URSULA ANDRESS
AMPULHETA CONSCIENTE I – 7 JUL 21
Amanhã será hoje, muito em breve,
como ontem foi hoje e já passou;
mas esse hoje já agora transitou
para o passado, é o momento deste leve
pensamento que por instantes só esteve
presente no presente e que sonhou
ao ser escrito, que o instante que o formou
mais permanente seria do que deve.
Vejo o passado no começo do rascunho
que recém redigi, vejo o futuro
catapultado do final para o presente,
caso viva este período de acabrunho,
sem que o tempo se reduza só a monturo
de areia em ampulheta inconsequente.
AMPULHETA CONSCIENTE II
Que serei cinzas um dia é muito certo
ou pelo menos, este corpo que hoje habito.
Para que serve a carne? Qual o fito
desta pele que se expõe ao céu aberto?
Só nela penso quando estou desperto:
em meus sonhos, não recordo se concito
meu personagem onírico que agito,
a pensar em qual seja este concerto...
Não penso em corpo onírico, afinal;
apenas nele me movo e algo assisto
e os instantes do tempo são salteados,
mudam imagens e espaços neste astral
e de indagar a mim mesmo não desisto
só se meus membros notar como acordados.
AMPULHETA CONSCIENTE III
Esse tempo do sonho é diferente
do outro tempo em que passo a meditar
ou coisas mil materiais a realizar:
será que o tempo do sonho é mais premente?
Mas uma coisa aqui percebo claramente,
as Três Moiras de minha vida a contemplar,
que a teia escorre pelos dedos sem parar
e não consigo conservar nada presente.
O quanto vejo no passado já se encontra
e o futuro vem correndo me assaltar,
sendo o presente só uma nesga singular,
que sequer para mim a si demonstra:
é um punhado de luz em pleno ar
o fio da vida que eu mesmo irei cortar...
PALINGENESIA I – 8
JUL 2021
Eu tive um gato
durante vários anos,
Arhur Pendragon – ou
ele tinha a mim;
no escritório vinha
dormir horas sem fim
e meus carinhos
requeria sem enganos.
São dois felinos ou
seriam dois humanos?
O fato é que na
escada vinha assim
e me cobrava
festinhas de arlequim
a cada dois degraus,
sem desenganos...
Havia pontos
específicos a tocar,
em tal ritual de
exigência permanente;
possuía olhar claro
e direto como gente,
qual lorde inglês
após se embebedar...
Mas tudo passa e um
dia ele morreu
E de taxidermia
nenhum tratamento recebeu...
PALINGENESIA II
Hoje na casa mora
apenas um cãozinho,
chamado Gremlin, um
Shihtzu de raça;
mas de repente,
enquanto o tempo passa,
começou a se portar
qual um gatinho
e na minha escada se
deita no caminho,
exigindo algum
carinho que lhe faça,
depois sobe dois
degraus em igual jaça
e novamente vem
cobrar-me outro carinho.
É justamente nos
pontos que cobrava
Arthur
Pendragon. Falta apenas o miar,
que até caçou
passarinhos no jardim.
Será que a alma do
gato que eu amava
de algum modo veio
nele se encostar
e hoje me mira de
igual jeito assim?
PALINGENESIA III
A Reencarnação
proclama o Brahmanismo
e nela criam antigos
Gregos e Romanos
que suicídios não
consideravam desumanos,
firmeza tendo no
retornar do abismo;
Já a Metempsicose
defende o Jainismo,
que a depender de
nossos atos mais profanos
reencarnaríamos em
mil corpos não humanos
e toda vida
defendiam, em tal modismo.
Sem dúvida, foi um
ideal do Romantismo,
em especial quando a
tuberculose
levava ao túmulo
tantas jovens vidas,
e em contradição
direta ao Nihilismo
de uma só encarnação
que a alma goze,
reencontrar criam
suas amantes falecidas...
PALINGENESIA IV
Confesso agora que a
Palingenesia
é uma palavra nova
para mim;
vi na crônica de um
jornal escrita assim:
raro sinônimo de
Reencarnação seria.
O Cristianismo tem
em conta de heresia
esta doutrina. Só uma morte enfim
teriam os humanos,
sua ressureição alfim
somente no Juízo
Final ocorreria...
Eu pessoalmente, me
inclino a acreditar:
tantos bilhões de
mortos que aí estão!
Será que a vida de
alguns deles já vivi
E após morrer, vim
nesta vida despertar?
Mas eu só sei que se
há Reencarnação
só quereria
reencarnar perto de ti!...
ARDORES
I – 9 JULHO 2021
Eu me esqueci de guardar gotas de inverno
no bolso do casaco ou na carteira;
chegou o verão com sua pasmaceira
a recordar-me que existe fogo eterno!
Eu sempre estivo e quase nunca hiberno;
a temperatura mais fria é alvissareira
ao menos para mim – a mormaceira
só me conduz à antecâmara do inferno!...
Ano passado, assoberbado de serviço,
esqueci de reservar cubos de frio
para abrir junto de mim em refrigério
e meu estoque de viração tomou sumiço,
completamente estrangulado pelo estio,
que cedo ou tarde me levará ao cemitério...
