segunda-feira, 13 de junho de 2022


 

 

AMOR ESTRANHO I – 11 JUN 22

(Renée Adorée, Cinema Mudo Francês)

 

Amor é um gosto puro de esmeralda,

que queima a vida qual doce centelha,

que queima a língua nesse ardor que espelha

um rio de lava da montanha à falda;

amor é essa fagulha que te escalda,

hibiscos em fulgor, rosa vermelha,

a brasa que te espia só de esguelha,

vaidoso amor que te domina em balda.

 

Mas ninguém quer perder a queimadura,

ainda que veja as bolhas em suas mãos;

mesmo que o beijo queime em dor pungente,

porque tal dor sentes envolta de ternura,

com safenas a amarrar dois corações,

mesmo sabendo quanto amor te mente...

 

AMOR ESTRANHO II

 

As minhas mãos me serviram muito bem,

mãos de trabalho, mãos de datilografia,

de enxada e de picão, mãos de alegria,

de dar prazer quando a amor convém.

As minhas mãos são fortes, como quem

toda a vida labutou, sem fancaria,

mãos de saudade, mãos de nostalgia,

mãos que recordam teus dedos também.

 

São mãos assim entrelaçadas de desejo,

hábeis na pena, hábeis no dedilhar,

mãos de teclado, de cordas e de claves,

mãos de poeta a descrever o beijo,

mãos que sentiram o alheio palpitar,

mãos que o vento dedilhou em sete chaves.

 

AMOR ESTRANHO III

 

São estas mãos que tangem esmeraldas,

rosário puro em seus calhaus de amor,

amor estranho que se compila em dor,

amor das gemas que roubei às faldas,

não de montanhas, mas de ti, às caldas

desse teu corpo que me trouxe ardor,

dessa tua carne a dominar o meu pendor,

qual uma dívida a pagar que nunca saldas.

 

São mãos que moldam lavas em botão,

no acariciar da fonte do carinho,

que sinto impuras para as jóias raras,

que a polpa queimam sem ter compaixão

e que meus pés tiraram do caminho,

em mil tocaias para mim tão caras!...

 

SEDE ESTRANHA I – 12 JUN 2022

 

Eu te percebo como um vulto no horizonte,

longínquo e inacessível, mas tangível,

tão mais tangível quanto inacessível,

que no píncaro de um monte me desponte;

eu te percebo qual murmúrio de uma fonte,

limpa e potável, mas para mim inatingível,

tão mais potável quanto a sede é perecível,

quando a matar com um beijo que me estonte.

 

E então hesito se deva te beijar,

assassinando a sede que me anseia,

faminta a sede que a alma me cerceia,

pois no momento enfim que te alcançar,

não mais te enxergarei como impossível,

nem como um alvo em si mesmo imperecível.

 

SEDE ESTRANHA II

 

Mas eu preciso subir naquele monte,

missão eu tenho que deve ser cumprida,

já uma vez subi, sem nele achar guarida,

foi onti, foi ontonti e tresontonti!...

Tenho uma história que talvez te conte,

embora seja, quiçá, muito comprida,

é a longa história do que passei na vida,

durante onti, no ontonti e tresontonti!...

 

Descobri que lá no alto existe fonte,

cujas águas fui beber com devoção,

nesse meu onti, no ontonti e tresontonti!

Mas transpor ainda busco aquela ponte,

do outro lado de toda a inspiração,

que tive onti, ontonti e tresontonti!...

 

SEDE ESTRANHA III

 

Ao horizonte marchei assim sem mais cuidado,

sem saber se alcançaria algum tesouro,

ou que o vulto apagaria em meu desdouro,

inatingível, para enfim ser alcançado

e tendo a ponte do ontem enfim cruzado,

enchi de beijos o meu bornal de couro,

mostrando a força viril de forte touro,

sem que essa fonte afinal tenha esgotado.

 

Sempre te quis potável no anteontem,

bebi teus beijos em meu trás-anteontem,

mas ainda hoje eu quero te beber...

E o que é melhor, o beijo já roubado,

ou o sonho intangível e intocado,

de que não possa jamais me desfazer?

 

SONO ESTRANHO 1 – 13 JUN 2022

 

Consumo o sono em doses bem pequenas,

algumas vezes não mais que meia hora,

qualquer ruido e o sono esvai-se embora,

abro as pestanas com lágrimas serenas,

mas ainda me estremecem essas cenas

desse outro mundo que minhalma doura,

dessa vivência que a luz acesa gora,

que permanece presa em mim apenas

 

até o instante em que a vida deste lado

a expulse sem piedade do meu fado,

qual em rancor pelo viver que inveja;

só raramente me viro, ainda sonado

e retorno àquela instância que se enseja,

do semblante que retorna e ainda me beija!

 

SONO ESTRANHO 1I

 

Raios de luz través as persianas

vêm da Avenida General Osório,

quais reflexos incontidos de cibório,

meu sonho breve consumido em chams;

é o mês de junho, noites são de porcelanas,

seus dias curtos a refluir em emunctório,

passam os sonhos em fumo de incensório,

nuvens azuis a enfunar antigas damas,

 

que só me surgem quando desperto lá

 fumaça azul ao perceber-me cá,

onde os braços gentis já não me esperam.

E como é passageira essa miragem!

Um gato mia, anunciando a sua passagem

E os panoramas sem pejo já se alteram...

 

SONO ESTRANHO 1II

 

A linguagem das coisas me sufoca,

só quero ouvir a língua das miragens:

tomo as asas de Hermes por carruagens

e novamente minha visão se emboca,

nessa terra de Onyra, que me toca,

dedos de rosa a indicar as suas passagens,

caleidoscópios traduzo em tais mensagens,

busco o delírio e minhalma ali se aloca.

 

Ou é delírio esse contínuo despertar

que me leva a respirar os cobertores

e lençóis e travesseiros me confundem,

nessas imagens corriqueiras que redundem

nessa rotina dos dias opressores,

que cada sonho me conseguem mutilar!

 

SONO ESTRANHO 1V

 

Por certo eu preferia o mundo estranho,

mais do que o mundo de cá acolhedor,

pois nele esculpo a perfeição do amor,

livre de impulso natural tacanho;

nesse horizonte que me não causa lanho

escolheria habitar com mais fervor,

sem dor nem frio, sem morte e sem calor,

só por prazer buscando tomar banho

 

com os olhos de esmeralda que me querem,

mas desvanecem na mágoa de seus ais,

quando esta vida presente me aprisiona;

seus olhos lamentosos que me ferem,

sempre perdidos para o nunca-mais,

 quando a grelha desta vida me retoma!

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