OLHARES AO REDOR I – 2 OUT 2021
(Pascale Petit, atriz clássica francesa)
Olhos furtivos a contemplar-me a vida,
Olhos ladrões a me avaliar a calma,
Olhos ciganos a me furtar a alma,
Olhos esquivos que não me dão guarida,
Olhos macios de uma visão querida,
Olhos bondosos em sua meiga palma,
Olhos oleosos com que a tristeza embalma,
Olhos presentes no chegar e à despedida...
Há sempre olhos que em meu lar espreitam,
Alguma vez a avaliar o que eu preciso,
De outras vezes a sugerir o que precisam,
Porém presentes a cada vez que aceitam
A minha tristeza ou meu esgar de riso,
Que tanto espero que longamente vivam...
OLHARES AO REDOR II
Meus próprios olhos me espiam,
desconfiados,
Do espelho do banheiro, com buquês
De pasta e espuma salpícados desta vez,
Por abluções diárias a cada dia manchados,
Olhos perdidos a espreitar além dos fados,
Veem meu porvir nas rugas de minha tês,
Veem meu presente nos versos que me lês,
Veem dias perdidos em seu olhar
guardados...
Sem dúvida, são olhares calculistas,
Mais que os olhos que me veem vindos de
fora,
Olhos no espelho a mirar somente a mim,
A recordar-me as derrotas e conquistas,
Olhos de ábaco a calcular-me cada hora,
Quanto mais vezes me terão de olhar
assim...
OLHARES AO REDOR III
Mais outros olhos a mirar-me das paredes,
Olhos de livros inscritos em lombadas,
Olhos de cantos em capas deslocadas
De milhares de discos em suas redes;
Olhos do teto a me olhar adredes,
Tábuas quais teias multifacetadas,
Talvez aranhas mesmo ali paradas:
Com oito olhos egoístas quanto medes?
E mais os olhos lúbricos do assoalho,
Que me contemplam assim, inversamente,,
Porém as calças a perscrutar-me tão
somente
E ainda os olhos da poeira sem orvalho,
Dos longes pássaros e os insetos nas
janelas,
Seu brilho opaco, sem ter fulgor de
estrelas...
OLHARES AO REDOR IV
Talvez todos furtivos com razão:
Se o olhar eu lhes devolvo, quem dirá,
Se uma reação violenta se dará,
Olhos assim destituídos de emoção;
Mas não são olhos ladrões, apenas são
As testemunhas indicretas do não há,
Os transeuntes das dores que haverá,
Olhos passantes sobre cada sensação...
Sem ter nada de ciganos, realmente,
Das paredes eus antigos, gentilmente,
Sem que de fato minha consciência afetem;
E do forro olhares a dar-me proteção,
Cúmplices mansos os ladrilhos de meu chão,
Discos e livros que abandonos me
refletem...
SOMBRAS AO REDOR I – 3 OUT 21
Como a sombra de uma folha ela dançava,
Agitada pelo vento impertinente,
Como a sombra de uma flor que despencava
Do caule à terra de odores redolente;
Até que ponto a adolescência demonstrava
Essa leveza adquirida num repente,
Até que ponto o leve passo revelava
Da juventude a graça tão somente?...
Passava a sombra da filha atarantada,
Passava a folha por vento controlada,
Passava a flor a cair, cor impotente,
Mas não passou-me esse momento de elegia
Na meiga dança encontro uma poesia
Que em nada me pertence integralmente.
SOMBRAS AO REDOR II
E ao mesmo tempo que vejo essa leveza,
Qual mansa flor em seu desabrochar,
Guardo em meus olhos marasmos de tristeza:
Por quanto tempo irá o fado a respeitar?
Por quanto tempo conservará a pureza,
Antes que a vida a venha amargurar
E seus passos já calculados de certeza
Julguem que o vento possam superar?
Não é uma folha a jovem dançarina,
Agitada pelo vento em seu bailar,
Somente a sombra da folha a se agitar
E como sombra, não tem sequer a sina
De as beiradas em estertores sacudir,
Que a folha cai, sem que a sombra vá fugir...
SOMBRAS AO REDOR III
É totalmente inerme esse fantasma:
No chão a folha ainda pode estremecer,
Porém a luz não irá mais interromper
E a sombra sequer morre, mas marasma;
O vento brinca ainda, a folha espasma,
Por um instante, algo da sombra irá viver,
Porém ainda mais depressa a se perder,
Termina sua potência e em nada orgasma...
Que assim ocorre em toda a natureza,
Pois sombra alguma existe sob o Sol,
São só as coisas que interpõem-se à luz;
E só no escuro, defunta essa clareza,
Se ilude a sombra como parte de um farol
Dessa luz negra na qual dorme e se reduz...
DEVOÇÕES AO REDOR I – 4 OUT 21
Se alguma coisa me parece estranha
É a veneração a Tiaraju Sepé,
Como um exemplo de independência e fé,
A combater dos invasores a artimanha;
A única coisa que este ardor nos ganha
É a negação de nossa própria sé,
O índio atacou a nossa gente, até
Ser derrotado por sua própria sanha!
Pois Tiaraju combateu os peninsulares,
Os nossos ancestrais mais permanentes,
A defender dos Jesuítas a ambição;
Por que razão receber nossos louvares,
Se foi contrário assim às nossas gentes,
O próprio oposto de nossa tradição?
DEVOÇÕES AO REDOR II
Dirão, talvez, ser blasfêmia impertinente,
Que isso que afirmo é prova de racismo,
Que sempre existe do deeneá um saudosismo,
Lá no fundo, a serpentear, solertemente,
Em tanta gente que se vê branca somente,
Ou que se afirma, no presente africanismo,
Com sete oitavos até de europeísmo,
A ter-se assim alheia à bugrad gente.
Mas a questão é bastante diferente:
O Tiaraju combateu a quem chegava,
Sua tribo pouco ou nada maisturava;
Há de ameríndios contribuição potente,
Mas não dessa tropa dos Jeusítas,
A missionar entre nós suas negras fitas!
DEVOÇÕES AO REDOR III
Mais tarde, em nossa honrosa Farroupilha,
Foi o combate contra Cariocas e Paulistas,
Mas em duas gerações perdem-se as pistas
De quem antes cavalgava em cada trilha.
“Esta terra tem dono!” – se planilha,
Porém se encontra já a perder de vistas,
Não obtiveram os Guaranis essas conquistas,
Mas em sua integração causar estilhas,
Neste país tão grande e incompreendido:
Heróis que sejam os bravos Maragatos,
Heróis que sejam então nossos Farrapos,
Mas não quem esta união teria impedido,
Que não sejamos aos Europeus ingratos,
Por mais se pense que tais índios fossem
guapos!
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