PENUMBRA I – 15 fevereiro 24
(KELLY ROHRBACH)
O fogo queima os dias do passado,
que se liberta em voltejos de fumaça.
Nessa visão, o mundo inteiro passa
e o calor de sua prisão é libertado.
Assim, em sacrifício calculado,
ramos floridos queimo, em plena graça.
Incinero essa seiva que o perpassa,
na busca mágica do tempo aprisionado.
E a cada vez que busco reviver
o tempo fúlgido do instante de prazer,
lanço achas de lenha na fogueira.
E então me lanço na fumaça, sem receio,
nesse encanto envolvido de permeio
à minha penumbra de uma vida inteira.
PENUMBRA II
A flor que hoje me murcha e me
fenece
em um vaso com meu sangue foi
plantada.
Bem adubada ela vive, prosperada
pela energia que dentro em mim
decresce.
Nessa teia de plaquetas, que
assim tece,
a flor consegue fazer-se
interligada
com minha própria carne, assim
sugada:
de folhas postas, a haste
dobra numa prece.
Porque existe a ligação que assim
ressumbra,
luxuriante, no roubo da potência
de meu vigor então prefigurado...
E ela me vê como um deus nessa
penumbra,
que a nutre e a serve com
benevolência,
apesar de somente a ter
plantado...
PENUMBRA III
Os gregos já diziam: "Não se conte por feliz,
até que chegue o último dia de sua vida."
A sorte muda numa noite bem dormida
e quem contente dorme, acorda-se infeliz.
Esse ditado que o povo heleno diz
com frequência nos leva de vencida.
Mas, por sorte, também nos dá acolhida
quando a tristeza para trás se quis...
Às vezes, é tal qual em mundo novo
estivéssemos pisando e até o rosto
se nos antolha um pouco diferente.
Cuida o que pedes para teu renovo!
Porque Fortuna é traiçoeira como o mosto
e seu sorriso quase sempre é impaciente...
PENUMBRA IV –16 fevereiro 2024
Nossa vida é diariamente uma corrida
que travamos com a Fortuna, essa inclemente
mulher cheia de ardis e indiferente,
cujo pendor é o de levar-nos de vencida.
Quando somos felizes nesta vida
e desejamos incólumes, que à frente
de nossos dias permaneça a quente
esperança de um porvir de igual guarida,
corremos para a morte, na certeza
de, enquanto vivos formos, arriscar-nos
a um súbito acidente ou desatino...
E tanta gente se mata por tristeza,
quando devíamos, felizes, libertar-nos
é da possível viravolta do destino...
PENUMBRA V
Seria, portanto, a razão do suicídio
a maior felicidade, com certeza:
para que nunca mude esta nobreza
que o tornará no mais válido homicídio.
Porque matar-nos em momento de tristeza
é, na verdade, um ato de sandice:
que o infeliz, nesse impulso de tolice,
destrói a chance de trocá-la por beleza.
Mas foram poucos os que o perceberam,
pois matam-se por honra, dor ou medo,
julgando serem condições constantes.
Se eu me matar, os que me conheceram
saibam portanto não ter sido por degredo,
mas num momento de alegrias delirantes...
PENUMBRA VI
Amor se anexa ao mais
inapropriado
objeto visível na paisagem...
Como é constante amarmos a
miragem
ou dar valor a objeto
desprezado...
Nosso peito se projeta, num
dourado
resplendor de intensa pabulagem,
que nos leva a derramar tanta
coragem
sobre arcabouço apenas
descarnado.
O amor está em nós e é bem
presente.
Vemos na outra o que queremos
ver,
que, na verdade, nunca esteve
nela...
Foi só a solidão subjacente,
nossa fiel companheira do viver,
que contempla tal caveira e a
sente bela.
PENUMBRA VII – 17
FEV 24
Quando eu comia
folhas de amoreira
fiz amizade com uns
bichos-da-seda,
que me ensinaram
qual era a vereda
da produção dos
fios, nessa certeira
transformação do
vegetal, que queda
desfiado nos teares,
beira a beira,
urdido em tessitura
derradeira,
em fino pano que à
riqueza ceda...
Usei meus fios de
forma diferente...
Nem reteci minhas
roupas, nem vendi:
eu os bordei em
incontáveis versos...
Uma espécie de
casulo, certamente,
que desfiei de mim
quanto sofri
e pelo mundo
abandonei, dispersos...
PENUMBRA VIII
Porém me sinto como carne de
canhão,
que se comanda ao campo de
batalha;
fragmentos de minas a mortalha,
obuses e granadas, refeição.
Sinto-me assim, porque minha
mente espalha
neurônios a granel, em tradução
e ainda dá lugar à inspiração
para esparzir de sonetos
maravalha!...
E o cérebro esfarela, disputado
por tantos gladiadores, nos
dilemas
dessas tarefas que buscam
primazia.
Vejo-me assim por eles desgastado,
alma em farrapos, pois sinto que
os poemas
não são tão belos quanto os que
eu queria.
PENUMBRA IX
Porém de repetir, algo respigo,
fica uma frase aqui, palavra doce,
uma expressão ali que tome posse,
um verso inteiro de sabor amigo,
um pensamento singular eu ligo,
que não recordo ter lido adonde fosse,
uma figura antiga que remoce,
qual em seara de dourado trigo
e alguma vez, até soneto inteiro,
que me cause surpresa se o releio,
nessa pureza de versos que incendeio,
ou até mesmo uma série, em verdadeiro
odor, no qual percebo, de permeio,
de Dionyso o gargalhar brejeiro...
PENUMBRA X – 18 FEVEREIRO 2024
Mas por que assim esqueço o que
escrevi?
É minha memória de tão curta
duração
ou já usufruo dos sintomas do
Alemão,
esse Doutor Alzheimer, de quem
li?
Mas são mil versos que na
penumbra recolhi
e os deixei a chocar na
escuridão,
tão numerosos os originais estão
que quase todos no passado já
esqueci,
esses versos que fluem
depressamente,
atabalhoados, sem dono,
galhofeiros,
cachoeira dos motivos mais
ligeiros,
dispersados por aí, ademaismente,
após tê-los redigido pegureiros,
para depois os olvidar
integralmente...
PENUMBRA XI
Em tal penumbra chegou-me a acontecer
suspeitas fossem de outrem tais poemas,
que os replantasse na memória quais verbenas,
para em momentos de garimpo os reescrever
e no entretanto, é como o anoitecer,
quando a penumbra respiga tantos temas,
quando me vejo a tropeçar apenas
e em seus meandros me posso entontecer;
são de minha própria vida multifária,
em que vivi tantas vidas de permeio,
a redigir tanta imagem sem receio,
nada mais sendo que um vate perdulário,
cujo sangue se escorre em tanto veio
e nem recorda mais seu próprio emunctório.
PENUMBRA XII
Porque é assim – é a válvula
fechada,
que se abre quando sofre o menor
toque
dessa tinta que a percorre sem
remoque,
em sua corrida feroz,
desenfreada.
Mil cartões que já não servem
para nada,
mil retalhos de papel em tal
reboque,
mil temas a acolher em novo
enfoque,
numa assertiva tantas vezes
contrariada,
penumbra dessas noites
silenciosas
ou dos dias envoltos em penumbra,
mil poemas esquecidos em
mortalha,
penumbra vaga das ideias
orgulhosas
ou de cada humilhação que assim
me obumbra,
nesse edifício que erigi com som
de palha...
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