segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024


 

 

LUZ SOLAR I – 8 FEVEREIRO 2024

(Mary Travers, de "Peter, Paul, and Mary"

 

Como sangue, em minha janela o sol

se derrama, coagulado em uma poça.

Ao avistá-lo, meu cérebro remoça

e das tristezas olvida o longo rol.

 

Que fazer, se o peitoril, como um farol,

congelou a claridade numa fossa?

O Universo inteiro ali se esboça

e minha mente se afoga, em luz de escol.

 

Com os dedos, tateio pela borda

e ergo essa massa lisa e luminosa:

um sol redondo que minhas mãos não queima.

 

Enrolo a luz e a amarro com a corda

destes meus pensamentos, pegajosa

e a guardo ao coração em eterna teima.

 

LUZ SOLAR II

 

Eu bebo o sol, assim liso e acidulado,

qual a massa de pão, sem ter fermento.

Ergo os cabelos, em igual portento

e guardo a luz no cérebro encantado.

 

Assim fica para sempre embriagado

quem um Sol traz em si, sem cabimento.

Quem Apolo deglutiu, num só momento,

foi de uma vez feito aedo consagrado.

 

Toco de novo o peitoril gelado:

o Sol brilha no alto, indiferente,

mas do círculo perdeu-se toda a poeira.

 

Não foi o Sol, mas um sol assim tomado;

é a dádiva dos deuses, simplesmente:

bebi seus dons e marcho em sua esteira.

 

LUZ SOLAR III

 

E, novamente, o couro cabeludo

arranquei totalmente: expus o crânio

e me envolvi no sol do peitoril,

que recobri de novo com cabelos.

 

Quem tem os dedos para tal veludo

arrancar da janela, em gesto insano,

durante um dia de sombra sem anil,

refém se torna de seus próprios desvelos.

 

Mas não busco resgate.  Sou meu guarda,

um áulico fiel da majestade

de tantos sentimentos desconformes.

 

Custódio revestido dessa farda

que só os deuses, em sua eternidade,

às vezes pingam em ti, enquanto dormes. 

 

LUZ SOLAR IV – 9 fevereiro 24

 

Talvez por isso sinta a tosse estranha

que me acomete, já há duas semanas;

fiz raios-X e os testes das escamas  (+)

e nada foi achado.  A tosse ganha,

 

diariamente, aspecto de artimanha.

És tu, ardor de Hélios, que te irmanas

nessa esternutação?  Luzes arcanas

brotam em mim, em inesperada sanha.

 

em que os neurônios, feito cata-vento,

são queimados pelo ardor que em mim esboces,

explodindo em castiço movimento.

 

Porém meus dedos... são bastões de vento,

redemoinhos de cor, palavras doces,

nessa mistura de lúdico momento...   

(+) Reação de Mantoux para identificação de tuberculose.

  

LUZ SOLAR V

 

A roda de meu Sol travei nos pés,

igual que heliotrópio desvairado;

o som da luz me deixa assoberbado

e o gosto dessa cor move-se ao rés

 

de meu chão e me leva aos aguapés

que crescem junto à fonte do pecado;

mas é puro e cristalino esse manchado

filete de água das mais antigas fés;

 

a roda de meu Sol gira o caminho

e me leva aonde quer, lesto perfume,

como o hálito das musas, nuvem doce;

 

apenas sorvo as gotas desse vinho,

a espinhar-me por dentro, no azedume

que me domina, tal qual se um monstro eu fosse!

 

LUZ SOLAR VI

 

Eu tenho um sol guardado no meu bolso:

uma carta de amor, que recebi.

Não que destino alcandorado aqui

tenha tido a missiva; ou reembolso.

 

Esse calor que me transmite é falso:

apenas me recorda o que senti.

Um certo orgulho, sim, porém a vi

condescendente, em simpático percalço.

 

Pois nunca acreditei fossem reais

os sentimentos expressos num capricho

e, como amava outra, a desprezei.

