O FADO DAS
GLICÍNIAS I – 28 SET 2022
(Ava Gardner, época de ouro de Hollywood)
Minhas glicínias
despencaram este ano
sem tempestade e
sem cair granizo,
ainda azulado o
solo que hoje piso,
mas já falhado do
tapele o seu reclamo.
O seu vergel não
sofre qualquer dano
neste princípio de
primavera ao viso,
as gavinhas se
espalham sobre o liso
telhado do beiral
de que me ufano.
Constatei sempre
que havia tempestade
a cada vez que as
glicínias floresciam,
melhor prevendo que
a meteorologia.
Ou chegaria o vento
em intensidade,
quando as floradas
inteiras pereciam,
cada amentilho a
tiritar na noite fria!
O FADO DAS GLICÍNIAS II
Mas este ano, para minha surpresa,
a floração despencou consensualmente;
só os amentilhos mais baixos, realmente,
protegidos contra o assalto da incerteza.
Sempre julguei que a razão desta pobreza
fosse espalhar pelo chão pólen ardente,
não os sapatos enfeitar de toda a gente,
mas seus tapetes superavam em nobreza
esses que no Corpus Christi um artesão
no chão desenha para durar somente um dia
e as crianças são convocadas das escolas,
mesmo aquelas que católicas não são,
para ajudar nessa crescente nostalgia
da constante escassez de suas esmolas.
O FADO DAS GLICÍNIAS
III
Aqui as glicínias
cometem suicídio,
que meu pátio já
está todo calçado,
salvo o que foi
para canteiros separado,
bem protegido e sem
qualquer ofídio.
Qual é a palavra,
será feminicídio
para a flor a formar
o atapetado,
que em praças deixa
o piso bem forrado,
flores-mulheres que
formam tal resíduo?
tantas pétalas
reunidas nesse zelo,
que ao invés de serem
mais queridas,
tão insensivelmente
são varridas,
tal e qual no
covídico pesadelo
não se guardaram os
seres mais amados,
mas com certo
alivio foram sepultados...
O FADO DO SABONETE
I – 29 SET 22
Meu sabonete parece
possuir vida
e ter consciência
de que vai se desmanchar,
caso em esponja ou
no corpo se esfregar...
Disso que afirmo
você ainda duvida?
Pois veja bem a
coisa sucedida:
na beirada da
banheira o fui pegar,
para dos dedos
velozmente me escapar,
numa trilha cremosa
concebida.
O braço eu estendi,
enquanto segurava
a grade da janela
para ter mais segurança,
contudo a mão ao
sabonete não alcança!
Mais o buscava,
mais ele escorregava,
até lançar-se no
bojo da banheira,
meio zombando em
pura bandalheira!
O FADO DO SABONETE II
Em minha nudez fui forçado a me abaixar,
porém o esforço resultou-me vão,
ele escapou bem fácil de minha mão,
agilmente me querendo derrubar!
Oito ou dez vezes foi no mesmo continuar:
pela beirada acima ainda o leverão
os seus anseios de autopreservação,
seu desespero a conduzi-lo a outro lugar!
Eventualmente, o retângulo cansou,
por mais tentasse me cansar primeiro
e o agarrei com certa violência!...
A sua função então se realizou,
mas quase eu escutei um derradeiro
protesto, ao esfregá-lo com premência!
O FADO DO SABONETE
III
Queria saber,
quiçá, se esse infeliz,
sente uma dor
qualquer no seu desgosto,
mais um dia a
aguardar pelo sol posto,
passado o banho,
sem que haja um bis!
Por algum tempo, o
seu destino diz:
“Na saboneteira da
pia será o teu aposto!
Só servirás para
mãos ou para rosto,
destino nobre que para
ti se quis!”
E dessa forma,
acreditava duraria,
nem tanto gasto ao
lavar-se a mão,
no banho bem mais
forte a esfregação!
E até idade proveta
chegaria,
fácil sabendo que morreria
primeiro
ao ser lavado pela
água do chuveiro!
NO TEOREMA DO SONHO I –
30 SET 2022
Quero sonhar,
descartar-me da existência,
em que há desgosto, na
qual existe dor,
mesmo que aqui tenha encontrado
amor,
amor de sonho mostrará
maior potência.
Em meu onírico lugar
terá valência
totalmente submissa a
meu ardor,
de cada sonho serei
sempre o senhor,
cada elemento em total
benemerência.
Há muitas décadas não
tenho pesadelos,
salvo os que assombram
quando estou acordado,
esse temor de se perder
o quanto tenho,
que só deseja conservar
com firmes zelos,
que no futuro nada
possa ser tirado
do que me apego com o
máximo de empenho!
NO TEOREMA DO SONHO II
Talvez agora desapontarei você,
mas nunca na minha vida me droguei
e por acaso, só uma vez me embriaguei
e nem fumar tabaco alguém me vê.
Portanto espero desse alguém que lê,
já que nunca nessas coisas me abriguei,
que me acredite essa verdade que falei,
pois só nos sonhos me refugio, como se
fossem abrigo que sempre possa controlar,
que tão somente formosura possa dar,
rostos amigos somente a me mostrar
e que do tempo não mostrassem os efeitos,
de cujos beijos tenho plenitude de direitos,
e com quem posso partilhar macios leitos...
NO TEOREMA DO SONHO III
Em cada sonho costuro
meus pespontos,
caso perceba alguma
coisa singular
de que suspeito me vá
desagradar,
dela bem simples afasto
os desapontos,
que o sonho é meu e
nele meus repontos,
sem grande esforço
consigo executar,
não sou escravo de seu
desenrolar,
mas nele vivo os mais
perfeitos contos.
E bem quisera que
também fosses assim,
que enfim consigas teus
sonhos controlar,
coisa bem fácil, pois
basta recordar
que parte o sonho do
coração enfim
e que nele só
encontrarás algum perigo
quando julgares merecer
algum castigo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário