terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


 

 

PENUMBRA I – 15 fevereiro 24

(KELLY ROHRBACH)

 

O fogo queima os dias do passado,

que se liberta em voltejos de fumaça.

Nessa visão, o mundo inteiro passa

e o calor de sua prisão é libertado.

 

Assim, em sacrifício calculado,

ramos floridos queimo, em plena graça.

Incinero essa seiva que o perpassa,

na busca mágica do tempo aprisionado.

 

E a cada vez que busco reviver

o tempo fúlgido do instante de prazer,

lanço achas de lenha na fogueira.

 

E então me lanço na fumaça, sem receio,

nesse encanto envolvido de permeio

à minha penumbra de uma vida inteira.

 

PENUMBRA II

 

A flor que hoje me murcha e me fenece

em um vaso com meu sangue foi plantada.

Bem adubada ela vive, prosperada

pela energia que dentro em mim decresce.

 

Nessa teia de plaquetas, que assim tece,

a flor consegue fazer-se interligada

com minha própria carne, assim sugada:

de folhas postas, a haste dobra numa prece.

 

Porque existe a ligação que assim ressumbra,

luxuriante, no roubo da potência

de meu vigor então prefigurado...

 

E ela me vê como um deus nessa penumbra,

que a nutre e a serve com benevolência,

apesar de somente a ter plantado...

 

PENUMBRA III

 

Os gregos já diziam: "Não se conte por feliz,

até que chegue o último dia de sua vida."

A sorte muda numa noite bem dormida

e quem contente dorme, acorda-se infeliz.

 

Esse ditado que o povo heleno diz

com frequência nos leva de vencida.

Mas, por sorte, também nos dá acolhida

quando a tristeza para trás se quis...

 

Às vezes, é tal qual em mundo novo

estivéssemos pisando e até o rosto

se nos antolha um pouco diferente.

 

Cuida o que pedes para teu renovo!

Porque Fortuna é traiçoeira como o mosto

e seu sorriso quase sempre é impaciente...

 

PENUMBRA IV –16 fevereiro 2024

 

Nossa vida é diariamente uma corrida

que travamos com a Fortuna, essa inclemente

mulher cheia de ardis e indiferente,

cujo pendor é o de levar-nos de vencida.

 

Quando somos felizes nesta vida

e desejamos incólumes, que à frente

de nossos dias permaneça a quente

esperança de um porvir de igual guarida,

 

corremos para a morte, na certeza

de, enquanto vivos formos, arriscar-nos

a um súbito acidente ou desatino...

 

E tanta gente se mata por tristeza,

quando devíamos, felizes, libertar-nos

é da possível viravolta do destino...

 

PENUMBRA V

 

Seria, portanto, a razão do suicídio

a maior felicidade, com certeza:

para que nunca mude esta nobreza

que o tornará no mais válido homicídio.

 

Porque matar-nos em momento de tristeza

é, na verdade, um ato de sandice:

que o infeliz, nesse impulso de tolice,

destrói a chance de trocá-la por beleza.

 

Mas foram poucos os que o perceberam,

pois matam-se por honra, dor ou medo,

julgando serem condições constantes.

 

Se eu me matar, os que me conheceram

saibam portanto não ter sido por degredo,

mas num momento de alegrias delirantes...

 

 PENUMBRA VI

 

Amor se anexa ao mais inapropriado

objeto visível na paisagem...

Como é constante amarmos a miragem

ou dar valor a objeto desprezado...

 

Nosso peito se projeta, num dourado

resplendor de intensa pabulagem,

que nos leva a derramar tanta coragem

sobre arcabouço apenas descarnado.

 

O amor está em nós e é bem presente.

Vemos na outra o que queremos ver,

que, na verdade, nunca esteve nela...

 

Foi só a solidão subjacente,

nossa fiel companheira do viver,

que contempla tal caveira e a sente bela.

 

PENUMBRA VII – 17 FEV 24

 

Quando eu comia folhas de amoreira

fiz amizade com uns bichos-da-seda,

que me ensinaram qual era a vereda

da produção dos fios, nessa certeira

 

transformação do vegetal, que queda

desfiado nos teares, beira a beira,

urdido em tessitura derradeira,

em fino pano que à riqueza ceda...

 

Usei meus fios de forma diferente...

Nem reteci minhas roupas, nem vendi:

eu os bordei em incontáveis versos...

 

Uma espécie de casulo, certamente,

que desfiei de mim quanto sofri

e pelo mundo abandonei, dispersos...

 

PENUMBRA VIII

 

 

 

Porém me sinto como carne de canhão,

que se comanda ao campo de batalha;

fragmentos de minas a mortalha,

obuses e granadas, refeição.

 

Sinto-me assim, porque minha mente espalha

neurônios a granel, em tradução

e ainda dá lugar à inspiração

para esparzir de sonetos maravalha!...

 

E o cérebro esfarela, disputado

por tantos gladiadores, nos dilemas

dessas tarefas que buscam primazia.

 

Vejo-me assim por eles desgastado,

alma em farrapos, pois sinto que os poemas

não são tão belos quanto os que eu queria.

 

PENUMBRA IX

 

Porém de repetir, algo respigo,

fica uma frase aqui, palavra doce,

uma expressão ali que tome posse,

um verso inteiro de sabor amigo,

 

um pensamento singular eu ligo,

que não recordo ter lido adonde fosse,

uma figura antiga que remoce,

qual em seara de dourado trigo

 

e alguma vez, até soneto inteiro,

que me cause surpresa se o releio,

nessa pureza de versos que incendeio,

 

ou até mesmo uma série, em verdadeiro

odor, no qual percebo, de permeio,

de Dionyso o gargalhar brejeiro...

 

PENUMBRA X – 18 FEVEREIRO 2024

 

Mas por que assim esqueço o que escrevi?

É minha memória de tão curta duração

ou já usufruo dos sintomas do Alemão,

esse Doutor Alzheimer, de quem li?

 

Mas são mil versos que na penumbra recolhi

e os deixei a chocar na escuridão,

tão numerosos os originais estão

que quase todos no passado já esqueci,

 

esses versos que fluem depressamente,

atabalhoados, sem dono, galhofeiros,

cachoeira dos motivos mais ligeiros,

 

dispersados por aí, ademaismente,

após tê-los redigido pegureiros,

para depois os olvidar integralmente...

 

PENUMBRA XI

 

Em tal penumbra chegou-me a acontecer

suspeitas fossem de outrem tais poemas,

que os replantasse na memória quais verbenas,

para em momentos de garimpo os reescrever

 

e no entretanto, é como o anoitecer,

quando a penumbra respiga tantos temas,

quando me vejo a tropeçar apenas

e em seus meandros me posso entontecer;

 

são de minha própria vida multifária,

em que vivi tantas vidas de permeio,

a redigir tanta imagem sem receio,

 

nada mais sendo que um vate perdulário,

cujo sangue se escorre em tanto veio

e nem recorda mais seu próprio emunctório.

 

PENUMBRA XII

 

Porque é assim – é a válvula fechada,

que se abre quando sofre o menor toque

dessa tinta que a percorre sem remoque,

em sua corrida feroz, desenfreada.

 

Mil cartões que já não servem para nada,

mil retalhos de papel em tal reboque,

mil temas a acolher em novo enfoque,

numa assertiva tantas vezes contrariada,

 

penumbra dessas noites silenciosas

ou dos dias envoltos em penumbra,

mil poemas esquecidos em mortalha,

 

penumbra vaga das ideias orgulhosas

ou de cada humilhação que assim me obumbra,

nesse edifício que erigi com som de palha...

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