MAGOADEIRAS I (2008) (Revisada a 18 dez 21)
(Cacilda Becker, a musa do teatro brasileiro)
A meia-noite eu transformo em massapão
e a transformo em magoadeiras ao luar.
Estas árvores de mágoas vêm buscar
o necessário adubo ao coração.
As magoadeiras planto em profusão
por todos os recantos do cantar,
para a mágoa em alegria transformar:
redondos frutos sumarentos de ilusão.
E me orno de suas folhas em coroas,
douradas mágoas quais louros de vitórias,
colhidas pela vida ao invés de glórias...
Que existem mágoas más e mágoas boas,
maduras essas mágoas encontradas
nas magoadeiras pela vida já plantadas.
MAGOADEIRAS II (5/3/2011)
Vou recolher depois, das magoadeiras,
os frutos que estiverem mais maduros.
Olhando as cascas, parecem bem escuros,
mas por dentro suas polpas por inteiras
têm cores brancas de mágoas seresteiras,
dessas cantadas em carnavais mais puros
ou nos entrudos tornados já obscuros
pela memória das memórias costumeiras...
As mágoas se mastigam com cuidado,
pois separam os seus gomos tegumentos
mais resistentes, duros e fibrosos.
São mais amargos que meu próprio fado,
enquanto os gomos adocicam sentimentos
pela saudade de tempos mais ditosos.
MAGOADEIRAS III
Há magoadeiras de outras qualidades.
Algumas mágoas são vermelhas ou carmim.
Têm menos fibras de permeio, assim,
mas os seus gomos são animosidades.
Dizem que foram cultivadas por uns frades
para dar fruto na quaresma, enfim.
Moíam as polpas e faziam um pudim
que disfarçava das carnes as saudades.
Mas logo após a Páscoa, já se estragam:
em vez de mágoas, produzem só rancores
contra a tristeza e esse celibato
que manter devem se seus votos pagam,
em cantilenas estéreis de calores,
só compensadas pelas carnes em seu prato.
MAGOADEIRAS IV – 19 dez 2021
Também existem mágoas amarelas,
que se comem em qualquer época do ano
e nos recordam, cada qual, um desengano
que se sofreu ao longo das procelas.
Comemos mágoas sentados às janelas,
vendo passar o animaltório
humano,
em suas carruagens, usando um rico pano
para cobrir-lhes a gordura das costelas...
Essas mágoas amarelas são de inveja,
ódio e malícia e fome de vaidade,
cujo sumo nos escorre para o chão,
durante as preces, até dentro da igreja,
ao contemplar-se qualquer felicidade
que não habite em nosso coração...
MAGOADEIRAS V
Frutos azuis igual têm magoadeiras,
brilhantes pomos de aparência estranha,
mágoas de orgulho, mágoas de tacanha
mentalidade que engloba mil esteiras...
São as bagas azuis das pasmaceiras,
das indolências com que a energia banhas,
das frustrações com que vingança acanhas,
quando já murcham as vendetas derradeiras.
O prato frio dos azulados frutos,
cujo sabor a nós é que envenena,
por mais delícia que nos possa prometer.
Porém são tantos a mascar tais frutos brutos,
julgando assim cobrar-se de uma pena,
ao mastigar o que não traz qualquer prazer...
MAGOADEIRAS VI
Contudo, existem mágoas mais prateadas,
casca argentina possuem tais raras frutas
e um estalar risonho logo escutas,
mostrando as polpas de cinza anuançadas.
Em um relance, até parecem ser mofadas
estas mágoas a mostrar visões mais brutas,
mas após saboreá-las, esternutas
o teu prazer pelas mágoas devoradas.
E pelo ar que então te sai da boca
correm palavras de sublimes versos,
quais nunca ouvistes antes ou ouvirás,
que só as mágoas da esperança louca
podem criar poemas tão diversos,
que quase sem querer, entoarás!...
MAGOADEIRAS VII – 20 dez 2021
Por isso, planto magoadeiras com cuidado,
após reunir as minhas próprias mágoas,
que esmago no monjolo ou em duras fráguas,
até moê-las bem, em caprichado
polvilho de tristezas, desusado,
que então misturo com salgadas águas
e as faço em massapão, puras remágoas,
a descansar no luar afermentado,
porque é preciso que seja à meia-noite,
quando a lua estiver plena lá no espaço;
a massa amoldo e com cuidado, traço
nova mudinha de mágoas, sem afoite:
abro uma cova em meio a meu pomar,
que com meu próprio sangue irei regar.
MAGOADEIRAS VIII
Muito depressa cresce essa mudinha,
porém não me diz nada, já que é muda;
à luz da lua plena se desnuda,
cresce depressa e da Lua se avizinha.
Logo se torna de meu pomar rainha
e espalha a seu redor a dor aguda;
nessas folhas que ressecam a dor gruda
para desnuda no inverno estar sozinha.
São essas folhas que teço em mil coroas,
para ornar minha testa como faixa
prendendo meus cabelos... E as ideias,
bem ao contrário, soltando como loas,
nessas mil mágoas que pululam dessa caixa
e se transformam em sagas e epopeias!
MAGOADEIRAS IX
Se queres mágoas, posso te dar bastantes,
tão logo retornar a primavera;
vale a pena prender-se nessa espera,
que a magoadeira traz frutos rebrilhantes,
alguns inócuos, a maioria interessantes,
alguns macios, tão lisos como cera,
outros mostrando da aspereza a fera,
em seus sabores de saudades delirantes.
Que ao morderes cada mágoa, lembrarás
longos momentos de cada amor perdido,
breves instantes de beijo apaixonado
e ao teu passado assim retornarás,
sem que o futuro se faça percebido,
pelo sumo de tua mágoa enovelado.
MAGOADEIRAS X – 21 dez 21
Já não existe maior mágoa que a saudade
disso que nunca foi nem há de ser;
mordendo o fruto, poderás reconhecer
quantos prazeres perdeste na verdade!...
São mágoas doces, afinal, na veleidade
do que deixaste pelos dedos escorrer
desses beijos que mais querias conhecer
e pusilânime perdeste em tua vaidade.
São mágoas boas, afinal, trazem lembranças
desses instantes de bênçãos transitórias
em que esperaste o bem que chegaria
envolto em manto inconsútil de esperança
depositada para sempre nas memórias,
ao apagar-se da luz que reluzia!...
MAGOADEIRAS XI
Mas ao morderes a fruta, então retorna
não o final do amor que conheceste,
nem o princípio em que nele te perdeste,
mas mágoas boas que a saudade adorna;
poia ao mascares sua polpa, se reforma
essa esperança que mal reconheceste
e que deixaste para ti perder-se,
lançada à frágua junto da bigorna,
fruindo o brilho das fagulhas da esperança,
enquanto os anjos te mostravam com a direita
quanto com a esquerda depois te tirariam!
Ah, doce mágoa a travestir bonança,
quando se esquece como foi desfeita
essa centelha com que antes te iludiam!...
MAGOADEIRAS XII
No fim, as mágoas não te dão ressentimento,
enquanto o fruto tomas em tuas mãos
e então o mordes em teus desejos vãos
que te restaure teu perdido sentimento.
Por um instante, nem sequer pressentimento
conservarás da multidão dos nãos
que zombariam de ti nesses entãos
em que exerceste um errôneo julgamento...
E assim, à meia-noite, as magoadeiras,
qual um pudim de lágrima e luar,
ainda eu planto no jardim do coração
e distribuo, sem razões interesseiras,
os seus frutos a quem os queira mastigar
nestes versos requintados que aqui estão.
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