terça-feira, 7 de junho de 2022


 

 

O QUE RECORDAS I – 2 JUN 22

 

Diariamente nos lançamos ao futuro,

mas nosso olhar está preso no passado,

mil dias formando um todo enevoado,

mais que o porvir, nosso antanho é obscuro.

O que há de vir não é destino puro,

sempre é possível escolher novo traçado

no ideário quântico que nos é hoje espelhado,

mas o passado é embaralhado e escuro.

 

Com certo esforço, de quantos dias te recordas

com clareza, senão por hipnose?

Tudo indelével no teu subconsciente,

mas com quantos fatos individuais concordas?

Supões uns poucos numa data em certa dose,

mas misturados com outros firmemente.

 

O QUE RECORDAS II

 

Pensa bem, em teus momentos de modorra,

quando o sono já se foi e o sonho agita,

ou quando ainda não veio, nessa fita

do devaneio que pelo olhar transcorra;

pensa bem, antes que a luz do dia morra,

quando em tua câmara já o sono habita,

nenhum ruído do exterior te incita,

envolva em languidez tua alma forra...

 

Sem a diária servidão ao que acontece,

sem a diuturna obrigação que se padece

de realizar necessidades corporais

e nem ao menos de meditar em prece,

quando as pálpebras se fecham naturais

e uma preguiça consensual te aquece...

 

O QUE RECORDAS III

 

Ainda lembras o que ontem te ocorreu?

Não é difícil, se o pensamento errante,

confuso ainda, não te levar adiante,

ainda insistindo nos sonhos que te deu.

Presta atenção, pensa no que sucedeu,

quase tudo se revela nesse instante,

mesmo aquilo que não foi interessante,

o bem querido e o mal que acometeu...

 

Então procura lembrar-te do anteontem:

talvez te surja uma ocasião marcante,

mas o que houve em teu trás-anteontem?

E o que ocorreu na semana abandonada

e de que forma se apresentou constante?

Vês como é frágil tua vida ultrapassada...?

 

ALIVIO E PENA I – 3 JUN 22

 

Nunca é fácil a morte dos amigos,

especialmente se na meia-idade;

se forem velhos, com mais naturalidade,

se ainda moços, enfrentam mil perigos

com o descaso natural da mocidade,

não acreditam que se abram os jazigos,

inquietação pela falta dos abrigos

simplesmente se enfrentam tempestade!

 

Mas a morte dos parentes já se espera,

na maioria, são mais velhos do que nós

e por mais que isto pareça ser atroz,

seu passamento um certo alívio gera:

quando essa  longa noite se inicia,

de certo modo, a nossa própria adia!

 

ALIVIO E PENA II

 

Surge daqui essa culpa desusada

que acompanha a qualquer sobrevivente;

não é um remorso real que se alimente,

mas nossa vida é de fato ensimesmada

e essa alegria, por mais seja negada

ainda persiste de forma permanente;

e se acaso o falecido assim pressente

que sua morte foi tão pouco lamentada?

 

Sempre é melhor rezar alguma missa,

para o descanso da alma desvestida,

que não nos venha alguma noite perturbar,

quando lembramos de lendas tão castiças,

em que essa alma vagueia malferida

pelos espaços que foi antes habitar?

 

ALIVIO E PENA III

 

Mas nem tudo realmente é essa tragédia,

bem afogamos essa má satisfação

nesse mar de tristezas que a ocasião

nos provoca tal qual enciclopédia;

é questão de recordar qual gimnopédia

mais firmemente nos calou no coração;

são imortais, nos diz a religião,

mas dentro em nós, uma tal certeza é média.

 

Só sobrevivem no interior de nós

e já roubaram de nós tantas lembranças,

muito vivemos no fundo de seus olhos,

seu passamento o nosso próprio algoz,

partem com eles mil retalhos de esperanças,

a ocultar de nós nossos antolhos...

 

ALIVIO APENAS... I -- 4 JUN 22

 

Hoje o sol se veio pôr mais cedo;

as vidraças com que antes o acolhia

fechei depressa, ao sentir que me fugia

todo o calor que recolhera a dedo...

mas nessa pressa causamos o segredo

dessa paisagem que por ali se via;

em escala cinza ainda ela existia,

as persianas toda a lançam num degredo.

 

E quando chove, qualquer pingo de luz

que escorre pelos caixilhos quais burís,

vai-se depressa, qual do vidro um tris;

fica somente o que o olfato nos seduz,

mas não se pode enxergar esse perfume,

que nossa própria solidão nos traz a lume.

 

ALIVIO APENAS... II

 

O que fazer, quando ao sol de verão,

bem mais depressa corremos as cortinas,

chegam seus raios como presas assassinas,

abafamento ainda mais nos causarão.

Já o sol da inverno não desperta queimação,

são quase frias as suas centelhas finas,

promessas vagas no fundo das meninas

de cada olho, sem trazer-lhe proteção.

 

Bem se quisera captar algum calor

e guardá-lo em potes de conserva,

como pêssegos em calda deliciosa,

mas até hoje não alcancei esse pendor,

quando a tampa eu abriria como serva,

para uma noite de inverno carinhosa...

 

ALIVIO APENAS... III

 

De forma igual, como guardar-se o frio

dessas tardes que o solstício mais encurta

e que do próprio coração quentura furta,

com arrepios a desolar-se o brio!

Se assim pudesse, espalharia um calafrio

quando a canícula sobre a carne surta,

minha tortura deixando bem mais curta,

qual o murmúrio da cadência de algum rio.

 

E não se diga  por aí haver ventilador

ou alguma estufa de calor mais terno

ou a eficiência do ar condicionado!

Não quero assim, queria ser senhor,

a misturar a escassez de cada inverno ,

para em verão me ofertar sopro gelado!

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