IGUASSU I (15 mar 11)
(GWENDOLYN CHRISTIE)
Iguassu é uma flor despetalada
que se abre para o mar e não ao céu.
Esconde sua beleza sob um véu:
pudica essa donzela esbranquiçada
por base e pó-de-arroz, já namorada
por poetas há milênios, macaréu
que escorre em catadupas, escarcéu
que se ouve muito longe, em revoada.
Ainda hoje é virgem intocada,
velha de séculos e ainda adolescente,
jorro diário em sua menstruação,
sangue branco a escorrer em indomada
fertilidade, que permanece ingente,
mesmo no estupro da civilização.
IGUASSU II
Iguassu é o Brasil que corre ao
mar
e vai formar o Uruguay e a Argentina,
cada gota de sua água se destina
ao estuário do Prata secular.
O pai das ilhas, sua água a
transbordar
até as Ilhas Falkland ou então Malvina,
não se derrama em milenar terrina,
a terra em fúria, a lama a se
escoar.
São palmas verdes por entre as
cataratas,
mas tem mil flores de marfim a
rebrotar,
inesgotável em seu eterno
lacrimar,
virgem morena envolta em brancas
batas,
caravela de luz, nunca adormece,
bem mais segura que a resposta de
uma prece.
IGUASSU III
Iguassu também é ameríndia
feiticeira,
tornou-se velha e inteiramente se
branqueou,
todo o negror do tempo antigo
dissipou
no caldeirão de magia condoreira.
Poção arcana transmutada em
corredeira,
filtro de amor que amor não
despertou,
mais um veneno que em seu leito se
alargou,
Uiara antiga em sinfonia
seresteira.
Oceano em linha reta, um crocodilo
que devora a si mesma para trás,
corrente verde que não reflete o
céu,
torrente em labirinto de berilo,
diamante líquido que nunca se
desfaz,
por entre as rochas qual cortante
arpéu.
IGUASSU IV – 19 outubro 2023
Iguassu seria um cemitério de salmões,
mas outros peixes ali enfrentam piracema,
rio caudaloso, bufão e troça de quem rema
a seu montante, esfalfando seus pulmões.
Tremenda força natural em cem canções
entoadas por clivagem, cada gema
a rebrilhar em cada gota o lema,
repercutido em tambores e bordões.
Fanfarra imensa em suas mil baquetas,
seu fogo líquido queimando cada rocha,
dia a dia a ampliar mais o seu leito,
sob um dossel de ilusões secretas,
mostra negras intenções em cada tocha,
às que cada penhasco está sujeito.
IGUASSU V
Iguassu é esse coro trovejante
que abafa a sinfonia passaral,
Briareu de mil braços marechal,
(*)
em cada jorro e queda triunfante.
Essa cachoeira de mágoas
delirante,
que cai e não se quebra e o
pantanal
inesgotável energiza, é o embornal
do Mato Grosso inteiro nesse
instante.
Cantil dos deuses, guria de Tupã,
banheira em que flutua Guaracy,
caldeirão em que fervem o Anhangá,
cocar de plumas, feroz muiraquitá,
largo tripé de rios erguido aqui,
afivelado ao cinturão de Guairá.
(*) Gigante de cem braços na
mitologia grega.
IGUASSU VI
Iguassu é uma platina derretida,
em suas correntes de mercúrio sob
o sol,
prata mais pura martelada no
crisol,
em placas de alumínio entretecida,
por óxido de cobre conturbada,
no poder do titânio o seu farol,
nas facetas de cristal
furta-arrebol,
água marinha em sua terra
acidulada.
Sob essa luz rebrilha o seu
cromado,
pano de ágata em jacinto debruado,
cantando eterno o mesmo desafio
de vencer a si mesma em tal
corrente,
estuando seu poder nesse
inclemente
triturar do fragor do próprio rio!
IGUASSU VII -- 20 OUTUBRO 2023
Iguassu é um animal de sangue frio,
fera cruel e de grande violência,
crioulo branco de feroz potência,
puma selvagem a fecundar o rio,
cachoeira imensa quebrantando o rio
do imenso fluxo de líquida indolência,
cuja calma destrói e rútila aparência
e se lança sobre o abismo em pleno cio.
Contudo o rio a seguir se recupera,
as suas águas rebentadas recompõe,
toma as facetas e as torna em redemoinhos
e assim zomba do poder da besta-fera,
que ante seu curso natural ali se opõe,
no fustigar sutil dos torvelinhos...
IGUASSU VIII
Iguassu é uma aranha, em cuja teia
cada jorro de água é um filamento,
cada tojo arrancado é um
ferimento,
cada casulo uma frágua que se
apeia,
nas espirais todo o gelo se
incendeia,
em parábolas de estranho
polimento,
em alvéolos sem mal, vasto
tormento
dessa serpente branca como aveia.
Iguassu lança sua linha pegajosa
e arranca árvores e avencas
maliciosas,
não dá lugar ao limo no empedrado,
almofariz vazio, onda impetuosa,
funil gargantuesco em poderosas
torrentes de aço puro e siderado.
IGUASSU IX
Iguassu é colunata e dela imana
uma ânfora de leite e outra de
mel.
para Ameghino o Entre Rios era o
quartel (*)
do Paraíso Terrestre, lar e chama,
de cada braço a nutrir a espécie
humana,
branca emboscada, do Paraná sendo
o fiel
dessa balança, bojo branco de
burel,
sacerdote de dalmática profana,
mandala estriada, sansara do
destino,
crucifixo sem braços, jardim zen,
Ouroboros faminto e Ygdrasil.
Milhões de símbolos em pleno
desatino,
constelação que seu próprio céu
sustém,
rede às avessas em seu desgaste do
Brasil.
(*) Florentino Ameghino,
paleontólogo argentino)
IGUASSU X – 21 outubro 23
Iguassu é uma colmeia delirante,
jorrando em cera de tempo e ferradura,
ventre sem fundo, de algodão madura,
boca faminta a corroer o instante,
porto sem praia, líquido elefante,
suicídio desvairado de brancura,
gloriosa morte em racional loucura,
mais que o tridente de Posêidon perfurante,
amor da água pelo mar distante,
chuva festiva condensada em macaréus,
sangue de orvalho, manhã de cerração,
é bruma em solidez, neblina compactante,
nevoeiro espesso dos mais sagrados véus,
diadema e cibório a brotar da comunhão.
IGUASSU XI
Iguassu é a invasão dos
pirilampos,
cálice místico do mais marmóreo
vinho,
o mais terrestre casal, visgo e
azevinho,
alfange matinal, foice dos campos,
profundo talho, profusão de
espantos,
tiara adamantina, túnica de
arminho,
estola de safira em branco ninho,
clangor supremo de perpétuos
cantos,
retábulo de alabastro, horda
perene,
enxame de gotículas em tropel
de anseios mortos pela liberdade,
tumba de aniz em seu altar solene,
banda marcial escorreita em seu
quartel,
quipo de
nós secreto em veraz latinidade.
IGUASSU XII
Iguassu, paixão da vida pela
morte,
zodíaco sem cor, signo encantado,
sentença pronunciada no passado
pelo adultério do livre-arbítrio
com a sorte,
cordão umbilical fendido a corte,
desafiador dos Andes, maldomado,
descaso do Amazonas, exilado,
para o Atlântico a jorrar total
aporte,
aquática pirâmide, palácio em
diagonal,
alvinitente fonte, pináculo
estival,
sem passarela, levadiça ou ponte,
pálido fosso, arco-íris triunfal,
perfume condensado em festival,
arcana seiva condensada no
horizonte.
IGUASSU XIII – 22 out 23
Houve um tempo em que havia as Sete Quedas
do Guairá subservientes a Itaipu,
antecessoras na conspira do Iguassu,
amortalhadas em turbinas e alamedas;
Do lago ao fundo ainda protestam gredas,
as águas se estilham sobre Guaira-Açu,
desde a Bolívia e o Paraguay filete nu,
até suas tessituras límpidas de sedas.
Mas o funil dessa cachoeira principal
não dá vasão a todo esse caudal,
o rio se espraia à sua esquerda e sua direita,
a competir assim consigo mesmo,
em cinquenta cataratas de obra feita,
que rasgam rochas como um talho a esmo.
IGUASSU XIV
Iguassu é a derrocada dessas
águas,
prolífica visão, pai de mil rios,
consumidos num só em verdes cios,
das águas verdes acinzentadas
mágoas,
no estridor permanente dessas
fráguas,
em que cada centelha queima em
fios,
em que cada martelada esmaga
brios,
forja insolente, manancial de
tárguas,
fogueira de florestas,
flor-farinha,
mandioca de pilão, doce aipim,
sangue do Chaco, descarne do
Brasil,
que em cores de bandeiras se
avizinha,
da Argentina e do Uruguay, pálido
fim
das ribanceiras sob um céu de
anil.
IGUASSU XV
Iguassu, canto de sêmen
palpitante,
mãe e pai do portentoso Pantanal,
oceano destilado em vertical,
granizo alvo em sua nuvem
delirante,
nesse país sem neves, rebrilhante
em sua ansiedade de perder-se no
caudal,
para entregar-se a um Netuno
divinal
ou de Iemanjá beijar o seio
palpitante.
Mil prisioneiros buscando se
alforriar
de cada falsa república em
grilhão,
caudilho indomável de novo a
proclamar
dos calabouços e celas a explosão
e no entretanto, o rio ainda corre
para o mar,
qual cinza líquida do mais feroz
vulcão.
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