LUZ SOLAR I – 8 FEVEREIRO 2024
(Mary Travers, de "Peter, Paul, and Mary"
Como sangue, em minha janela o sol
se derrama, coagulado em uma poça.
Ao avistá-lo, meu cérebro remoça
e das tristezas olvida o longo rol.
Que fazer, se o peitoril, como um farol,
congelou a claridade numa fossa?
O Universo inteiro ali se esboça
e minha mente se afoga, em luz de escol.
Com os dedos, tateio pela borda
e ergo essa massa lisa e luminosa:
um sol redondo que minhas mãos não queima.
Enrolo a luz e a amarro com a corda
destes meus pensamentos, pegajosa
e a guardo ao coração em eterna teima.
LUZ
SOLAR II
Eu
bebo o sol, assim liso e acidulado,
qual
a massa de pão, sem ter fermento.
Ergo
os cabelos, em igual portento
e
guardo a luz no cérebro encantado.
Assim
fica para sempre embriagado
quem
um Sol traz em si, sem cabimento.
Quem
Apolo deglutiu, num só momento,
foi
de uma vez feito aedo consagrado.
Toco
de novo o peitoril gelado:
o
Sol brilha no alto, indiferente,
mas
do círculo perdeu-se toda a poeira.
Não
foi o Sol, mas um sol assim tomado;
é
a dádiva dos deuses, simplesmente:
bebi
seus dons e marcho em sua esteira.
LUZ SOLAR III
E, novamente, o couro cabeludo
arranquei totalmente: expus o crânio
e me envolvi no sol do peitoril,
que recobri de novo com cabelos.
Quem tem os dedos para tal veludo
arrancar da janela, em gesto insano,
durante um dia de sombra sem anil,
refém se torna de seus próprios desvelos.
Mas não busco resgate. Sou meu guarda,
um áulico fiel da majestade
de tantos sentimentos desconformes.
Custódio revestido dessa farda
que só os deuses, em sua eternidade,
às vezes pingam em ti, enquanto dormes.
LUZ
SOLAR IV – 9 fevereiro 24
Talvez
por isso sinta a tosse estranha
que
me acomete, já há duas semanas;
fiz
raios-X e os testes das escamas (+)
e
nada foi achado. A tosse ganha,
diariamente,
aspecto de artimanha.
És
tu, ardor de Hélios, que te irmanas
nessa
esternutação? Luzes arcanas
brotam
em mim, em inesperada sanha.
em
que os neurônios, feito cata-vento,
são
queimados pelo ardor que em mim esboces,
explodindo
em castiço movimento.
Porém meus
dedos... são bastões de vento,
redemoinhos
de cor, palavras doces,
nessa
mistura de lúdico momento...
(+) Reação de Mantoux para
identificação de tuberculose.
LUZ SOLAR V
A roda de meu
Sol travei nos pés,
igual
que heliotrópio desvairado;
o som da luz
me deixa assoberbado
e o gosto
dessa cor move-se ao rés
de meu chão e
me leva aos aguapés
que crescem
junto à fonte do pecado;
mas é puro e
cristalino esse manchado
filete de
água das mais antigas fés;
a roda de meu
Sol gira o caminho
e me leva
aonde quer, lesto perfume,
como o hálito
das musas, nuvem doce;
apenas sorvo
as gotas desse vinho,
a espinhar-me
por dentro, no azedume
que me
domina, tal qual se um monstro eu fosse!
LUZ
SOLAR VI
Eu
tenho um sol guardado no meu bolso:
uma
carta de amor, que recebi.
Não
que destino alcandorado aqui
tenha
tido a missiva; ou reembolso.
Esse
calor que me transmite é falso:
apenas
me recorda o que senti.
Um
certo orgulho, sim, porém a vi
condescendente,
em simpático percalço.
Pois
nunca acreditei fossem reais
os
sentimentos expressos num capricho
e,
como amava outra, a desprezei.
Mas
leio a carta, às vezes, e às sensuais
palavras
que escreveu ainda me fixo,
por
ter perdido essa vida que larguei.
