CRIMES DE SANGUE I (2008)
(Roberto Rossellini e Sonali Das Gupta,
época de ouro do cinema italiano.)
A água vem de Deus e o
seu batismo
não necessita das mãos
de sacerdote:
a água em si transmite
arcano dote,
oculto no poder de seu
melismo.
A água nos transpõe
por sobre o abismo
desta secura sáfara de
archote
e sem que a luz
apague, traz o mote
de ser a mãe do sangue
e do tropismo.
É a água que nos salva
e purifica:
água clara das fontes
matinais,
parada água dos lagos
sepulcrais,
essa água viva que à
mente nos indica
onde lançar, enfim, a
própria água,
que de
nós flua e lave toda a mágoa.
CRIMES DE SANGUE II
Duas tendências principais se opõem aqui:
se a vida é o conteúdo de uma cesta,
cuja farinha se derrama aos poucos,
enquanto nos sacodem os eventos;
ou se a vida se expande, em frenesi
e tem tais energias que à funesta
entropia só presta ouvidos moucos,
no sangue e água de tais desprendimentos;
ou se encontra a vida toda além da flama
que a carne anima e ao sonho purifica
e se dispersa por criar mais vida;
ou se assopra outra vez a mesma chama
que à nossa vida a biologia indica
um novo corpo que lhe dê guarida...?
CRIMES DE SANGUE III
Farinha somos dessa
branca areia,
em mistura de cálcio e
de carbono,
um barro estranho,
feito de abandono,
de podridão e da sarça
que incendeia.
Somos farinha sob mão
alheia,
que nos molda à
vontade em nosso sono,
somos posse dos dedos
desse dono,
quer se acredite ou
quando não se creia.
A água desce sobre
nós, branca de leite,
ou quem sabe? Já nos
escorre em sangue
pelas falanges que
assim nos manipulam,
não para nós, mas para
seu deleite,
uns viram praia,
outros viram mangue
e mil vidas sobre nós
ali pululam...
CRIMES DE SANGUE IV
Enquanto somos argila ou pó de giz,
nada mais somos que uma inércia pura,
não existe vida nos grãos dessa lisura,
cristais apenas, reunidos por um triz.
Mas quando ocorre um corisco mais feliz,
a vibração enfim traz formosura;
é nessa fenda que o espelho assim tortura
que a vida surge como melhor condiz.
Forma-se assim a prata desse espelho,
tudo reflete em cada fragmento,
em si trazendo toda a potencialidade,
mas os grãozinhos se arrastam sob o relho
do vento, em indiferente julgamento
e suas arestas se vão quebrando sem vaidade.
CRIMES DE SANGUE V –
25 OUT 2022
Mas quando se derrama
a branca espuma,
mil flores a formar
sobre essa praia,
em que a defunta onda então se espraia,
até que a última bolha
estoure e suma,
aquela água que em
vapor se não esfuma,
penetra pela areia em
nívea saia
e em sangue se
transforma até que caia,
em novo ardor no âmago
da ruma
e é assim que se faz a
areia em barro,
enquanto aguarda o
insuflar do vento,
cada um de nós um
gólem redivivo,
até que cuspa Deus e
nesse escarro
o fôlego da vida, em
um momento,
se derrame sobre nós
em sonho esquivo.
CRIMES DE SANGUE VI
É nesse instante que o crime é cometido:
a areia inerte se faz lama e vida
e se levanta, em fúria de incontida,
para pisar aos pés a terra ardida
e busca então alimento, em incontido
desejo de crescer e, assim ferida,
ela abre seu solo e em tal guarida
devora a vida o que a possa ter nutrido
e junta em si, voraz sua distropia,
quanta energia puder, sem se importar
quais outras vidas precise destruir,
em sua pura indiferença a uma agonia,
mil crimes realiza em seu andar,
para seu próprio destino então cumprir.