 

Mas leio a carta, às vezes, e às sensuais

palavras que escreveu ainda me fixo,

por ter perdido essa vida que larguei.

 

LUZ SOLAR VII – 10 fevereiro 2024

 

A maré baixa do Sol surfou no tempo

e a escuridão revestiu-se de veneno...

Em sendo homem, me aferro a ideal pequeno,

nessa harmonia esculpida em contratempo.

 

A maré alta do Sol então contemplo:

à escuridão, em queda livre, aceno...

Em sendo humano, me prendo agora ao pleno

reconstituir de mim mesmo como templo.

 

Não que queira consagrar-me à castidade,

mas é que os deuses me olham com favor

e estabelecem-me limites aonde vá...

 

E me constrangem a tal fidelidade

que lhes devolva, com igual louvor,

no mesmo altar em que minhalma está. 

 

LUZ SOLAR VIII

 

Pois todo o Sol que rebrilhou na véspera,

enjaulado em clorofila e fotossíntese,

remanejado por análise e por síntese,

é transformado em néctar e nêspera.

 

Que toda carne é grama, cada folha

é o Sol desse verão; mesmo a lignita

que forma o tronco cujo orgulho agita

são sóis e a chuva que essa folha molha.

 

Assim... é o Sol que se transforma em lenha:

quando te aqueces na chama que crepita,

nada mais é que a luz do tempo antigo,

 

queimando para ti a velha brenha

da imagem que não viste e que concita,

dentro do peito, o seu calor amigo...

 

 LUZ SOLAR IX

 

Eu vejo a gota d'água, na vidraça,

escorrendo para cima, em desafio

de toda a gravidade, sem que o estio

produza ventos que expliquem como o faça.

 

É como sobe lentamente, por pirraça

a energia de minha vida, posto o cio

e me apaga a memória do bravio,

perfeito orgulho do vigor sem jaça.

 

E tudo vai assim...  O Sol, de noite,

por uma noite só; de dia, a Lua,

também só por um dia... e a alegria

 

substitui de minha tristeza o açoite,

só por um dia... ao desvendar-se nua,

entre meus braços, aquela que eu perdia.

 

LUZ SOLAR X – 11 fev 24

 

Estendo a língua e o Sol eu saboreio,

cálido e seco e esvai-se minha saliva,

nessa mesma luz escura que cativa,

nesse mesm voejar em que recreio.

 

A barca carmesim em ponte veio

a se tornar entre o corpo e a luz esquiva;

a luz desce de seu molhe, pura e viva

e embarca em mim no mais perfeito asseio.

 

A luz percorre-me o esôfago e a faringe

e me transmuta em sol iluminado,

meus ossos como em luz fosforescente,

 

nessa mancha que o Sol em mim atinge,

revelação perante um mundo desvairado,

na divindade solar em mim presente.

 

LUZ SOLAR XI

 

Mas essa luz solar tornada em beijo

não vem senão do raio palpitante

que me causou tua língua nesse instante

e duplo sol nesses teus olhos vejo,

 

um corisco que me enche de desejo

e me revisto de manto triunfante,

que a ti pertenço em placidez uivante

e a mim pertences nas vagas desse ensejo.

 

Em ti abraço o sol que tenho nalma,

tu me enches do Sol que tens na tua,

ambos os sóis a multiplicar-se em multidão

 

e tal calor, sem me queimar, me embalma,

enquanto te abres, em tua pureza nua,

até meu sol te rebrilhar no coração.

 

LUZ SOLAR XII

 

Pois nesse Sol que não aceita eclipse,

revoluteamos na mais alegre dança,

feito sorrisos cristalinos de criança,

nos rodapés da órbita em elipse

 

e o Sol se reproduz nessa silepse,

em seus mil pleonasmos de esperança

e na coma de luz dessa bonança

se enovela nos cordéis da metalipse.

 

E se esta rima já não te enternece,

por requerer consulta a dicionário,

pensa somente que sejamos girassóis,

 

um ao redor da outra, única prece,

a derramar-se em brilho multifário,

quais raios de ouro de idênticos faróis.

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