terça-feira, 28 de dezembro de 2021


 LILLIAN ROTH, atriz do cinema mudo.

 

GRADAÇÃO  1 – 26 DEZ 2021

Somos diversos, eu e tu, do que já fomos;

diversos um com o outro, em sentimento,

diversos em nosso próprio encantamento,

diversos os corpos dos que ora somos;

há um momento em que juntos nos pomos

e nos temos por inteiro em tal momento,

mas é somente a ilusão que hoje acalento,

que nosso tempo se divide em gomos

e aquilo que já fomos, nunca mais

seremos novamente, inda que o mundo

permaneça inteiramente transparente,

imóvel como em banca de jornais,

enquanto o nosso instante só é profundo

naquele sempre que se foi indiferente.

 

GRADAÇÃO  2

Nosso passado é como um vasto outeiro,

camada após camada acrescentado,

por arqueólogos a jamais ser escavado,

mas que se mescla num antanho inteiro;

o que lembramos do beijo derradeiro

não recordamos na mesma forma dada,

o beijo que recordo, estrela alada,

não é o beijo em teu próprio travesseiro:

trocaste as fronhas e nem um só fio de cabelo

ali se encontra que tenha sido meu;

eu não troquei o travesseiro da lembrança;

tu só recordas o suspiro do desvelo,

eu me recordo de tudo que foi teu,

já descartada a última esperança.

 

GRADAÇÃO  3

E mesmo que não fosse dessa forma,

nenhum beijo retornamos a lembrar,

a carne que abracei em teu amar

não será mais a carne que retorna,

mesmo que venhas a meus braços toda morna,

que teu perfume eu possa respirar,

não é o perfume do antigo recordar,

teus lábios beijo em diferente norma;

e mesmo o meu, de que não me separei,

já é bem diverso, todo transmudado

daquele corpo que abraçou o teu;

só em minhalma eu te conservarei,

só em teu coração há um fio deixado

desse presente que um dia se perdeu.

 

ESCAVAÇÃO  1  -- 27 DEZ 21

Bebo o relógio e vou ver horas no copo:

meu olhar cuida dos dois na onirosfera,

no sonho te acho tal como eu quisera:

coloco as ferraduras e presto a ti galopo;

bebo teus olhos quando as pestanas topo

de teus cílios ondulantes de quimera,

escolho as horas em que nada se perdera,

do amor a lança no próprio peito emboco;

na onirosfera o amor é suave e permanente,

nada que houve jamais dali desaparece,

o sonho dura mais que qualquer prece,

mas a mulher que ali eu amo é diferente,

seus beijos dá-me, totalmente dadivosa,

sem que se esfaça como as sépalas da rosa.

 

ESCAVAÇÃO  2

Na onirosfera só o passado permanece,

como guardado em ágeis escaninhos:

busca-se um dia repleto de carinhos,

que lá se encontra e a tessitura tece;

é uma dita que ali jamais se esquece,

só fios de ouro bordados nesse ninho,

nenhum pipilo de pássaro mesquinho,

nenhum ciúme, nenhum capricho desce,

pois futuro não se acha em onirosfera, (*)

há só um presente forjado de passado,

em mil segredos nos borda a noosfera; (+)

somente ali reverdece o nosso antanho

e o paladar revive em mútuo agrado,

sem da incerteza sofrermos qualquer lanho.

(*) esfera dos senhos (+) esfera dos pensamentos

 

ESCAVAÇÃO  3

Ali se encontra tão somente o relembrado,

feito de névoas e lantejoulas de ouropel,

salvo se um dia ansiarmos pelo fel

da separação indo empós ao desgastado,

aziago sonho que ao estarmos deste lado

recordamos tantas vezes, mais que o mel

dos dias felizes em seus sonhos de papel:

por que é difícil pelo bem ser tocaiado?

Então te busco no país do Sonho Alado,

em que serás tu mesma sem mudanças

e onde eu mesmo não me modificarei,

em que o presente é o rebroto do passado,

no qual escolho tão só os dias das bonanças,

que  somente  junto às tuas acharei.

 

SEM MAIS AÇODAMENTO I – 28 DEZ 21

Por mais se vá ao tal reino dos sonhos,

aqui vivemos os nossos pesadelos;

por mais que aqui vivamos em desvelos,

sempre surgem pensamentos mais medonhos,

que nos assaltam para deixar tristonhos

ou para mais agudizar os nossos zelos;

não nos invadem os pensamentos belos

e nem sequer nos abordam os bisonhos;

quando queremos recordar um bem

algum esforço teremos de fazer

e nunca é igual àquilo que já foi,

porque o passado já faleceu também,

mas os espectros conseguem reviver

e nos lembrar daquilo que mais dói.

 

SEM MAIS AÇODAMENTO II

Assim não somos mais os mesmos nesta hora

que se esvai na maior pressa e transitória;

nos próprios dias da mais perfeita glória

escorre o tempo e de nós parte sem demora;

mas poderemos escolher outro porvir, embora

e dentre as mil opções forjar a história,

a que nos seja menos merencória,

no turbilhão de escolhas que nos jorra;

em livre-arbítrio um só fio desatar

desse Nó Górdio que permite conquistar

não a Ásia, mas uma senda favorável,

que Alexandre, impaciente, foi cortar,

mas que a nós somente cabe desatar

dentre as mil ramas desse imponderável.

 

SEM MAIS AÇODAMENTO III

Assim não somos mais os mesmos, realmente,

mas nosso recordar do que já fomos

é importante para nos compormos

das mil lembranças de um baralho diferente;

não obstante, se te encontro novamente,

procuraremos pretender que ainda somos

o que deixamos de ser mais que repomos

pela ansiedade de amor à nossa frente;

mas recordamos do amor o passamento

e precisamos construir um novo amor,

mais do que um a outra conquistar,

mais do que uma ao outro o sentimento

que foi um dia, em haustos de calor,

para entre os dois um novo amor se elaborar.

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