terça-feira, 3 de outubro de 2023


 

 

AREIAS SEM RIMAS IV – 18 SET 23

(Anna Magnani, diva do cinema italiano)

 

como é fácil deixar-se conduzir

por um líder qualquer sem resistência,

abrir-se mão da vida e da ciência,

sem se dispor por um instante a resistir!

algum antídoto poderá existir

para esta lealdade à impotência,

buscando a morte sem medo ou penitência,

sem na própria sobrevida persistir?

quão natural em nossa espécie humana,

que se pretende de algum modo racional,

a exposição ao perigo mais mortal,

porque um guia qualquer ordem proclama,

para a disputa, o enfrentamento ou o combate

e a liberdade sem qualquer razão se abate!

 

AREIAS SEM RIMAS V

 

basta surgir um ideal de mesmerismo

que a mão abrem da individualidade.

de lado põem noção de sua mortalidade,

seguindo empós qualquer que seja esse modismo.

na ampulheta da vida está o abismo:

cedo ou mais tarde, com naturalidade,

o grão de areia escorre sem vontade

para o infalível final do cataclismo,

qual os humanos aceitam a um ideal,

sem de forma alguma o compreender

e como grãos de areia se transformam,

seja política, esporte ou a habitual

desculpa por um falso patriotismo

ou pela religião qualquer que adotam.

 

AREIAS SEM  RIMAS VI

 

“não há ateus no campo de batalha”

é um aforismo também do romantismo,

mas o que ocorre é um errôneo misticismo:

da morte a foice tão só aos demais talha,

que a mão de um deus qualquer então lhes valha,

seu grão de areia não escorrerá ao abismo;

existe mesmo desde o antigo Judaísmo

uma promessa que a alma mais  retalha:

“podem cair mil à tua direita

e por igual dez mil à tua esquerda,

porém a morte não chegará a ti.”

e a mente então se convence dessa feita,

que a promessa do salmo assim se herda,

“somente eu a sobreviver aqui!”

 

AREIAS SEM RIMAS VII – 19 SET 2023

 

se a morte é uma só, igual lagedo,

descendo sobre nós desde o universo,

o peso das galáxias converso,

nem Atlas suportará tal peso alado;

porém se diariamente algo é pesado

e se vai acumulando  em dom disperso,

são grãos de areia que se dedilha em terço,

até que o mágico solo é assim formado,

os grãos se acumulando lado a lado,

como um estrato em seu sedimentar,

qual manto negro da morte polvilhado,

em iscas de calcário  derramado,

pelos restos do dia a se agregar

no reino rubro de um coração magoado.

 

AREIAS SEM RIMAS VIII

 

se para ti uma noite eu costurar,

com chispas de meteórico fragmento,

com centelhas de galático momento,

num cinturão de asteróides a amarrar;

mas se a fundir e de novo a reforjar,

de mil cometas o entretenimento,

de espirais de gás padecimento,

protuberâncias solares a dançar;

se para ti o hidrogênio rescaldar,

numa forja de chumbo derretido,

de platina derretida o seu manjar,

de mercúrio oxidado o seu sentido,

no lanterídeo fervor de meu cantar,

serás um ente em transurânico vertido.

 

AREIAS SEM RIMAS IX

 

dizem que houve modelistas nordestinos

que figurinhas modelaram em argila,

cem Padres Cíceros em prestimosa fila,

jegues, campônios, igrejinhas com seus sinos,

até presépios inteiros para os mimos

de quem têm peitoris eali perfila

sua arte primitiva e assim compila,

longe mantida do alcance dos meninos;

ou em prateleiras de maior altura,

alguma onça, um soldado, um violeiro

e até a figura        que seu coração deleita,

de Virgulino Lampião e a belezura

de Maria Bonita, como aves num viveiro

ou até mesmo representação de Anchieta!

 

AREIAS SEM RIMAS  X – 20 Setembro 2023

 

também se veem poeiras de areia num cordel,

esses livrinhos enfileirados de poesia,

que qualquer semi-analfabeto redigia

ou que letrado  imitava em carrossel,

xilogravuras primitivas em cruel

reprodução das figuras que se via,

nessas pequenas obras de magia,

lascas de areia aferradas num papel,

que ondulavam ao vento nas banquinhas,

em que vendiam também cestas e refrescos,

com pouca higiene em algumas canequinhas,

areia em brisa sobre a literatura,

gotas  de areia a marcar contos dantescos

ou ingênuos poemas do amor de virgem pura...

 

AREIAS SEM RIMAS  XI

 

porém minhas rimas não são feitas sobre a areia,

nem provocam quaisquer milagres nas marés,

nunca sequer repuxaram pelos pés

quem adotou ideologia alheia,

nem são de argila compostas pela veia

exotérica de quem se nutre de outras fés

e que as vende nas pracinhas através

desse nordeste sob o sol que as incendeia,

nem são criadas pela ingenuidade,

por mais que ingênuas ainda possam parecer,

apesar de emular ancianeidade,

minhas pobres rimas são compostas grão por grão

e em garantia de tal sinceridade,

são modeladas em meu rubro coração.

 

AREIAS SEM RIMAS  XII

 

eu bem queria que cada perda fosse um grão

que eu modelasse em areia de harmonia,

contudo, outra razão tem a poesia,

são  grãos de areia só da imaginação;

do que não houve recolho em meu pulmão

suas volutas de fumaça em nostalgia

e até ao colesterol que envelhecia

roubei partículas a renascer no coração,

pois foi assim que mil metáforas criei,

em sinédoques de metonímica ilusão,

ao descrever o escoar de minha ampulheta

e a incandescência das partículas esfriei,

que amor lástima não foi , mas compaixão

por anseios meros de aspiração secreta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário