segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022


 

A JARDINEIRA I – 12 FEV 22

(Ana Arosio)  

Ela contempla os verdes, ondulando,

plantas nativas de nomes estrambóticos,

de certa forma até mesmos psicóticos:

ela passa pelos verdes, caminhando.

 

Essas plantas que vai agora ultrapassando

não desenvolveram jamais os  nervos óticos,

talvez a vejam por sentidos fóticos,

indiferentes porém se demonstrando.

 

Fico a segui-la do ponto em que estou perto,

reparo alegre a sua ondulação,

nada estrambótico contemplo em seu andar

 

e até queria morar em algum deserto,

sem repartir com qualquer vegetação

tais belos passos com que a vejo aproximar.

 

A JARDINEIRA II

 

Ela percorre os canteiros como flor,

somente o vento a murmurar no ouvido,

a ondular de leve o seu vestido,

seu perfume a transmitir em meigo odor.

 

Mas flor alguma respira o seu calor,

somente o vento tem seus caules sacudido,

em seus cabelos quais pétalas mexido,

ela se move e respiro o seu odor.

 

E enquanto a contemplo desde a porta,

sinto ciúmes do vento em sua carícia,

queria apenas eu poder tocá-la,

 

toda a feminilidade que comporta

meus olhos a invejar toda a malícia

dessa brisa não cessa de abraçá-la...

 

A JARDINEIRA III

 

Ela se inclina e poda algum galhinho,

escorre um pouco de seiva a dessangrar,

toca seus dedos, em débil protestar

e indiferente ela prossegue em seu caminho.

 

Somente eu fico, a espiar, quietinho,

não que deseje que venha a me podar,

mas com a vista de seus olhos me abraçar,

em vez de às plantas mostrar o seu carinho.

 

Como o ciúme é composto de bobagem!

vive comigo, quase sempre dadivosa,

às vezes tendo acúleos como a rosa,

 

mas eu me deixo prender nessa voragem:

que nem o Sol encoste no seu rosto

e que somente eu a abrace no sol posto!

 

OS RANCOROSOS I – 13 FEV 22

 

Onde se encontrar a paz da humanidade?

Quando se pensa que se vá estabelecer,

o vento sopra e a vai logo desfazer,

o vento espalha a humana crueldade.

 

Vejo no vento essa certa iniquidade,

a ambição por sua brisa a percorrer,

pequenas raivas aos poucos a crescer,

sempre no vento o inverso da irmandade.

 

Mas nos quarteis se irmanam os soldados,

o regimento a se tornar seu lar,

qualquer bandeira é sua mãe distante

 

e assim marcham, bastante organizados,

nesse absurdo de metralhas enfrentar,

sem ver sua mãe no derradeiro instante!

 

OS RANCOROSOS II

 

Poderia então sobre a Terra haver amor

que abrangesse em plenitude o nosso mundo,

num sentimento de fato tão profundo

que impedisse o crescimento do rancor?

 

É tão difícil ser o vento o provedor;

em ráfagas nos sopra de iracundo,

da morte a insuflar o cheiro imundo,

e no entretanto a conservar o seu pendor.

 

Mas como se evitar que exista guerra,

se até em família ocorre dissensão,

que facilmente alguém mate o seu irmão

 

e desse modo, uma lição se encerra,

que contra povos estranhos vão partir

e não somente o próprio san gue destruir!

 

OS RANCOROSOS III

 

Pode haver um coração em plena arte

que só busque pelos outros amizade,

quando é normal ter animosidade,

que cada estranho despreze e enfim descarte?

 

Qualquer uma diferença que se aparte

desse padrão de uma local humanidade,

qualquer aldeia a combater diversidade,

ao invés da Paz, sempre adorando a Marte!

 

Que se pudesse aceitar, tão simplesmente,

que nunca o vento nos soprasse desconfiança,

que as mãos dadas proclamassem aliança

 

e não a faca que golpeia de repente,

dessa outra mão nas costas escondida,

rasgando as almas na carne malferida!

 

OS AUTO-ILUDIDOS I –14 FEV 2022

 

A maior capacidade que tem o ser humano

é a de enganar a si mesmo, especialmente

quando se encontre em negação frequente,

se morre alguém em seu rancor insano.

 

Amor inverso em tal viver profano,

logo manchado por motivo indiferente,

que esse ódio passageiro é tão potente

que nos assola com o vigor mais soberano!

 

De sobrevivência pode ser um mecanismo,

pode a saudade ser dor insuportável,

melhor então denegar a sua existência

 

que conformar-se com a própria impotência,

por mais que a outros revele-se inegável,

nesse lento divagar de seu egoísmo.

 

OS AUTO-ILUDIDOS II

 

Também em ti se encontra a negação

de algum evento explodido no passado

ou malefício que foi por ti causado

e que podia desgastar-te o coração.

 

É tão comum ocultar-se essa noção,

sempre algum outro a ser do mal culpado;

por outrem teu amor foi desprezado,

sonhas no peito por qualquer retaliação.

 

Ou quando veio à luz o sofrimento,

talvez recuses a aceitar o seu poder,

para ti mesma a fingir indiferença

 

ou quando exames revelam teu lamento,

sem que na morte vindoura possas crer,

por mais que a força dos sintomas seja densa...

 

OS AUTO-ILUDIDOS III

 

Também eu me recordo claramente

das várias vezes em que escolhi a negação,

provocando em mim mesmo a confusão,

perante a culpa a fingir-me indiferente.

 

Porém pensei, em ocasião frequente,

para chegar enfim a conclusão

que de mim mesmo escondia a situação,

vendo meus erros a dançar dentro da mente!

 

E assim ocorre que muito mais me dói

essa consciência negada de antemão

e não consigo nunca me perdoar,

 

que a culpa sempre no coração me rói,

atormentado por tal vaga traição,

do que neguei ainda com ódio a me lembrar!

Nenhum comentário:

Postar um comentário