,
nessa
saudade dolente que nos traz
a
inspiração da adaga e a dor do saque.
Já
não sei a quais deuses eu invoque,
que
Afrodite também nasceu das águas,
fruto
da espuma sangrenta da serpente;
talvez
por isso os corações reboque,
deusa
mulher, azagaia de mil mágoas,
que
não me deixa ficar indiferente.
PULSAR
NOTURNO III
Em
outras noites, não escuto nada,
mas
acordado permaneço em atenção:
e
os atabaques, quando soarão?
Vão
acordar-me pela madrugada?
E
o som não vem. A alma perturbada
sente
sua falta como o furacão
que
as árvores decepa quando estão
semidesnudas
na estação gelada.
Nesse
ínterim só me pulsa o coração
cada
vez mais em batuque acelerado,
um
atabaque de meu sangue feito.
Surge
da mente a nova pulsação
ante
a falta desse ritmo assombrado
qual
abantesma que me faz sujeito.
PULSAR NOTURNO IV
Porque, de fato, não perturbam
atabaques
nesse seu ritmo de impulsão voraz,
mas tão somente a memória que me
traz
das atávicas lembranças em achaques.
Cem invasores em pérfidos ataques,
dentro da noite, suas flechas em
carcás,
pulsar de mim, doces lembranças más,
reservatório da alma em negros
baques.
Não é de fora que pulsa esse tambor,
um leve som fator desencadeante,
vindo do limbo, meu sono a devorar.
Meu coração um arquétipo de ardor,
nos corredores da mente delirante,
bumbos e rufos que não param de
soar!
SORTILÉGIO
I -- 17 DEZ 17
Eu
descobri que tinha e nem sabia
torçal
de linha vermelha no agulheiro.
Nem
sei porquê. Não tenho, por inteiro,
algo
encarnado que seja de valia.
Mas
lá se achava o torçal que eu esquecia,
vermelho
como o sangue de um janeiro,
escarlate
qual a dor de um ano inteiro
em
que pensei em ti e não te via.
Meu
coração é mesmo cheio de torçais,
de
fios verde-castanho, de meadas,
de
novelos e soturnos carretéis...
Porém
de ti meu coração jamais
conseguiu
desfazer, emaranhadas,
essas
tristezas que não te dão quartéis...
SORTILÉGIO
II
Puxei
a linha desse meu torçal.
Custou
muito a sair, fora enfiada
por
baixo de três voltas, enroscada,
que
não houvesse desenrolar casual...
A
ponta de uma agulha, em diagonal,
a
linha libertou numa emboscada;
guardei
a lança em atitude descuidada,
o
fio puxei sem pensar em qualquer mal.
Mas
eram veias em linha assim formadas
e
me pus a desfiar o próprio braço...
Só
que engrossara tal fio em percebia...
As
carnes do antebraço desfiadas,
nas
roscas do torçal, estranho abraço,
expondo
os ossos encardidos que lá havia.
SORTILÉGIO
III
Somente
isso o vermelho explicaria
porque
razão possuía um encarnado
torçal
de linha, firmemente enovelado,
que
para meu cerzir não serviria!...
Então
o braço contemplei, sem serventia
e
fui no cérebro buscar o seu cuidado;
refiz
a carne do membro decepado,
robusta
e bela, em nobre fantasia...
Porém
o cérebro gastou circunvoluções,
transformadas
em músculo e tendões ,
minhas
veias com neurônios completadas.
Sem
mais servir para nada de braçal,
mas
tão somente executando o anormal
traçado
de mil rimas encantadas...
SORTILÉGIO
IV
Só
percebi então que esse torçal
era
um nó górdio de senhas e de ideias,
chumaço
astuto de forja de epopeias,
linhas
vermelhas de arranhão carnal.
Linhas
de sangue no papel, em desvirtual
de
púrpura e escarlates assembleias,
meu
plasma a jorrar prosopopeias,
vermes
da vida de cunho sanguinal.
Talvez
alguns escrevam por deleite,
mas
sempre nos meus versos exsanguino
e
ainda assim, devoto-me à tortura
desse
torçal de mim, fluido azeite,
cada
ferida exalando sangue fino
que
se desdobra em falsidade pura...
William
Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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