ARDORES
II
Já neste ano, relembrei do esquecimento
e como o tal verão me assoberbou;
bem depressa a coleção já começou,
no sobretudo e no chambre o suprimento;
o inverno já estava a meu contento
e mais lugar nos casacos se encontrou,
gotas de frio cada bolso agasalhou,
na previsão de ocorrer aquecimento!...
E vejam só como foi boa a previsão,
que bem no meio de Julho já aqueceu
e cada noite comecei a passar mal...
Até me recordar da provisão:
meu travesseiro cubos de vento recebeu,
envolvidos em fragmentos de jornal!...
ARDORES
III
Como a frutas ainda verdes tal papel
a madurez com rapidez apressa,
meu frio de gelo a conservar não cessa,
só devagar a transformar-se em gel...
E nesta noite aguardo que o ouropel
me permita sentir o efeito dessa
provisão que há uma semana fiz à beça
e assim consiga ir dos sonhos ao quartel!...
Por que sofrer com algum calor no inverno?
assim em meus cubos de frio me refugio,
em parte gasto a reserva que me adono,
contra o pescoço e as costas eu alterno
esse abençoado tremeluzir de frio
e assim espero conciliar hoje meu sono!
CORDAS DE VENTO 1 – 10 JUL 21
Com cordas de água amarrarei teus dedos
e prenderei teus pés com cordas de ar;
com cordas de luz talvez consiga revelar,
cada um por vez, a multidão de teus
segredos;
eu só os percebo como sonhos ledos,
para somente de modo onírico alcançar;
com cordas de fibra não os irei capturar,
mesmo que as trance com solitários medos.
Porém se cordas de vento for então
utilizar,
tais quais peneiras de arames de luar,
talvez preencha com minhas veias teu
sonhar
e com cordas de dor e prazer manipular
cada lembrança extraída de tua infância
e pendurá-las no coração de minha
constância.
CORDAS DE VENTO 2
Eu buscarei cordas de água bem trançadas
diretamente do jorro das cascatas,
com minhas memórias as envolverei mais
gratas,
todas tingidas com atmosferas partilhadas
e tomarei cordas de sol destas calçadas
que interrompeste com tua sombra certas
datas,
preservadas do tropel de estranhas patas,
só para mim a recolhê-las abençoadas.
E tomarei cordas de vento ensolarado,
misticamente de estrelas polvilhadas,
azuis tingidas pelo suor de antigas geadas
e buscarei cordas de fogo enluarado:
entre meus dedos dançarão, armadas,
cordas de vida de meu sangue coagulado.
CORDAS DE VENTO 3
Jamais pretendo porém com tal cordame
impedir as tuas danças pelo espaço,
quero envolver-te com cordas de um abraço,
cordas de beijos derramar de vasilhame;
mas não penses tal desejo seja infame,
todas as cordas que nesta rima traço,
saem de mim e é a mim mesmo que faço
o prisioneiro total de tal reclame.
Porque de fato, a corda permanente
tu me lançaste das pupilas ao passar,
sem que me possa debater de teu olhar;
mas nessas cordas me sinto bem contente,
qual marionete que vais manipular,
sem nem ao menos com teus dedos me tocar.
SABONETES NÁUFRAGOS I – 11 JUL 21
Não sei de fato quantos sabonetes
Já consumi ao longo de minha vida;
Caso uma conta fosse concluída
O total se celebrasse com confetes!
Mas de cabeça talvez até projetes
Oitocentos e cinquenta nessa lida;
Se fosse apenas um por mês, assim contida,
O mais provável sendo o dobro, me objetes!
Talvez fossem então uns mil e setecentos
Ou mesmo mais, que meu banho diário
Mui raramente deixei de realizar!...
E os pobres sabonetes ficaram sebentos
Pelos suores de meu corpo perdulário,
Até cada um deles se acabar!...
SABONETES NÁUFRAGOS II
Até que ponto um pobre sabonete
De seu destino tomará consciência?
Talvez se deixe diluir em sã paciência
Ou nem perceba que aos poucos se derrete!
Mas se consciência ao objeto afete,
Que sentirá o coitado em tal pendência,
Em saboneteira aguardando na impotência
Pelo próximo banho em que se mete!...
Talvez diga a si mesmo: “É minha função,
Foi para isso, enfim, que fui criado,
Arredondado, protegido, perfumado...”
“Foi de minha existência esta a razão,
Todo sabonete será um dia desmanchado,
Talvez no céu do ralo alcance aceitação...”
SABONETES NÁUFRAGOS III
Ou quem sabe, é um sabonete revoltado,
Que com o destino de derreter não se conforma.
“Por que devo eu assim perder a forma?
À minha velhice queria ser encaminhado
“Ainda inteiro, protegido e perfumado,
Para poder gozar de minha reforma,
O meu repouso forma inteira adorna,
Por mais outros sabonetes abraçado!...
“Mas ao ver meu invólucro arrancado,
Só posso revoltar-me dessas cunhas,
Em corpo sujo não há prazer ser esfregado!
“Assim eu lutarei para a capa ter guardado,
Parte de mim a inserir-se sob as unhas
Desse humano por quem vou ser desmanchado!
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