CRIMES DE SANGUE VII
E quando a mãe ao
filho dá à luz,
é em sangue que tal
crime é cometido,
pois nunca sabe para o
que será nascido,
se para vítima ou
algoz, pureza ou pus.
Cada criança a quem a
vida assim reluz,
traz potencial pelo
qual ser arguído,
para o bem ou para o
mal a ser nutrido,
para matar ou por
sofrer morte de cruz.
E por melhor que seja,
há de apagar
as ilusões que surgem
em outro peito
ou indiferente, deixar
morrer seus sonhos,
quer sejam insensatos
ou bisonhos,
certamente nunca irá
buscar um jeito
de cada sonho ou
pesadelo realizar...
CRIMES DE SANGUE VIII
Porém aquela que não dá à luz
crimes de sangue comete mensalmente,
negando ao mundo uma vida diferente,
nu camafeu de mil retratos nus!...
Escorre sangue do ventre, lentamente,
sem a criança nutrir, gotas de angús-
tia que para o mundo não conduz:
qual a mais criminosa, realmente...?
Aquela mãe que trouxe ao mundo um assassino
ou a sua irmã, que só gerou
fantasmas?
A vida morta, sem ter jamais nascido...
Ao te enterrarem num planger de sino,
não prantearão os momentos em que orgasmas,
mas só os filhos que teu ventre tem parido!
CRIMES DE SANGUE IX –
26 out 2022
Mas o que faço eu,
senão mais crimes?
A cada cesta que
poemas tece em vimes,
eu trago à vida um
monstro que seduz,
a se nutrir de mil
cérebros nus.
Eu sopro a vida na
areia de meus sonhos
e dou à luz os
monstros mais medonhos,
transformo meu papel
molhado em barro,
sem a desculpa de ser
divino escarro...
Eu trago à vida esse
agitar profundo
e o distribuo à solta
pelo mundo,
quantas ideias nas
jaulas da poesia,
quantos ideais da mais
falsa elegia
e vês no mundo, como
sendo tuas,
essas imagens que
encontras pelas ruas!
CRIMES DE SANGUE X
Pois cada olhar recebido de mulher
meu cérebro fecunda em novo amor,
a que nunca emprestarei o meu vigor,
pretexto apenas para o meu mister!
Crimes de sangue me inspira assim qualquer
piscada leve, de esguelha, sem ardor,
disparado ao coração, novel frescor,
sem o seu nome conhecer sequer!
Mas esse filho me brota das entranhas,
ali plantado qual por lágrima gentil
ou por palavras da mais breve confissão
e assim redijo essas minhas mil patranhas,
contando o que não houve, em sonho vil,
sem nem ao menos revesti-lo de emoção!
CRIMES DE SANGUE XI
Mas não seria, quiçá,
crime maior,
reter em mim os
gérmens desse trigo?
Todo esse sangue que
trago comigo,
tão irreal em seu real
ardor...?
Não necessito,
realmente, seu calor,
para chocar o verso em
seu abrigo
e germinar meu sangue
em fruta e figo
de uma árvore sem
obrigação de amar?
Bem mais do que a
mulher, que raramente
poderá parir dois
filhos num só ano,
eu sou por gerações
complexado
e lanço versos em meu
cantar silente,
crimes de sangue em
tom claro e desumano,
que ao mundo lanço em
função de meu pecado!
CRIMES DE SANGUE XII
E nessa água que dos deuses brote
torno-me a um tempo pai e sacerdote,
imolo a vítima e lhe confiro o dote:
que vá casar com quem lhe aceite o bote!
Eu lanço ao mundo a água de minhas feras,
para quem sede tiver de mais esperas,
para quem esquece o mel e busca ceras
e recompõe os simulacros com que geras
a inseminação das mais estranhas mentes,
de tantas gentes que jamais verei...
Pode haver crime de sangue mais feroz?
Mas as palavras me escorrem indiferentes
aos versos de outros que jamais lerei
por mais que o alheio crime seja atroz!...
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