LUZ SOLAR VII – 10 fevereiro 2024
A maré baixa do Sol surfou no tempo
e a escuridão revestiu-se de veneno...
Em sendo homem, me aferro a ideal pequeno,
nessa harmonia esculpida em contratempo.
A maré alta do Sol então contemplo:
à escuridão, em queda livre, aceno...
Em sendo humano, me prendo agora ao pleno
reconstituir de mim mesmo como templo.
Não que queira consagrar-me à castidade,
mas é que os deuses me olham com favor
e estabelecem-me limites aonde vá...
E me constrangem a tal fidelidade
que lhes devolva, com igual louvor,
no mesmo altar em que minhalma está.
LUZ
SOLAR VIII
Pois
todo o Sol que rebrilhou na véspera,
enjaulado
em clorofila e fotossíntese,
remanejado
por análise e por síntese,
é
transformado em néctar e nêspera.
Que
toda carne é grama, cada folha
é
o Sol desse verão; mesmo a lignita
que
forma o tronco cujo orgulho agita
são
sóis e a chuva que essa folha molha.
Assim...
é o Sol que se transforma em lenha:
quando
te aqueces na chama que crepita,
nada
mais é que a luz do tempo antigo,
queimando
para ti a velha brenha
da
imagem que não viste e que concita,
dentro
do peito, o seu calor amigo...
LUZ SOLAR IX
Eu vejo a
gota d'água, na vidraça,
escorrendo
para cima, em desafio
de toda a
gravidade, sem que o estio
produza
ventos que expliquem como o faça.
É como sobe
lentamente, por pirraça
a energia de
minha vida, posto o cio
e me apaga a
memória do bravio,
perfeito
orgulho do vigor sem jaça.
E tudo vai
assim... O Sol, de noite,
por uma noite
só; de dia, a Lua,
também só por
um dia... e a alegria
substitui de
minha tristeza o açoite,
só por um
dia... ao desvendar-se nua,
entre meus
braços, aquela que eu perdia.
LUZ
SOLAR X – 11 fev 24
Estendo
a língua e o Sol eu saboreio,
cálido
e seco e esvai-se minha saliva,
nessa
mesma luz escura que cativa,
nesse
mesm voejar em que recreio.
A
barca carmesim em ponte veio
a
se tornar entre o corpo e a luz esquiva;
a
luz desce de seu molhe, pura e viva
e
embarca em mim no mais perfeito asseio.
A
luz percorre-me o esôfago e a faringe
e
me transmuta em sol iluminado,
meus
ossos como em luz fosforescente,
nessa
mancha que o Sol em mim atinge,
revelação
perante um mundo desvairado,
na
divindade solar em mim presente.
LUZ SOLAR XI
Mas essa luz solar tornada em beijo
não vem senão do raio palpitante
que me causou tua língua nesse instante
e duplo sol nesses teus olhos vejo,
um corisco que me enche de desejo
e me revisto de manto triunfante,
que a ti pertenço em placidez uivante
e a mim pertences nas vagas desse ensejo.
Em ti abraço o sol que tenho nalma,
tu me enches do Sol que tens na tua,
ambos os sóis a multiplicar-se em multidão
e tal calor, sem me queimar, me embalma,
enquanto te abres, em tua pureza nua,
até meu sol te rebrilhar no coração.
LUZ
SOLAR XII
Pois
nesse Sol que não aceita eclipse,
revoluteamos
na mais alegre dança,
feito
sorrisos cristalinos de criança,
nos
rodapés da órbita em elipse
e
o Sol se reproduz nessa silepse,
em
seus mil pleonasmos de esperança
e
na coma de luz dessa bonança
se
enovela nos cordéis da metalipse.
E
se esta rima já não te enternece,
por
requerer consulta a dicionário,
pensa
somente que sejamos girassóis,
um
ao redor da outra, única prece,
a
derramar-se em brilho multifário,
quais
raios de ouro de idênticos faróis.
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