domingo, 14 de abril de 2024


 

 

PEREGRINAÇÃO I – 1º ABRIL 2024

(GLORIA GRAHAME, cinema mudo Hollywood)

 

Deus meu, empurra para mim a minha amada,

que não fique assim tão longe em sua vaidade,

que a possa ter em plena liberdade,

inteira e pura como alma consagrada!

Que não mais se retraia em opacidade,

mas capture meu reflexo na alvorada

no fundo de suas vistas em tal inermidade,

em petéquias acorrentado de verdade!

Que sangue são, hemácias atreladas

a esse veio de alabastro cristalino,

em que tive o prazer de me afogar:

que das grades de seus cílios eu pudesse,

agrilhoado inteiramente em branda prece,

mas sem querer jamais me libertar!

 

PEREGRINAÇÃO II

 

Deus meu, conserva minha essa princesa,

por mais que a tenha degradado o meu amor;

sempre indigno me senti de seu ardor,

qual se a pudesse corromper com minha vileza!

De mim afasta esses laivos de incerteza,

que eu saiba sempre que me aquece o seu calor

e me enobreça com todo o seu fulgor,

nada mais santo que sua heráldica nobreza!

E assim me prendo nos cílios de seus olhos,

entre as íris e os puros cristalinos,

sem o temor de despencar-me em liberdade

e que não possa escorregar desses refolhos,

mas ali fique em meus ardores peregrinos,

somente dela e em total lubricidade!

 

PEREGRINAÇÃO III

 

Pois o que seria de mim sem este amor,

e cada vez que alguém mais a fitasse

a minha presença seu ardor atrapalhasse,

que o maculasse com meu próprio fulgor

e em cada olhar que pretenso se estampasse

ela mostrasse qualquer grau de dissabor,

que eu assim descolorisse seu fervor,

que tentação  alguma a espicaçasse!

Pois não é tão importante me pertença,

mas que perceba quanto pertenço a ela,

inteiro, intacto e irremediavelmente!

Amada minha, deusa plena de minha crença,

peregrinação mais fiel que a Compostela,

minha concha em sangue a alimentar sua mente!

 

SIGYZIA I – 2 ABRIL 2024

 

Amei a mulher mais linda da cidade,

depois que havia respingado sua beleza

nos olhos de outros, sem perdê-la com certeza,

mas não a mesma de sua inicial festividade;

nunca o pude comparar, é bem verdade,

fotos só mostram uma branda singeleza,

reflexos da luz a captar em sutileza,

jamais a vida que espalhara em saciedade.

Mais tarde, é claro, se captava o movimento

com filmadoras e hoje em dia, qualquer

pode emprestar-se toda a vida de mulher

ou ao menos o gesticular de algum momento...

Não saberia até que ponto a formosura

se restringeria à juventude que perdura...

 

SIGYZIA II

 

Certo é que a encontrei ainda bela,

facilmente a desprezar comparação

com alheios traços, na fonte da ilusão,

ostentados por tanta outra donzela;

também é certo que a beleza não congela,

passam-se os anos em perene mutação,

até enfraquece o troar do coração,

mais fundos traços a impor-se sobre ela...

mas não foi sua lindeza a chamar minha atenção:

quando eu a conheci, sequer a cobiçava,

era corrente que a outrem pertencia,

mas foi sua mente a fonte da atração,

belos poemas que aos poucos me mostrava,

foi à sua alma que me devotaria...

 

SIGYZIA III

 

Eu me encantei e os olhares de piedade

de suas amigas jamais considerei,

mulher igual nunca jamais encontrarei,

minha própria alma devorou-me sem maldade.

Com ela vivo a plenos olhos da cidade,

eu lhe pertenço e jamais me afastarei;

se é minha de fato, como o saberei?

Só sei que nunca me tratou com falsidade.

Amei a alma que mais a mim correspondia,

sem desvendar seus escaninhos mais secretos,

sem merecer sua confiança em plenitude;

porém ela me aceitou com galhardia,

tudo o que sou, eu devo a seus afetos,

tudo o que tenho granjeou-me em sua virtude.

 

ARCONTE I – 3 ABRIL 2024

 

No crisol se derrete o pó de ouro

e eu também me derreti no teu crisol:

lá fui pilado do entardecer ao arrebol,

nesse teu ventre, sem encontrar desdouro.

Nesse teu ventre de que me espia o Mouro,

o Mulato, o Cigano, o Judeu e o Espanhol,

toda mulher do mundo nesse rol,

de toda a raça o mais perfeito ancoradouro,

mesmo daquelas etnias que desprezas:

és a Egipcíaca que criou o banho-maria,

és Marguerite, que a própria alma queria

sacrificar pelo Fausto de ímpias rezas,

dessa Francesca que em Rimini mataram,

quando seu Paolo encontrou e se abraçaram.

 

ARCONTE II

 

Só te encontrei no meio da existência

e nos teus braços, enfim, foi que nasci,

bênção divina maior que já pedi,

que compensou-me a inermidade da impotência;

talvez pecado se abençoasse em tal vivência,

a confessionário jamais me dirigi,

sem contrição a ti apenas me atribuí

e fui remido por teu calor de pura ardência.

Pinguei em ti minhas gotas mais impuras

e as recebeste com arcana gratidão,

sabem os deuses que castigo nos darão...

Mas para minhas angústias foste as curas,

para as tuas fui só imperfeito galardão,

meu fraco amor que em teu perfeito ainda perduras.

 

ARCONTE III

 

Eu vejo em ti toda a paixão secreta,

olhos argutos de tantas catacumbas,

as vistas transparentes dessas tumbas,

cada heroína e cada mãe dileta;

eu vejo em ti a alquimia mais completa,

o chumbo me tomaste em tantas rumbas

e o transformaste no ouro em que me alumbras,

cumprida em mim tua profecia de exegeta.

Vejo em tuas células a lembrança do que fui,

essa ascendência sobre quanto eu sou agora,

o equinócio de mil futuras gerações.

É junto ao teu que o sangue me reflui,

senhora minha do porvir, de todo o outrora,

em que me perco à luz dos turbilhões.

 

 

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