O FOGÃO ABANDONADO I – 4 AGO 2021
O fogão novo traz trempes em cruz
e por gestalt,
me parece uma verdura (*)
assim exposta, expectante e pura,
pronta a cozer-se na sua própria luz;
contudo é negra cada trempe que seduz,
queimada em fábrica, sem qualquer ternura,
cada qual boca condenada à sina dura
de não comer nada daquilo que produz!
(*) Temporária configuração
mental.
Hão de dizer-me: é uma máquina somente
e nada tem em si de vegetal,
metal apenas, a aguardar devagarinho;
mas porque só cinco bocas me apresente,
acho que tem algum defeito no formal:
decerto uma se perdeu pelo caminho!...
O FOGÃO ABANDONADO II
O fogão novo produz vários estalos,
alguns deles sem o menor sigilo,
por gestalt
auditiva é como um grilo,
a ranger as suas patinhas sem abalos;
contudo, se melhor for escutá-los,
verifico que os ruídos desse filo
são fáceis de encontrar em seu asilo,
não como insetos, que não se pode achá-los!
Mas o fogão me contempla desconfiado
e desconfiado eu contemplo esse fogão,
pois sinto falta do anterior, gentil e morno
e com seis bocas me parecia admirado,
mas foi tido como certa aberração,
pois cada bolo se entortava no seu forno!
O FOGÃO ABANDONADO III
O fogão novo solerte entrou na casa,
bem na hora em que eu estava descansando,
no mesmo ponto do antigo se instalando,
que foi chutado para alheia vaza!
Ora, depois de vinte anos se descasa
um objeto constantemente trabalhando,
nem sequer FGTS ao pobre dando,
qual matrimônio em que a carícia faz-se rasa...
Depois de anos, decerto traz monotonia,
mas o fogão diariamente nos servia,
nunca afirmou sofrer dor de cabeça!...
Ninguém se importa com o destino que terá,
após divórcio, lançado ao deus-dará,
que a ingratidão humana nunca cessa!...
O ROSTO ABANDONADO I – 5 AGO 21
Já muitas vezes te chamei, desconhecida,
que tens os olhos de todas as mulheres,
os olhos de criança em perscrutares,
olhos de velha cansada e desvalida...
mas nos chamados, é no auge de tua vida
que te contemplo a passar sem me quereres,
imersa sempre em teus próprios quefazeres,
sem sequer tempo de espiar-me, comedida...
Não que te busque penetrar nos olhos,
apenas deles gravo algum piscar,
sem pretender a ninguém acompanhar
ou descobrir a entrada de seus sólios; (*)
apenas deixo-me em mil esferas penetrar
e logo ergo uma vez mais os meus antolhos...
(*) Degraus de entrada de uma residência.
O ROSTO ABANDONADO II
És para mim, de fato, um ser composto,
talvez mais pelo perfume feminino,
que sempre abrange um certo desatino,
em sua passagem, da aurora até o sol posto.
De fato, és para mim traços de rosto,
que não esfolo de ti, qual assassino;
apenas colo em minha retina um brilho fino
dessas cópias de ti, sem mais desgosto.
Uma cópia do olhar,
outra da boca,
talvez apenas de risonha comissura,
o lábio desta, junto ao sulco do nariz,
a orelha doutra, semienvolta na sua touca
e no conjunto, a fisionomia mais pura,
que para mim recomponho qual eu quis.
O ROSTO ABANDONADO III
Não que o faça assim, conscientemente,
hoje em especial, que andam todas mascaradas,
de bandagens suas bocas enfaixadas,
testas despidas despudoradamente;
por traz de máscara bem mais transparente,
eu nem me atrevo a ter ânsias disfarçadas,
são enfermeiras, quiçá, vistas alçadas:
será que porto esse vírus tão valente?
Porém nos sonhos, que consigo controlar,
a minha imagem ostenta um rosto inteiro
e dorme ao lado de meu próprio travesseiro
e suas faces, bem ou mal, posso beijar,
por mais que sejam dessa tal desconhecida,
que se aninhou em minhalma para a vida!
O VENTO ABANDONADO I – 6 AGO 21
Tomei um dia a estrada para o vento,
lá onde os raios montavam sentinela;
fechada a porta, bati em sua janela:
o vento era mulher no firmamento!
A janela me abriu, em brando acento,
não me indagou o que eu queria dela:
olhou-me apenas e afastou-se, bela,
que penetrasse direto no aposento.
Pensei mesmo em indagar nesse momento
se aquela ninfa era o vento verdadeiro:
e se não fosse nada mais que um travesti?
Melhor a dúvida conservar no pensamento,
pois o que importa, se me aceita por inteiro
vento mais belo que jamais eu vi?
O VENTO ABANDONADO II
Palavra alguma me disse em seu abraço,
que o vento é vento e apenas sussurrava,
enquanto em meus cabelos se entranhava
e me tolhia da ausência cada passo;
por que do vento assim busquei o traço,
enquanto o raio em torno cintilava:
com que relâmpago o seu olhar brilhava,
cada corisco emoldurando o meu espaço!
Foi tudo um sonho, talvez, mas me parece
construção mais detalhada da memória,
envolvendo a reluzir cada sentido;
talvez nem fosse o vento nessa prece:
nessa janela que ao amor me deu vitória,
quem sabe a Lua me tivesse recebido?
O VENTO ABANDONADO III
Mas numa noite de Lua enevoada,
talvez pretenda seduzir o Sol,
em sua nudez refletindo o seu farol,
seminudez a avivar paixão fanada;
seminudez a sugerir paixão safada,
algo de escuso escondido do arrebol
algo secreto a ocultar carne de escol,
enquanto a plena nudez é mais sagrada!
A luz da Lua tendo tudo desvelado,
não passa o vento de um carinho seu
e nos seus braços de luz me recebeu,
sobre seu leito de nuvens abençoado,
meu desalento perdido sem receio,
tornei-me vento nesse puro devaneio!
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