terça-feira, 4 de outubro de 2022


 

 

O FADO DAS GLICÍNIAS I – 28 SET 2022

(Ava Gardner, época de ouro de Hollywood)

 

Minhas glicínias despencaram este ano

sem tempestade e sem cair granizo,

ainda azulado o solo que hoje piso,

mas já falhado do tapele o seu reclamo.

 

O seu vergel não sofre qualquer dano

neste princípio de primavera ao viso,

as gavinhas se espalham sobre o liso

telhado do beiral de que me ufano.

 

Constatei sempre que havia tempestade

a cada vez que as glicínias floresciam,

melhor prevendo que a meteorologia.

 

Ou chegaria o vento em intensidade,

quando as floradas inteiras pereciam,

cada amentilho a tiritar na noite fria!

 

O FADO DAS GLICÍNIAS II

 

Mas este ano, para minha surpresa,

a floração despencou consensualmente;

só os amentilhos mais baixos, realmente,

protegidos contra o assalto da incerteza.

 

Sempre julguei que a razão desta pobreza

fosse espalhar pelo chão pólen ardente,

não os sapatos enfeitar de toda a gente,

mas seus tapetes superavam em nobreza

 

esses que no Corpus Christi um artesão

no chão desenha para durar somente um dia

e as crianças são convocadas das escolas,

 

mesmo aquelas que católicas não são,

para ajudar nessa crescente nostalgia

da constante escassez de suas esmolas.

 

O FADO DAS GLICÍNIAS III

 

Aqui as glicínias cometem suicídio,

que meu pátio já está todo calçado,

salvo o que foi para canteiros separado,

bem protegido e sem qualquer ofídio.

 

Qual é a palavra, será feminicídio

para a flor a formar o atapetado,

que em praças deixa o piso bem forrado,

flores-mulheres que formam tal resíduo?

 

tantas pétalas reunidas nesse zelo,

que ao invés de serem mais queridas,

tão insensivelmente são varridas,

 

tal e qual no covídico pesadelo

não se guardaram os seres mais amados,

mas com certo alivio foram sepultados...

 

O FADO DO SABONETE I – 29 SET 22

 

Meu sabonete parece possuir vida

e ter consciência de que vai se desmanchar,

caso em esponja ou no corpo se esfregar...

Disso que afirmo você ainda duvida?

 

Pois veja bem a coisa sucedida:

na beirada da banheira o fui pegar,

para dos dedos velozmente me escapar,

numa trilha cremosa concebida.

 

O braço eu estendi, enquanto segurava

a grade da janela para ter mais segurança,

contudo a mão ao sabonete não alcança!

 

Mais o buscava, mais ele escorregava,

até lançar-se no bojo da banheira,

meio zombando em pura bandalheira!

 

O FADO DO SABONETE II

 

Em minha nudez fui forçado a me abaixar,

porém o esforço resultou-me vão,

ele escapou bem fácil de minha mão,

agilmente me querendo derrubar!

 

Oito ou dez vezes foi no mesmo continuar:

pela beirada acima ainda o leverão

os seus anseios de autopreservação,

seu desespero a conduzi-lo a outro lugar!

 

Eventualmente, o retângulo cansou,

por mais tentasse me cansar primeiro

e o agarrei com certa violência!...

 

A sua função então se realizou,

mas quase eu escutei um derradeiro

protesto, ao esfregá-lo com premência!

 

O FADO DO SABONETE III

 

Queria saber, quiçá, se esse infeliz,

sente uma dor qualquer no seu desgosto,

mais um dia a aguardar pelo sol posto,

passado o banho, sem que haja um bis!

 

Por algum tempo, o seu destino diz:

“Na saboneteira da pia será o teu aposto!

Só servirás para mãos ou para rosto,

destino nobre que para ti se quis!”

 

E dessa forma, acreditava duraria,

nem tanto gasto ao lavar-se a mão,

no banho bem mais forte a esfregação!

 

E até idade proveta chegaria,

fácil sabendo que morreria primeiro

ao ser lavado pela água do chuveiro!

 

NO TEOREMA DO SONHO I – 30 SET 2022

 

Quero sonhar, descartar-me da existência,

em que há desgosto, na qual existe dor,

mesmo que aqui tenha encontrado amor,

amor de sonho mostrará maior potência.

 

Em meu onírico lugar terá valência

totalmente submissa a meu ardor,

de cada sonho serei sempre o senhor,

cada elemento em total benemerência.

 

Há muitas décadas não tenho pesadelos,

salvo os que assombram quando estou acordado,

esse temor de se perder o quanto tenho,

 

que só deseja conservar com firmes zelos,

que no futuro nada possa ser tirado

do que me apego com o máximo de empenho!

 

NO TEOREMA DO SONHO II

 

Talvez agora desapontarei você,

mas nunca na minha vida me droguei

e por acaso, só uma vez me embriaguei

e nem fumar tabaco alguém me vê.

 

Portanto espero desse alguém que lê,

já que nunca nessas coisas me abriguei,

que me acredite essa verdade que falei,

pois só nos sonhos me refugio, como se

 

fossem abrigo que sempre possa controlar,

que tão somente formosura possa dar,

rostos amigos somente a me mostrar

 

e que do tempo não mostrassem os efeitos,

de cujos beijos tenho plenitude de direitos,

e com quem posso partilhar macios leitos...

 

NO TEOREMA DO SONHO III

 

Em cada sonho costuro meus pespontos,

caso perceba alguma coisa singular

de que suspeito me vá desagradar,

dela bem simples afasto os desapontos,

 

que o sonho é meu e nele meus repontos,

sem grande esforço consigo executar,

não sou escravo de seu desenrolar,

mas nele vivo os mais perfeitos contos.

 

E bem quisera que também fosses assim,

que enfim consigas teus sonhos controlar,

coisa bem fácil, pois basta recordar

 

que parte o sonho do coração enfim

e que nele só encontrarás algum perigo

quando julgares merecer algum castigo!

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