segunda-feira, 23 de outubro de 2023


 

 

IGUASSU I  (15 mar 11)

(GWENDOLYN CHRISTIE)

 

Iguassu é uma flor despetalada

que se abre para o mar e não ao céu.

Esconde sua beleza sob um véu:

pudica essa donzela esbranquiçada

 

por base e pó-de-arroz, já namorada

por poetas há milênios, macaréu

que escorre em catadupas, escarcéu

que se ouve muito longe, em revoada.

 

Ainda hoje é virgem intocada,

velha de séculos e ainda adolescente,

jorro diário em sua menstruação,

 

sangue branco a escorrer em indomada

fertilidade, que permanece ingente,

mesmo no estupro da civilização.

 

IGUASSU II

 

Iguassu é o Brasil que corre ao mar

e vai formar o Uruguay e a Argentina,

cada gota de sua água se destina

ao estuário do Prata secular.

 

O pai das ilhas, sua água a transbordar

até as Ilhas Falkland ou então Malvina,

não se derrama em milenar terrina,

a terra em fúria, a lama a se escoar.

 

São palmas verdes por entre as cataratas,

mas tem mil flores de marfim a rebrotar,

inesgotável em seu eterno lacrimar,

 

virgem morena envolta em brancas batas,

caravela de luz, nunca adormece,

bem mais segura que a resposta de uma prece.

 

IGUASSU III

 

Iguassu também é ameríndia feiticeira,

tornou-se velha e inteiramente se branqueou,

todo o negror do tempo antigo dissipou

no caldeirão de magia condoreira.

 

Poção arcana transmutada em corredeira,

filtro de amor que amor não despertou,

mais um veneno que em seu leito se alargou,

Uiara antiga em sinfonia seresteira.

 

Oceano em linha reta, um crocodilo

que devora a si mesma para trás,

corrente verde que não reflete o céu,

 

torrente em labirinto de berilo,

diamante líquido que nunca se desfaz,

por entre as rochas qual cortante arpéu.

 

IGUASSU IV – 19 outubro 2023

Iguassu seria um cemitério de salmões,

mas outros peixes ali enfrentam piracema,

rio caudaloso, bufão e troça de quem rema

a seu montante, esfalfando seus pulmões.

 

Tremenda força natural em cem canções

entoadas por clivagem, cada gema

a rebrilhar em cada gota o lema,

repercutido em tambores e bordões.

 

Fanfarra imensa em suas mil baquetas,

seu fogo líquido queimando cada rocha,

dia a dia a ampliar mais o seu leito,

 

sob um dossel de ilusões secretas,

mostra negras intenções em cada tocha,

às que cada penhasco está sujeito.

 

IGUASSU V

 

Iguassu é esse coro trovejante

que abafa a sinfonia passaral,

Briareu de mil braços marechal, (*)

em cada jorro e queda triunfante.

 

Essa cachoeira de mágoas delirante,

que cai e não se quebra e o pantanal

inesgotável energiza, é o embornal

do Mato Grosso inteiro nesse instante.

 

Cantil dos deuses, guria de Tupã,

banheira em que flutua Guaracy,

caldeirão em que fervem o Anhangá,

 

cocar de plumas, feroz muiraquitá,

largo tripé de rios erguido aqui,

afivelado ao cinturão de Guairá.

(*) Gigante de cem braços na mitologia grega.

IGUASSU VI

 

Iguassu é uma platina derretida,

em suas correntes de mercúrio sob o sol,

prata mais pura martelada no crisol,

em placas de alumínio entretecida,

 

por óxido de cobre conturbada,

no poder do titânio o seu farol,

nas facetas de cristal furta-arrebol,

água marinha em sua terra acidulada.

 

Sob essa luz rebrilha o seu cromado,

pano de ágata em jacinto debruado,

cantando eterno o mesmo desafio

 

de vencer a si mesma em tal corrente,

estuando seu poder nesse inclemente

triturar do fragor do próprio rio!

 

IGUASSU VII -- 20 OUTUBRO 2023

 

Iguassu é um animal de sangue frio,

fera cruel e de grande violência,

crioulo branco de feroz potência,

puma selvagem a fecundar o rio,

 

cachoeira imensa quebrantando o rio

do imenso fluxo de líquida indolência,

cuja calma destrói e rútila aparência

e se lança sobre o abismo em pleno cio.

 

Contudo o rio a seguir se recupera,

as suas águas rebentadas recompõe,

toma as facetas e as torna em redemoinhos

 

e assim zomba do poder da besta-fera,

que ante seu curso natural ali se opõe,

no fustigar sutil dos torvelinhos...

 

IGUASSU VIII

 

Iguassu é uma aranha, em cuja teia

cada jorro de água é um filamento,

cada tojo arrancado é um ferimento,

cada casulo uma frágua que se apeia,

 

nas espirais todo o gelo se incendeia,

em parábolas de estranho polimento,

em alvéolos sem mal, vasto tormento

dessa serpente branca como aveia.

