CHUVARADA I – 22 OUT 2023
(Renée Adorée, auge do cinema mudo francês)
Em meus
oitenta anos choveu forte,
passei ligado nos
telefonemas
ou alguns de
meus emails a ler apenas
muitas
felicitações de curto porte.
Não sei se
tive boa ou foi má sorte,
pois a Bíblia
me adverte contra as penas
dos oitenta
anos, desagradáveis cenas
de trabalho e
de tristeza antes da morte.
Mas não posso
realmente me queixar,
conservo a maior
parte do vigor
e minha saúde
até mesmo melhorou;
quando aos
trabalhos, não me forço a realizar
e não encaro
as tristezas com temor,
meu
livre-arbítrio a ser meu condutor.
CHUVARADA II
Contudo o tempo com desconfiança encaro,
se oitenta anos recolhi no meu passado,
ainda não creio que me foi predestinado,
quer dia alegre ou que tenha sido amaro.
Certas vezes adoeci, mas sempre saro,
sinto o futuro como já realizado,
sem que veja dominância do passado,
é no presente apenas que me amparo.
Mas de fato, onde vejo esse presente?
É a linha tênue, é a areia da ampulheta,
é cada bolha formada pela espuma,
tudo passando tão rapidamente,
sem haver premonição qualquer secreta
da direção para que ainda a vida ruma?
CHUVARADA III
Se houve destino, foi de fato benfazejo,
tive a ilusão de muita escolha feita,
a maior parte talvez sendo imperfeita,
pois toda escolha se contém dentro do ensejo.
Quando penso escolher o quanto almejo,
às circunstâncias o que escolhi se ajeita,
à teoria quântica minha vontade está sujeita,
e assim ocorre o fado
oposto a cada beijo.
Só se conclui que a escolha é indiferente,
nada existe a ser somente um mal ou bem,
tudo depende simplesmente da visão;
por meus oitenta considero-me contente,
sem da Escritura me dobrar a esse porém,
nem da esperança, nem da desilusão.
ENXURRADA I – 23 OUT 23
Roído de sonhos, o meu
pensamento
dorme no pântano do
desconhecimento,
para o além constante e
sempre atento,
só revestido da euforia do
entretanto.
Não sou escravo de
qualquer pressentimento,
enfrento os dias sem
esperar o pranto,
nem demasiado me emaranho
em canto,
confio apenas que cada
instante é santo.
Não me cabe afirmar que
foi passado
o que ocorreu ou sequer
que algo existiu
e muito menos o que possa
ser futuro,
tudo de fato a já se achar
realizado
da vida inteira transcorrido
o breve fio:
não foi nefasto, mas sem
jamais ser puro.
ENXURRADA II
O Sol das noites os cadáveres ilumina
e os cadáveres dos dias molha a Lua,
milhões de passos perdidos pela rua,
milhões de sonhos a disfarçar-me a sina.
A cada hora se descasca nova mina,
em mil possíveis cada momento estua,
é só aparente a escolha nessa grua,
ao se escolher, algum oposto se assassina?
Ou tudo ocorre de forma simultânea,
so é aparente a escolha de uma trilha,
outro de nós a verter diversa bilha
e nossa vida aparente é sucedânea,
são mil escolhas resultantes numa só
ou é um infindável emaranhado de cipó?
ENXURRADA III
Nossos desejos a iludir continuamente,
são por impulsos elétricos marcados,
pelos eletroencefalogramas revelados,
como rituais em palpitar indiferente.
Até que ponto é a vontade contingente
ou se resume aos impulsos desenhados
em diagonais e em Vês emaranhados,
que interpretamos como se fosse a gente?
As flores se reúnem em um buquê
para criar a primavera portentosa,
ou esta é a dona de cada espinho e rosa?
Os dias longos ou breves que se vê
então nos criam o que pensamos ser a vida
ou são quimera que só julgamos ter vivida?
SARAIVADA I – 24 OUT 2023
Acaso existe possessão
angelical?
Tantos mencionam demoníaca
possessão,
ambos espíritos
teoricamente são,
anjos e capetas em
consistência imaterial.
Dizem que uma nos
impulsiona para o mal
e assim responde por cada
ato malsão,
mas nesse caso será que
sai do coração
um bem ou prece dirigida
ao divinal?
No meu caso, será que
tenho inspiração
ou realmente sou um ser
possuído
pela influência de
qualquer arcanjo,
cada soneto uma forma de
oração,
cada poema em devoção
devido
ou som de plectro a
percutir um banjo?
SARAIVADA II
Creio no impulso que nos vem do antanho,
em nosso deeneá de tempo imemorial.
Matar para comer é acaso um mal,
que ainda hoje se comete com assanho?
Até que ponto dos campos o amanho
também resulta em matança terminal?
O que plantamos terá pendor espiritual,
quanto criamos será de sangue um banho?
Por toda a vida eu fui vegetariano,
a carne morta sempre me repeliu,
nem provo sangue, que não sou vampiro,
mas cada fruta e as sementes que reclamo,
em sacrifícios por igual se constituiu
e essa vida das plantas ao mastigar eu tiro?
SARAIVADA III
Nunca matei por possessão angelical,
com exceção de mosquitos e formigas,
esses pequenos seres em suas ligas
também partilham de uma essência espiritual?
Mas justifico, porque nos fazem mal
ou são arcanjos que nos levam em suas bigas,
arrastados para a frente em longas gigas,
para qualquer destino imaterial?
Será que o fato de o bem ter praticado
e de meu Criador ter-me lembrado
nos antigos dias de minha mocidade,
não são um mérito meu na realidade,
mas fui possuído tão só por entidade,
sem recompensa por não haver pecado?
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