sexta-feira, 27 de outubro de 2023


 

 

CHUVARADA I – 22 OUT 2023

(Renée Adorée, auge do cinema mudo francês)

 

Em meus oitenta anos choveu forte,

passei ligado nos telefonemas

ou alguns de meus emails a ler apenas

muitas felicitações de curto porte.

 

Não sei se tive boa ou foi má sorte,

pois a Bíblia me adverte contra as penas

dos oitenta anos, desagradáveis cenas

de trabalho e de tristeza antes da morte.

 

Mas não posso realmente me queixar,

conservo a maior parte do vigor

e minha saúde até mesmo melhorou;

quando aos trabalhos, não me forço a realizar

e não encaro as tristezas com temor,

meu livre-arbítrio a ser meu condutor.

 

CHUVARADA II

 

Contudo o tempo com desconfiança encaro,

se oitenta anos recolhi no meu passado,

ainda não creio que me foi predestinado,

quer dia alegre ou que tenha sido amaro.

 

Certas vezes adoeci, mas sempre saro,

sinto o futuro como já realizado,

sem que veja dominância do passado,

é no presente apenas que me amparo.

 

Mas de fato, onde vejo esse presente?

É a linha tênue, é a areia da ampulheta,

é cada bolha formada pela espuma,

tudo passando tão rapidamente,

sem haver premonição qualquer secreta

da direção para que ainda a vida ruma?

 

CHUVARADA III

 

Se houve destino, foi de fato benfazejo,

tive a ilusão de muita escolha feita,

a maior parte talvez sendo imperfeita,

pois toda escolha se contém dentro do ensejo.

 

Quando penso escolher o quanto almejo,

às circunstâncias o que escolhi se ajeita,

à teoria quântica minha vontade está sujeita,

e assim ocorre o  fado oposto a cada beijo.

 

Só se conclui que a escolha é indiferente,

nada existe a ser somente um mal ou bem,

tudo depende simplesmente da visão;

por meus oitenta considero-me contente,

sem da Escritura me dobrar a esse porém,

nem da esperança, nem da desilusão.

 

ENXURRADA I – 23 OUT 23

 

Roído de sonhos, o meu pensamento

dorme no pântano do desconhecimento,

para o além constante e sempre atento,

só revestido da euforia do entretanto.

 

Não sou escravo de qualquer pressentimento,

enfrento os dias sem esperar o pranto,

nem demasiado me emaranho em canto,

confio apenas que cada instante é santo.

 

Não me cabe afirmar que foi passado

o que ocorreu ou sequer que algo existiu

e muito menos o que possa ser futuro,

tudo de fato a já se achar realizado

da vida inteira transcorrido o breve fio:

não foi nefasto, mas sem jamais ser puro.

 

ENXURRADA II

 

O Sol das noites os cadáveres ilumina

e os cadáveres dos dias molha a Lua,

milhões de passos perdidos pela rua,

milhões de sonhos a disfarçar-me a sina.

 

A cada hora se descasca nova mina,

em mil possíveis cada momento estua,

é só aparente a escolha nessa grua,

ao se escolher, algum oposto se assassina?

 

Ou tudo ocorre de forma simultânea,

so é aparente a escolha de uma trilha,

outro de nós a verter diversa bilha

e nossa vida aparente é sucedânea,

são mil escolhas resultantes numa só

ou é um infindável emaranhado de cipó?

 

ENXURRADA III

 

Nossos desejos a iludir continuamente,

são por impulsos elétricos marcados,

pelos eletroencefalogramas revelados,

como rituais em palpitar indiferente.

 

Até que ponto é a vontade contingente

ou se resume aos impulsos desenhados

em diagonais e em Vês emaranhados,

que interpretamos como se fosse a gente?

 

As flores se reúnem em um buquê

para criar a primavera portentosa,

ou esta é a dona de cada espinho e rosa?

Os dias longos ou breves que se vê

então nos criam o que pensamos ser a vida

ou são quimera que só julgamos ter vivida?

SARAIVADA I – 24 OUT 2023

 

Acaso existe possessão angelical?

Tantos mencionam demoníaca possessão,

ambos espíritos teoricamente são,

anjos e capetas em consistência imaterial.

 

Dizem que uma nos impulsiona para o mal

e assim responde por cada ato malsão,

mas nesse caso será que sai do coração

um bem ou prece dirigida ao divinal?

 

No meu caso, será que tenho inspiração

ou realmente sou um ser possuído

pela influência de qualquer arcanjo,

cada soneto uma forma de oração,

cada poema em devoção devido

ou som de plectro a percutir um banjo?

 

SARAIVADA II

 

Creio no impulso que nos vem do antanho,

em nosso deeneá de tempo imemorial.

Matar para comer é acaso um mal,

que ainda hoje se comete com assanho?

 

Até que ponto dos campos o amanho

também resulta em matança terminal?

O que plantamos terá pendor espiritual,

quanto criamos será de sangue um banho?

 

Por toda a vida eu fui vegetariano,

a carne morta sempre me repeliu,

nem provo sangue, que não sou vampiro,

mas cada fruta e as sementes que reclamo,

em sacrifícios por igual se constituiu

e essa vida das plantas ao mastigar eu tiro?

 

SARAIVADA III

 

Nunca matei por possessão angelical,

com exceção de mosquitos e formigas,

esses pequenos seres em suas ligas

também partilham de uma essência espiritual?

 

Mas justifico, porque nos fazem mal

ou são arcanjos que nos levam em suas bigas,

arrastados para a frente em longas gigas,

para qualquer destino imaterial?

 

Será que o fato de o bem ter praticado

e de meu Criador ter-me lembrado

nos antigos dias de minha mocidade,

não são um mérito meu na realidade,

mas fui possuído tão só por entidade,

sem recompensa por não haver pecado?

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