 

Iguassu lança sua linha pegajosa

e arranca árvores e avencas maliciosas,

não dá lugar ao limo no empedrado,

 

almofariz vazio, onda impetuosa,

funil gargantuesco em poderosas

torrentes de aço puro e siderado.

 

IGUASSU IX

 

Iguassu é colunata e dela imana

uma ânfora de leite e outra de mel.

para Ameghino o Entre Rios era o quartel (*)

do Paraíso Terrestre, lar e chama,

 

de cada braço a nutrir a espécie humana,

branca emboscada, do Paraná sendo o fiel

dessa balança, bojo branco de burel,

sacerdote de dalmática profana,

 

mandala estriada, sansara do destino,

crucifixo sem braços, jardim zen,

Ouroboros faminto e Ygdrasil.

 

Milhões de símbolos em pleno desatino,

constelação que seu próprio céu sustém,

rede às avessas em seu desgaste do Brasil.

(*) Florentino Ameghino, paleontólogo argentino)

 

IGUASSU X – 21 outubro 23

 

Iguassu é uma colmeia delirante,

jorrando em cera de tempo e ferradura,

ventre sem fundo, de algodão madura,

boca faminta a corroer o instante,

 

porto sem praia, líquido elefante,

suicídio desvairado de brancura,

gloriosa morte em racional loucura,

mais que o tridente de Posêidon perfurante,

 

amor da água pelo mar distante,

chuva festiva condensada em macaréus,

sangue de orvalho, manhã de cerração,

 

é bruma em solidez, neblina compactante,

nevoeiro espesso dos mais sagrados véus,

diadema e cibório a brotar da comunhão.

 

IGUASSU XI

 

Iguassu é a invasão dos pirilampos,

cálice místico do mais marmóreo vinho,

o mais terrestre casal, visgo e azevinho,

alfange matinal, foice dos campos,

 

profundo talho, profusão de espantos,

tiara adamantina, túnica de arminho,

estola de safira em branco ninho,

clangor supremo de perpétuos cantos,

 

retábulo de alabastro, horda perene,

enxame de gotículas em tropel

de anseios mortos pela liberdade,

 

tumba de aniz em seu altar solene,

banda marcial escorreita em seu quartel,

                   quipo de nós secreto em veraz latinidade.

 

IGUASSU XII

 

Iguassu, paixão da vida pela morte,

zodíaco sem cor, signo encantado,

sentença pronunciada no passado

pelo adultério do livre-arbítrio com a sorte,

 

cordão umbilical fendido a corte,

desafiador dos Andes, maldomado,

descaso do Amazonas, exilado,

para o Atlântico a jorrar total aporte,

 

aquática pirâmide, palácio em diagonal,

alvinitente fonte, pináculo estival,

sem passarela, levadiça ou ponte,

 

pálido fosso, arco-íris triunfal,

perfume condensado em festival,

arcana seiva condensada no horizonte.

 

IGUASSU XIII – 22 out 23

 

Houve um tempo em que havia as Sete Quedas

do Guairá subservientes a Itaipu,

antecessoras na conspira do Iguassu,

amortalhadas em turbinas e alamedas;

 

Do lago ao fundo ainda protestam gredas,

as águas se estilham sobre Guaira-Açu,

desde a Bolívia e o Paraguay filete nu,

até suas tessituras límpidas de sedas.

 

Mas o funil dessa cachoeira principal

não dá vasão a todo esse caudal,

o rio se espraia à sua esquerda e sua direita,

 

a competir assim consigo mesmo,

em cinquenta cataratas de obra feita,

que rasgam rochas como um talho a esmo.

 

IGUASSU XIV

 

Iguassu é a derrocada dessas águas,

prolífica visão, pai de mil rios,

consumidos num só em verdes cios,

das águas verdes acinzentadas mágoas,

 

no estridor permanente dessas fráguas,

em que cada centelha queima em fios,

em que cada martelada esmaga brios,

forja insolente, manancial de tárguas,

 

fogueira de florestas, flor-farinha,

mandioca de pilão, doce aipim,

sangue do Chaco, descarne do Brasil,

 

que em cores de bandeiras se avizinha,

da Argentina e do Uruguay, pálido fim

das ribanceiras sob um céu de anil.

 

IGUASSU XV

 

Iguassu, canto de sêmen palpitante,

mãe e pai do portentoso Pantanal,

oceano destilado em vertical,

granizo alvo em sua nuvem delirante,

 

nesse país sem neves, rebrilhante

em sua ansiedade de perder-se no caudal,

para entregar-se a um Netuno divinal

ou de Iemanjá beijar o seio palpitante.

 

Mil prisioneiros buscando se alforriar

de cada falsa república em grilhão,

caudilho indomável de novo a proclamar

 

dos calabouços e celas a explosão

e no entretanto, o rio ainda corre para o mar,

qual cinza líquida do mais feroz vulcão.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário