GÁRGULAS
I (2008)
(Diane Keaton e Woody Allen)
Nasci
com o dom da espera dolorosa,
mencionado
por Andersen, que leva,
através
de longas marchas pela treva
até
a consecução da busca airosa.
Não
significa não possuir vida ditosa,
mas
uma longa jornada, que nos ceva
de
trabalho, mas demonstra-se longeva:
a
espera é grande pela bênção dadivosa.
Distante o
pote fica ao fim do arco-íris:
precisamos
andar muito até alcançá-lo,
mas
no horizonte, é certo que reluz...
Eu
só espero que no fim de meus pedires,
por
recompensa, não receba o dote ralo
de
um "fragmento da verdadeira cruz"!...
GÁRGULAS
II (20/1/2009)
Amor
é coisa séria. Já se fala
a
seu respeito desde a Antiguidade.
"Roma
me tem amor", é bem verdade,
que
nossa história repete e jamais cala.
Todavia,
isso de amor, em tal escala,
é
coisa de europeus, na realidade.
Os
demais povos pensam, sem maldade,
que
amor é bênção tal que pode dá-la
somente
a divindade: amor a Deus,
amor
às artes, amor pela ciência,
amor
de mãe ou mesmo amor de irmão.
Mas
os dotes de Cupido, cujos véus
lhe
cobrem a visão, sem complacência,
não
passam de um lampejo de ilusão...
GÁRGULAS
III
Chega
o calor e os deuses careteiam
felizes,
sobre mim, inafetados
por
essa densidão, bem-humorados
(e
sobre a Terra os bosques se incendeiam).
Outros
que a vida no calor semeiam
são
os insetos, no verão multiplicados,
as
larvas brotam de ossos mil, largados
ao
deus-dará e os campos se recheiam...
Deuses
e insetos... Ficamos nós no meio,
pobres-diabos
sem direito a inferno,
ansiando
pela brisa, quais sandeus...
São
os insetos alimento e esteio
para
as aves retornadas de outro inverno;
e
o Sol dá o bote, feito um louva-a-deus!
GÁRGULAS
IV – 9 jan 2021
Nada
queria, afinal. Só preservar-me,
para
manter a longa verborreia
de
meus versos estultos, melopeia,
que
sem lira, para mim, irei cantar-me.
Que
sejam versos bons, vou enganar-me;
meus
amigos dirão, gentil plateia,
que
apreciaram essa medíocre odisseia
e
seguirei a mandar-lhos, sem alarme.
Mas
de que servem tais versos, senão lumes
ajudar
a acender...? Quem eu mais queria
que
os apreciasse, nem ao menos lê...
Ficam
perdidos, mortos vagalumes,
cuja
pilha acabou... Só a fada espia
na
mente triste de quem tudo vê.
GÁRGULAS
V
Pela
calha de minha vida algo escorreu:
algum
trabalho, não mais do que podia,
alguns
amores, não mais do que eu queria;
água
servida depois por mim desceu...
Sempre
aceitei a posição que Deus me deu
da
catedral no alto, de
onde via
o
bem e o mal, quanto nas ruas escorria;
havia
ar puro nesse espaço que foi meu.
Talvez
seria melhor me misturasse,
a
partilhar do odor da humanidade,
toda
a tristeza, mas também toda a bondade
e
à torre de marfim então voltasse,
podendo
os canos melhor desobstruir,
o
meu terraço deixando a reluzir...
GÁRGULAS
VI
Eram
as gárgulas pouco mais que calhas,
sobre
os cantos esguios de catedrais,
toda
a água a recolher dos chuvarais,
para
lançá-la às calçadas sem mais falhas.
Ou
algerosas a captar suas malhas,
quando
os terraços se enchiam por demais,
lançando
às ruas as nuvens siderais,
sem
de Caná tentar encher as talhas,
para
que fossem em vinho transformadas...
com
certa sorte, encher algibe vai,
como
reserva para a aridez do estio,
sólidas
fauces de monstro escancaradas,
alguma
parte das quais às vezes cai,
quando
em torrente se transforma o fio!
