O QUE RECORDAS I – 2 JUN 22
Diariamente nos lançamos ao futuro,
mas nosso olhar está preso no
passado,
mil dias formando um todo enevoado,
mais que o porvir, nosso antanho é
obscuro.
O que há de vir não é destino puro,
sempre é possível escolher novo
traçado
no ideário quântico que nos é hoje
espelhado,
mas o passado é embaralhado e escuro.
Com certo esforço, de quantos dias te
recordas
com clareza, senão por hipnose?
Tudo indelével no teu subconsciente,
mas com quantos fatos individuais
concordas?
Supões uns poucos numa data em certa
dose,
mas misturados com outros firmemente.
O QUE RECORDAS II
Pensa bem, em teus momentos de
modorra,
quando o sono já se foi e o sonho agita,
ou quando ainda não veio, nessa fita
do devaneio que pelo olhar transcorra;
pensa bem, antes que a luz do dia
morra,
quando em tua câmara já o sono
habita,
nenhum ruído do exterior te incita,
envolva em languidez tua alma
forra...
Sem a diária servidão ao que
acontece,
sem a diuturna obrigação que se
padece
de realizar necessidades corporais
e nem ao menos de meditar em prece,
quando as pálpebras se fecham naturais
e uma preguiça consensual te
aquece...
O QUE RECORDAS III
Ainda lembras o que ontem te ocorreu?
Não é difícil, se o pensamento
errante,
confuso ainda, não te levar adiante,
ainda insistindo nos sonhos que te
deu.
Presta atenção, pensa no que sucedeu,
quase tudo se revela nesse instante,
mesmo aquilo que não foi
interessante,
o bem querido e o mal que acometeu...
Então procura lembrar-te do
anteontem:
talvez te surja uma ocasião marcante,
mas o que houve em teu
trás-anteontem?
E o que ocorreu na semana abandonada
e de que forma se apresentou
constante?
Vês como é frágil tua vida
ultrapassada...?
ALIVIO E PENA I – 3 JUN 22
Nunca é fácil a morte dos amigos,
especialmente se na meia-idade;
se forem velhos, com mais naturalidade,
se ainda moços, enfrentam mil perigos
com o descaso natural da mocidade,
não acreditam que se abram os jazigos,
inquietação pela falta dos abrigos
simplesmente se enfrentam tempestade!
Mas a morte dos parentes já se
espera,
na maioria, são mais velhos do que
nós
e por mais que isto pareça ser atroz,
seu passamento um certo alívio gera:
quando essa longa noite se inicia,
de certo modo, a nossa própria adia!
ALIVIO E PENA II
Surge daqui essa culpa desusada
que acompanha a qualquer
sobrevivente;
não é um remorso real que se
alimente,
mas nossa vida é de fato ensimesmada
e essa alegria, por mais seja negada
ainda persiste de forma permanente;
e se acaso o falecido assim pressente
que sua morte foi tão pouco
lamentada?
Sempre é melhor rezar alguma missa,
para o descanso da alma desvestida,
que não nos venha alguma noite
perturbar,
quando lembramos de lendas tão
castiças,
em que essa alma vagueia malferida
pelos espaços que foi antes habitar?
ALIVIO E PENA III
Mas nem tudo realmente é essa
tragédia,
bem afogamos essa má satisfação
nesse mar de tristezas que a ocasião
nos provoca tal qual enciclopédia;
é questão de recordar qual gimnopédia
mais firmemente nos calou no coração;
são imortais, nos diz a religião,
mas dentro em nós, uma tal certeza é
média.
Só sobrevivem no interior de nós
e já roubaram de nós tantas
lembranças,
muito vivemos no fundo de seus olhos,
seu passamento o nosso próprio algoz,
partem com eles mil retalhos de esperanças,
a ocultar de nós nossos antolhos...
ALIVIO APENAS... I -- 4 JUN 22
Hoje o sol se veio pôr mais cedo;
as vidraças com que antes o acolhia
fechei depressa, ao sentir que me fugia
todo o calor que recolhera a dedo...
mas nessa pressa causamos o segredo
dessa paisagem que por ali se via;
em escala cinza ainda ela existia,
as persianas toda a lançam num degredo.
E quando chove, qualquer pingo de luz
que escorre pelos caixilhos quais burís,
vai-se depressa, qual do vidro um tris;
fica somente o que o olfato nos seduz,
mas não se pode enxergar esse perfume,
que nossa própria solidão nos traz a lume.
ALIVIO APENAS... II
O que fazer, quando ao sol de verão,
bem mais depressa corremos as cortinas,
chegam seus raios como presas assassinas,
abafamento ainda mais nos causarão.
Já o sol da inverno não desperta queimação,
são quase frias as suas centelhas finas,
promessas vagas no fundo das meninas
de cada olho, sem trazer-lhe proteção.
Bem se quisera captar algum calor
e guardá-lo em potes de conserva,
como pêssegos em calda deliciosa,
mas até hoje não alcancei esse pendor,
quando a tampa eu abriria como serva,
para uma noite de inverno carinhosa...
ALIVIO APENAS... III
De forma igual, como guardar-se o frio
dessas tardes que o solstício mais encurta
e que do próprio coração quentura furta,
com arrepios a desolar-se o brio!
Se assim pudesse, espalharia um calafrio
quando a canícula sobre a carne surta,
minha tortura deixando bem mais curta,
qual o murmúrio da cadência de algum rio.
E não se diga por aí
haver ventilador
ou alguma estufa de calor mais terno
ou a eficiência do ar condicionado!
Não quero assim, queria ser senhor,
a misturar a escassez de cada inverno ,
para em verão me ofertar sopro gelado!
Nenhum comentário:
Postar um comentário