quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022


 

“AÑORANZA” I – 31 JAN 22

(Ava Gardner, em "Casablanca")

 

Quando teu rosto denota uma tristeza

e de tuas vistas escorre-me a saudade,

eu te contemplo molhado de humildade,

em tuas lágrimas vendo focos de beleza;

sempre busco afastar a tua incerteza,

a teu lado a inserir minha hombridade,

o mais parelha à tua feminilidade,

quando ante mim reflete tua fraqueza.

 

Quero que fales das estrelas que se queimam

e de uma Lua a entreluzir no céu, vermelha;

e não da transitória humanidade;

quantos cometas ao derredor nos teimam

e a cada volta sua cauda se assemelha

a uma placenta de perenidade.

 

“AÑORANZA” II

 

E no entretanto, essas caudas de cometas

são partes deles arrancadas pelo Sol,

a se queimar no ar, breve farol,

como a lembrar nossas iras mais secretas;

dizem que as caudas, que são assim diletas,

na direção oposta ao arrebol

se estendem, qual estranho girassol,

só os astrônomos as percebem mais completas.

 

Porém nós, na miopia dos humanos,

as caudas vemos perseguindo essas estrelas,

que nos encantam como sendo belas,

por mais se afastem para espaços mais profanos,

algumas delas em tão oblongas pistas,

que por nós mesmos jamais serão revistas.

 

“AÑORANZA” III

 

E elas prosseguem, a se recompor,

fugindo ao Sol, ao repuxar seu freio,

para mais tarde retornarem sem receio,

seu perihélio qual nuvem de vapor.

Será que choram os cometas nesse andor,

tendo saudades do que deixaram de permeio?

Sempre menor o núcleo que assim veio,

mas em retorno, recobrando o seu ardor.

 

Assim, não fales mais de tua saudade,

nem daqueles que deixaste para trás,

já que és meu sol e prossigo do teu lado;

e nem menciones da vida a veleidade,

pois tendo a mim, ainda me acolherás,

em teus abraços seguirei sendo abençoado!

 

YARDANGS 1 – 1º FEV 2022

 

Em algum ponto desértico do Egito

são avistadas estranhas ereções,

chamadas Yardangs pelos multidões,

rochas marcadas pelo ventoso agito;

são vermelho-amareladas e algum grito,

se o vento sopra em suas imediações,

é ampliado por tais pétreas construções,

como o assovio de qualquer gênio maldito.

 

São as areias suas grandes escultoras,

que o simum a seu redor dardeja,

qual Castro Alves um dia o descreveu,

formando listras de marcas constritoras

e mais estreita em geral base se enseja

do que o topo que ainda ali sobreviveu.

 

YARDANGS 2

 

É bem verdade que há mais de dez mil anos

ao atual deserto ocupava um vasto mar,

que foi aos poucos levado a evaporar

pelo calor do sol e os ventos soberanos.

Há quem afirme, mas em cálculos insanos,

que foi a água do mar a demarcar

essas figuras arcanas de assombrar,

sem evidências reais para esses planos.

 

E ainda aparece algum qualquer espertalhão,

que se autoafirma entender de geologia,

dizer que estrias mostradas pela Esfinge

foram também o resultado da moção

de agua em maré que até a desbastaria,

mas prova alguma para isto a atinge.

 

YARDANGS 3

 

São os Yardangs a melhor prova em contrário,

porque suas bases é que foram desbastadas,

mantendo as partes superiores conservadas,

enquanto a Esfinge e mais o seu sacrário

mostram apenas essas faixas cujo vário

demarcar nessas plagas desoladas

se ergue em bases que parecem intocadas

e a cabeça erguida sob um Sol consuetudinário.

 

Mesmo as marcas que enfeiam a sua face

foram causadas por religião e intolerância,

em vão tentando desfazer tal escultura,

sem que marca alguma de maré estampasse,

nessa imagem de relativa tolerância,

de seus milênios a contemplar-nos pura.

 

PERSISTÊNCIA I – 2 FEV 2022

 

A vida é feita de lutas e percalços,

haja o que houver, sempre traz contrariedades,

luta constante contra as anfractuosidades,

os pés sempre a apoiar-se em muros falsos;

porém novos sapatos são meus calços,

desgastadas as solas por iniquidades,

mas a carne a proteger de tais maldades,

de algum modo a superar os cadafalsos.

 

Assim, após cada derrota que me abala

eu me renovo ou calço novas botas,

alta a montanha e de íngreme negror;

mas a minha persistência sempre fala,

ganchos e arnezes galgando novas cotas,

sem me deixar dominar pelo temor.

 

PERSISTÊNCIA II

 

Somente ocorre que já foi muito frequente

a minha queda a escorregar do precipício,

o sangue a escorrer-me em seu bulício,

nas palmas de minhas mãos ferida ardente;

pois tantas vezes o escalar foi inclemente,

que em certo patamar cultivo o vício

e ali acumulo da força algum resquício,

até que o ânimo me retorne parcialmente.

 

E então me vejo da Pralaya ressurgente, (*)

lá estou de novo as paredes a galgar

da cova funda que me pretende sufocar

e pouco importa o percalço remanente,

esse mau fado novamente a desafiar,

porque uma estrela sempre posso contemplar. (*)

(*) A pausa entre duas Mahakalpas; aqui, interrupção.

 

PERSISTÊNCIA III

 

A cada vez que chego quase à beira,

um êmbolo me empurra novamente,

o limo se instaurou dentro da mente,

são lisas as paredes, inda que queira,

com os cotos de minhas unhas nessa esteira

galgar até o topo, esforço ingente;

a luz percebo apenas fracamente,

mas não perco a esperança derradeira.

 

Aos líquens eu me agarro, o musgo pego,

prendo meu sexo ao muro escorredio,

como amante cruel a que pertenço

e às gretas dos tijolos eu me entrego,

deixo meu sangue e linfa e o ódio frio,

nessa certeza inútil: que ainda venço!

 

PERSISTÊNCIA IV

 

Eu reconheço que com quase oitenta anos

nunca alcancei o que mais eu desejara,

mas por que desistir do que almejara,

só por me achar em lustros tão profanos? (*)

Sempre é possível alijar os desenganos

e ir em frente pela senda que sonhara;

talvez corrente acima ainda alcançara

e de minha cova subiria a novos planos.

(*) Um lustro corresponde a cinco anos.

 

Destarte espero seja também contigo,

nunca te deixes em desalento acomodar,

nem desistir da inteireza do sonhar,

que não irás encontrar pior castigo

que esse sono sem sonhos tão profundo,

sem sequer um pesadelo a ver no fundo!


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