desânimo I
–12 FEVEREIRO 24
(Sylvia Sidney, musa do cinema mudo)
sou o primeiro,
como de costume.
vejo o mundo a
mover-se ao meu redor
e só espero,
envolto no labor
que a mim mesmo
me impus, este curtume
dos couros de
minha boca sem perfume,
dos sons
imóveis da mais pura dor,
das muitas
cores que pintam desamor,
matéria-prima
em que emprego até estrume.
tudo me serve,
nada me é interdito:
os temas
desprezados se acomodam
e os esculpo,
em termos de ironia...
e nestes
versos, sem sabor bendito,
eu teço o
inesperado em que se açodam,
no mesmo baile,
a glória e a agonia.
desânimo II
trago no colo uma porção de exames
que nem examinei... que diferença
irá fazer em mim saber da extensa
ou da curta amplidão desses enxames
de afecções que determinam os ditames
de minha saúde? que a médica ciência
deflore o envelope em sua sequência,
que eu só aguardarei, pois tenho PAMES
e nem preciso pagar a internação,
caso seja importante que me afastem
do mundo, por um tempo sigiloso...
aqui eu fico, sem mais preocupações
e sem curiosidades que me arrastem
a antecipar um diagnóstico precioso...
desânimo
III
que
rapidez com que a atual tecnologia
se
suicida para o obsoleto!...
o
novo, logo após não ser secreto,
já
se arrisca a tornar-se sem valia...
lembro
que o ritmo antes não corria
assim
tão célere para o desafeto.
hoje
não dura mais do que um inseto:
é
efeméride que vive por um dia...
mas
eu não me acostumo e até queria
que
certas coisas parassem. ainda bem
que
outras queria andassem mais depressa...
e
é assim que se compensam, à porfia,
em
rapidez e lentidão. também,
enquanto
a morte aguardo, sem ter pressa.
desânimo
IV – 13 FEV 24
agora,
eu leio pouco. antigamente,
eu
lia o tempo todo que sobrava;
traduzo
hoje na tela e o que restava
de
meu tempo se esvai rapidamente.
e
quando tenho a ideia inteligente
de
um livro trazer na minha aljava,
para
ler nas minhas esperas, coisa brava,
me
ponho a rolar versos, inclemente.
e
o tempo vai-se indo, livros passam
pela
minha tela, por mim processados
em
novos livros pelo meu talento
e
nesses intervalos que se espaçam
só
têm lugar sonetos apressados,
em
folhas soltas que carrega o vento.
desânimo
V
nem
sei por que te escrevo assim; estou cansado
de
tudo que minha vida representa:
até
meu corpo assim se desalenta,
em
retroalimentação de igual estado.
e
nem era para ser... o mau olhado
que
me feriu, há meses, se espaventa.
desde
janeiro, sem cessar, se assenta
sobre
o tampo de minha mesa, um apanhado
de
trabalhos variados... pagamento
custa
sempre a chegar, mas tem chegado
e
eu mesmo paguei tudo o que devia.
e
ao mesmo tempo, percebo, em sofrimento,
que
ao receber trabalho, me é negado
todo
o carinho que há pouco recebia...
desânimo VI
em breve, ela virá, sem
perceber
e nem sequer desejar o meu
querer.
apenas chegará, com seu
perfume,
em lúbrica inocência e
desfazer.
ela virá, sorrindo,
indiferente,
não por desdém, mas como a
toda a gente
premia... tal que brilha o
vagalume,
com seu esgar gentil,
placidamente.
ela passa por minha vida
e nem sequer
enxerga que a percebo
qual mulher,
porque homem para ela nunca
fui.
sou apenas objeto de
passagem,
a quem se trata bem, sem
vassalagem
à mera ideia de amor que
jamais flui...
desânimo VII –13
FEV 2024
enquanto me
apercebo da pressão
que me avassala,
tento em vão fugir
e só consigo em
palavra escapulir,
até que as pinças
se fechem, em malsão
apertar
inconcludente ao coração,
da sístole e
diástole o longo refluir,
enquanto a força
das garras permitir
enquanto reste ar
no meu pulmão.
eu me afogo na vida
e me sufoco
e é pela própria
sufocação que vivo:
se a não tivera,
nem sequer motivo
me restaria para
respirar, a troco
de um doce fazer
nada, sem suporte
dessa pressão que
me costura a sorte.
desânimo
VIII
quando
sentires o mundo desultório
e
a vida a teu redor puro desânimo,
sem
resultado que te erga o ânimo,
toda
vitória um simples foguetório,
quando
sentires o peso de tua história
a
perfurar teus ombros como espinhos,
quando
sofreres por falta de carinhos,
nesse
acicate de lava feita escória,
quando
tudo a teu redor parecer morto,
sem
um único luzeiro na neblina,
o
mar em calmaria e o vento aziago,
toma
dos remos e ruma para o porto,
lembra
que és dona do leme de tua sina
e
podes transformar carga em afago.
desânimo IX
mais outra vez, fico perdendo
tempo,
enquanto espero que façam uma
prova,
que de dois em dois meses se
renova
essa angústia de tédio e
contratempo.
não pretendo repetir os
neologismos
que escrevi outro dia, num
desplante,
em desafio total e triunfante
a este ambiente de malícias e
sofismos.
que minha revolta só se
mostra em versos,
enquanto encaro o mundo com
enfado,
sem pretender que pertenço ou
sou excluído.
apenas vejo os díspares
reversos
do azinhavre dos rostos, no
mofado
tempo de vida que em aulas
foi perdido.
desânimo X – 14 fev 2024
com vinte e sete centímetros de versos
já em minha pilha, para um novo dia
eu me preparo, de esperança exangue.
sei que esse dom, como já outros conversos
trabalho me trará, não alegria,
na cadência impertérrita do sangue.
por isso, ora me atrevo a inverter
as regras do soneto, sem alarde,
já que percebo que em meu peito arde
uma chama que já pensa em converter
a longa pilha em cinzas e acendalha.
talvez queimando tudo, me retorne
a esperança de que amor se amorne,
no frio coração que a mente espalha.
desânimo XI
um dia, ela virá, sem que eu
espere,
trazendo junto seus dedos de
alvorada,
com sua pele translúcida de
fada,
nesses carinhos que eu apenas
considere.
um dia, ela virá, sem que se
encerre
a minha vida perpétua
ensimesmada,
um dia ela será minha deusa
alada,
com suas asas da testa então
se abeire.
tocar-me-á gentil, na revoada
formada por seus élitros
apenas,
mais dama de cetim que de resina,
porém na pele ficará grudada
a total sombra de suas asas
pequeninas,
para de leve abrandar o
espanto de minha sina.
desânimo XII
mas enquanto ela não chegue,
seguirei
neste caminho estreito de
meus versos,
cada poema a trair mil
universos
e sobre a espada do tempo
sentarei.
sobre o gume da adaga
seguirei,
nesse equilíbrio de
tropeçares tersos,
no talho de meus pés sonhos
inversos,
nas linhas de minhas mãos a
lembrarei.
e quem dizer me pode se a
verei
em qualquer ponto fora do
arvoredo
de meus santos pagãos de
antigo viço?
e sem ter foice de ouro, eu
cortarei
o azevinho envolto no segredo
de outro poema irrequieto mas
castiço.
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