AMOR
ESTRANHO I – 11 JUN 22
(Renée Adorée, Cinema Mudo Francês)
Amor
é um gosto puro de esmeralda,
que
queima a vida qual doce centelha,
que
queima a língua nesse ardor que espelha
um
rio de lava da montanha à falda;
amor
é essa fagulha que te escalda,
hibiscos
em fulgor, rosa vermelha,
a
brasa que te espia só de esguelha,
vaidoso
amor que te domina em balda.
Mas
ninguém quer perder a queimadura,
ainda
que veja as bolhas em suas mãos;
mesmo
que o beijo queime em dor pungente,
porque
tal dor sentes envolta de ternura,
com
safenas a amarrar dois corações,
mesmo
sabendo quanto amor te mente...
AMOR
ESTRANHO II
As
minhas mãos me serviram muito bem,
mãos
de trabalho, mãos de datilografia,
de
enxada e de picão, mãos de alegria,
de
dar prazer quando a amor convém.
As
minhas mãos são fortes, como quem
toda
a vida labutou, sem fancaria,
mãos
de saudade, mãos de nostalgia,
mãos
que recordam teus dedos também.
São
mãos assim entrelaçadas de desejo,
hábeis
na pena, hábeis no dedilhar,
mãos
de teclado, de cordas e de claves,
mãos
de poeta a descrever o beijo,
mãos
que sentiram o alheio palpitar,
mãos
que o vento dedilhou em sete chaves.
AMOR
ESTRANHO III
São
estas mãos que tangem esmeraldas,
rosário
puro em seus calhaus de amor,
amor
estranho que se compila em dor,
amor
das gemas que roubei às faldas,
não
de montanhas, mas de ti, às caldas
desse
teu corpo que me trouxe ardor,
dessa
tua carne a dominar o meu pendor,
qual
uma dívida a pagar que nunca saldas.
São
mãos que moldam lavas em botão,
no
acariciar da fonte do carinho,
que
sinto impuras para as jóias raras,
que
a polpa queimam sem ter compaixão
e
que meus pés tiraram do caminho,
em
mil tocaias para mim tão caras!...
SEDE
ESTRANHA I – 12 JUN 2022
Eu
te percebo como um vulto no horizonte,
longínquo
e inacessível, mas tangível,
tão
mais tangível quanto inacessível,
que
no píncaro de um monte me desponte;
eu
te percebo qual murmúrio de uma fonte,
limpa
e potável, mas para mim inatingível,
tão
mais potável quanto a sede é perecível,
quando
a matar com um beijo que me estonte.
E
então hesito se deva te beijar,
assassinando
a sede que me anseia,
faminta
a sede que a alma me cerceia,
pois
no momento enfim que te alcançar,
não
mais te enxergarei como impossível,
nem
como um alvo em si mesmo imperecível.
SEDE
ESTRANHA II
Mas
eu preciso subir naquele monte,
missão
eu tenho que deve ser cumprida,
já
uma vez subi, sem nele achar guarida,
foi
onti, foi ontonti e tresontonti!...
Tenho
uma história que talvez te conte,
embora
seja, quiçá, muito comprida,
é
a longa história do que passei na vida,
durante
onti, no ontonti e tresontonti!...
Descobri
que lá no alto existe fonte,
cujas
águas fui beber com devoção,
nesse
meu onti, no ontonti e tresontonti!
Mas
transpor ainda busco aquela ponte,
do
outro lado de toda a inspiração,
que
tive onti, ontonti e tresontonti!...
SEDE
ESTRANHA III
Ao
horizonte marchei assim sem mais cuidado,
sem
saber se alcançaria algum tesouro,
ou
que o vulto apagaria em meu desdouro,
inatingível,
para enfim ser alcançado
e
tendo a ponte do ontem enfim cruzado,
enchi
de beijos o meu bornal de couro,
mostrando
a força viril de forte touro,
sem
que essa fonte afinal tenha esgotado.
Sempre
te quis potável no anteontem,
bebi
teus beijos em meu trás-anteontem,
mas
ainda hoje eu quero te beber...
E
o que é melhor, o beijo já roubado,
ou
o sonho intangível e intocado,
de
que não possa jamais me desfazer?
SONO
ESTRANHO 1 – 13 JUN 2022
Consumo
o sono em doses bem pequenas,
algumas
vezes não mais que meia hora,
qualquer
ruido e o sono esvai-se embora,
abro
as pestanas com lágrimas serenas,
mas
ainda me estremecem essas cenas
desse
outro mundo que minhalma doura,
dessa
vivência que a luz acesa gora,
que
permanece presa em mim apenas
até
o instante em que a vida deste lado
a
expulse sem piedade do meu fado,
qual
em rancor pelo viver que inveja;
só
raramente me viro, ainda sonado
e
retorno àquela instância que se enseja,
do
semblante que retorna e ainda me beija!
SONO
ESTRANHO 1I
Raios
de luz través as persianas
vêm
da Avenida General Osório,
quais
reflexos incontidos de cibório,
meu
sonho breve consumido em chams;
é
o mês de junho, noites são de porcelanas,
seus
dias curtos a refluir em emunctório,
passam
os sonhos em fumo de incensório,
nuvens
azuis a enfunar antigas damas,
que
só me surgem quando desperto lá
fumaça azul ao perceber-me cá,
onde
os braços gentis já não me esperam.
E
como é passageira essa miragem!
Um
gato mia, anunciando a sua passagem
E
os panoramas sem pejo já se alteram...
SONO
ESTRANHO 1II
A
linguagem das coisas me sufoca,
só
quero ouvir a língua das miragens:
tomo
as asas de Hermes por carruagens
e
novamente minha visão se emboca,
nessa
terra de Onyra, que me toca,
dedos
de rosa a indicar as suas passagens,
caleidoscópios
traduzo em tais mensagens,
busco
o delírio e minhalma ali se aloca.
Ou
é delírio esse contínuo despertar
que
me leva a respirar os cobertores
e
lençóis e travesseiros me confundem,
nessas
imagens corriqueiras que redundem
nessa
rotina dos dias opressores,
que
cada sonho me conseguem mutilar!
SONO
ESTRANHO 1V
Por
certo eu preferia o mundo estranho,
mais
do que o mundo de cá acolhedor,
pois
nele esculpo a perfeição do amor,
livre
de impulso natural tacanho;
nesse
horizonte que me não causa lanho
escolheria
habitar com mais fervor,
sem
dor nem frio, sem morte e sem calor,
só
por prazer buscando tomar banho
com
os olhos de esmeralda que me querem,
mas
desvanecem na mágoa de seus ais,
quando
esta vida presente me aprisiona;
seus
olhos lamentosos que me ferem,
sempre
perdidos para o nunca-mais,
quando a grelha desta vida me retoma!
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