GÁRGULAS
VII – 10 jan 2021
Bem
singular essa expressão, “derrame”,
puro
efeito de figura de linguagem,
que
a gente emprega sem notar bobagem:
corte
de galhos é o sentido que proclame!
Durante
a poda em montoeira então se trame,
antes
de ser recolhida essa galhagem,
guardada
para o fogo em uma garagem
ou
num galpão, antes que o fogo a clame,
junto
a animais recolhida nos celeiros...
Mas
a água escorre em queda vertical,
não
se “derrama” ao redor, salvo em repuxo
e
logo secam tais respingos sorrateiros,
ficando
as poças então na horizontal,
ou
descendo coleando em novo fluxo...
GÁRGULAS
VIII
Popularizou
as gárgulas o Quasimodo,
descrito
em francês por Victor Hugo,
de
uma corcunda submetido ao jugo,
na
Notre-Dame sobrevivendo de algum modo.
Sem
ter amigos, estabeleceu seu nodo
com
as estátuas de granito, em amor rudo,
sem
a resposta da boca de um ser mudo,
salvo
em vômitos de água como engodo.
À
sua maneira, tais gárgulas esguias
menos
disformes que o pobre sacristão,
perfeitamente
servindo à sua função,
enquanto
ao homem produziram zombarias
da
Natureza, quando em si proclama
o
direito de troçar da forma humana!...
GÁRGULAS
IX
Conosco
ocorre formato semelhante,
a
Natureza do exterior boa escultora,
mas
do humano interior vil zombadora:
quanta
loucura em gargular desplante!
Quanto
rancor e mágoa nos implante,
que
no corpo e na face não demora!
Só
após décadas, quiçá, o nosso outrora
Se
manifesta em qualquer ruga constante.
Mas
em geral, é do Sol o resultado
ou
então do vento que resseca a pele
e
não do bem ou mal no coração;
há
face lisa de um peito atribulado,
face
marcada que feia se congele
de
alguém que só demonstre compaixão!
GÁRGULAS
X – 11 jan 2021
Há
quasimodos e gárgulas nas ruas,
poucos
capazes de demonstrar amor,
corrompidos
no geral por algum rancor,
que
os corações perfura como gruas!
Nem
sempre a inteligência em faces nuas
se
manifesta, lembra mais santo de andor,
com
o rosto indiferente ou a provocar temor,
talvez
seus olhos reluzam como puas!
Helmholtz
tinha o corpo deformado,
na
alfândega quase não teve permissão
para
ingressar nos Estados Unidos,
como
cientista a ser depois saudado,
pela
sua mente tão só a admiração,
por
seu aspecto desprezos incontidos!
GÁRGULAS
XI
As
aparências enganam a nós mesmos,
nesse
desgosto da imagem especular,
sempre
um defeito ali vamos achar
e
sem cautela, o mencionamos esmos.
A
nossos olhos, elaboramos termos
como
critérios para alguém nos aceitar
e
ditos termos nos vêm atormentar,
provocando
para nós mil dias ermos...
Não
são os deuses que gárgulas nos tornam,
mas
o nosso próprio olhar envergonhado,
que
de algum modo, é por outrem captado,
cujas
más emoções mais nos deformam,
talvez
mesmo por quasimodos se sentirem,
qualquer
beleza ou qualidade a ressentirem.
GÁRGULAS
XII
E
retornando à calha, ainda espero
ter
os meus dias maus, outros melhores,
iguais
doses de prazer e dissabores,
igual
que todos, nem um dez, nem zero...
mas
por velhos defeitos não me altero:
gárgula
fui, porém não das piores:
água
dos versos, dentro em mim escorres,
de
mim lavando o Quasimodo fero!...
E
assim és tu, não te canses da jornada,
no
fim do arco-íris não se encontra nada,
mas
há pomares ao longo do caminho.
Se
foste gárgula, já cumpriste o teu jornal,
sem
permitir inundar-se a catedral
e
as tempestades transformaste em vinho...
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