quinta-feira, 24 de março de 2022


 

 

ESCOLHA IMPROVÁVEL I – 19 MAR 22

(Eleonora Duse, atriz de teatro europeu)

 

Não sei porque fui de minha esposa o escolhido.

Não foi, de fato, por dinheiro ou posição,

que destas tive limitada minha porção:

bem poderia alguém melhor ter obtido.

Não que a tenha em nada destituído,

sempre a mantive em adequada provisão;

sem dar-lhe luxo, dei-lhe a nutrição,

mas muito mais ter podia conseguido.

 

Não foi por falta de outros pretendentes,

do que eu bem melhor aquinhoados,

que lhe dessem vida de luxo ou confortável

e no entretanto, os pôs de lado, descontentes,

mesmo que fossem bem melhor apessoados

ou mais que eu tendo aspecto saudável.

 

ESCOLHA IMPROVÁVEL II

 

Mas aqui estou, porque fui seu escolhido,

mesmo sabendo ser bastante inconveniente;

anos passados, ainda estou presente,

ainda que a tenha alguma vez desiludo;

por corte longa fui enfim introduzido

neste relacionamento um tanto diferente,

até que enfim demonstrasse-se aquiescente

e desde então, temos sempre convivido.

 

Pois de fato, em muitas coisas me ajudou,

como apoio foi-me sempre a garantia,

inda que de ânimo fosse imponderável;

mas quando tive necessidade, me amparou

e novamente esta dúvida me espia:

por que a mim escolheu, tão amorável?

 

ESCOLHA IMPROVÁVEL III

 

Por certo que do amor fui cuidadoso,

nunca retive palavras de carinho,

sempre estive a seu lado no caminho

e no geral demonstrei ser amoroso;

mas a razão de ser assim ditoso,

se bem perdido nestes versos de azevinho,

a dedicar tantas horas neste linho

bordado a versos de modo fabuloso,

 

em tantas horas desse alado conceber,

em tantos meses a desgastar, perdida,

a hora e o tempo que deveriam ser seu,

ainda me foge, pois julguei não merecer

o seu amor através da longa vida,

enquanto ela ainda merece todo o meu!

 

MEMÓRIA PONDERÁVEL I – 20 MAR 22

 

Memórias são memórias, mas contatos

têm existência apenas nas memórias;

e as relações serão mais peremptórias

ou sobrevivem neste fluxo dos fatos?

Quais memórias sobrevivem nos palatos?

Temos na língua arquivo das histórias

de cada sabor de delicadas glórias

ou de cada amargor de azedos pratos?

 

Será preciso que o paladar envie

até o cérebro, para obter perícia,

qualquer gosto que na língua se derrame?

Quando a resposta que de lá se crie

dará tempo ao veneno em sua nequícia,

até que a morte seu império nos proclame?

 

MEMÓRIA PONDERÁVEL II

 

Quais as memórias a viver em teu olhar?

Certamente as manipula o teu quiasma,

atrás da testa, mas será que pasma

a definir qual o valor de algum brilhar?

E se direto ao Sol fores fitar,

sem entender que tua pupila espasma

e que tua vista precisará de cataplasma,

por esse trânsito podes esperar?

 

Ou mesmo no que tange à tua audição,

terão memórias individuais os teus ouvidos,

sem aguardar pela resposta das cocléias?

E se ameaça de estrondosa duração

se manifesta, antes que sejam perdidos

momentos breves para tal preservação?

 

MEMÓRIA PONDERÁVEL III

 

De modo igual, no referente ao tato,

se a retirada é imediata de tua mão,

teriam essas papilas realmente condição

de reagir antes que chegue o desacato?

Ou dependerão da memória nesse fato,

até que chegue desde a mente a permissão,

quando a palma já queimaste sem perdão?

(Para nós menos importante sendo o olfato.)

 

As memórias, embora julgue necessárias,

armazenadas em numerosos escaninhos,

não nos permitem a reação mais imediata

em nossas múltiplas relações diárias,

por isso erramos dos jeitos mais mesquinhos,

enquanto a memória ainda pondera timorata!...

 

DANÇA INCONTROLÁVEL I – 21 MAR 22

 

O tempo da noite trouxe-me a miragem,

toda composta por proposições,

em cada aresta mil preposições,

da cor do vento a esbater a estalagem

em que habita minhalma, na visagem

que recobria de meus olhos suas funções,

quais bactérias a proclamar suas mutações,

na composição negrejante da mensagem.

 

O tempo da noite me soprou o vento,

pelas cocléias reabriu-me o pensamento,

num encontro de diluídas sensações;

o tempo da noite mediu-me o parapeito

e se instalou dentro dalma, com despeito

pelas quimeras que soprei de meus pulmões.

 

DANÇA INCONTROLÁVEL II

 

O tempo da noite fingiu-me dotações,

mentiras a gerar em passatempo,

deixando o sono perdido em tal momento,

psicotrópicas a mesclar-me datações,

num polvorinho de vida e de ilusões,

suas mil palavras assopradas num portento,

liquefazendo ao meu humano figmento,

qual um corpo abraçado em mil paixões.

 

Suas palavras a sussurrar em seiva morna,

entre meus braços devaneio que se torna

quase verdade nesse sonho sem perdões;

quando a palavra se faz vento suave

dentro da mente a flutuar-me feito ave,

seus remígios a bater-me em turbilhões. (*)

(*) As penas-guia nas pontas da asas.

 

DANÇA INCONTROLÁVEL III

 

A palavra em meus braços faz-se humana,

embora eu não soubesse me vigiara,

a palavra que era carne me abraçara

na solidão dessa noite trans-humana.

Vento e palavra na mais sagrada gana,

o tempo ao sonho nessa dança derramara,

a palavra feita carne unhas cravara

e me transpassa em antimonia plana,

 

sem permitir-me, de fato, que vigiasse,

meu relógio enlouquece à cabeceira

e a cabeça se rebolca nessa poeira,

enquanto o vento todo o tempo reclamasse,

até a palavra enroscada no lençol

perder-se inteira em dobras vivas do arrebol.

 

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