MENTES DE CRISTAL I (27 abr 11)
Revisado 8 jun 2022
(Susan Hayward, época de ouro de Hollywood)
Após reler "Corte Impura",
me palpita,
nesse sabor de mim que então retomo,
que esses mil fantasmas que assim
domo
são mais que propensão que em mim se
agita.
Fico a pensar, ao vagar desta minha dita,
se não seria o oposto que me assoma:
se não me encontro em solitária
coma,
jogado assim numa prisão maldita!...
Quem sabe eu fui destroço do passado
de alguém muito mais vasto do que eu,
que em seu ergástulo então me
aprisionou,
em que me acho agora agrilhoado,
fazendo os versos que me encomendou,
como castigo pelo muito que sofreu!
MENTES DE CRISTAL II
Antigamente, um órgão de cristal
foi construído, algures, na Alemanha.
O seu som era hidráulico, artimanha
que nunca achou um seguidor igual.
Quebravam-se os tubos do órgão,
afinal,
sempre que o frio contra o calor se
assanha;
a própria vibração do som que os
banha,
estilhaçava-os, em pleno festival.
Alfim, depois de morto o construtor,
que era chamado para a manutenção,
aposentaram totalmente o instrumento.
Duzentos anos depois, com grande
amor,
foi restaurado o seu funcionamento,
já com acrílico de mais longa
duração.
MENTES DE CRISTAL III
Mas não faltou quem de tal sonoridade
chegasse a reclamar, por preciosismo,
ou protestando em seu negativismo,
por falso orgulho ou pretensiosidade.
Novos tubos de cristal, noutra
cidade,
acabaram por soprar, com virtuosismo,
e foram instalados, romantismo
manifestado em tal tenacidade...
Não sei se esse órgão se acha ainda
a funcionar em seu poder total:
possuía dele uma bela gravação,
em disco de vinil... soava linda!...
A voz do órgão eram bocas de cristal,
até que um dia se queimou minha
coleção.
MENTES DE CRISTAL IV
Durante o incêndio que sofreu minha
casa,
os dois mil discos de minha
discoteca,
os dez mil livros de minha
biblioteca...
Mas a memória não virou tábula rasa.
E algumas vezes, a lembrança vaza
do órgão de cristal, porém me seca
o olhar, que por prantear não peca
por tanta perda que minha vida atrasa.
E assim escuto, nos antros da
memória,
as bocas de cristal desse
instrumento,
embora nunca, para meu lamento,
tenha encontrado cópia dessa glória
e assim não sei se o som ainda
funciona
ou se somente o esquecimento
o entona.
MENTES DE CRISTAL V – 9 jun 22
Causam meus passos estalos de cristal
por sobre os ladrilhos da calçada,
mas quando o som se esvai, não deixo
nada
que ainda vibre em som mais
magistral.
Porém algures escuto outra passada,
em tiquetaque de relógio natural,
algum acuar de cão ou outro animal,
o pipilar, talvez, da passarada.
Nesse imprevisto encontro uma
harmonia
semiconcreta, totalmente artificial,
qual sua intenção, enigma ou ritual?
De quem os passos que na rua assim
ouvia
e que somente um outro humano
produzia,
desencontrados da escala natural?
MENTES DE CRISTAL VI
Pois na medida em que vai se
aproximando,
o som dos passos mais se fortifica:
efeito Doppler um tal soar indica,
vibração a vibração se vai somando.
Um aeroplano a barreira está quebrando
do som, porém aqui se verifica
como essas vibrações, que multiplica,
meus dois tímpanos velozes
assaltando.
E não consigo deixá-la para trás,
do mesmo modo que os passos na
calçada
ficam mais fortes quando o ar agitam,
em vibração apenas contumaz,
essa acólita fiel da caminhada,
com seus rituais que súbito me
irritam.
MENTES DE CRISTAL VII
Enquanto ando, vai a rua se alargando
e as tijoletas por meus pés escorrem
como um regato gris e logo morrem
às minhas costas, por não estar
olhando.
À esquerda, a catedral vai-se
aprumando,
enquanto os cantos de meus olhos
casas forrem,
talvez mesmo ao calor do sol se
torrem,
se olho para trás, se apequenando,
como se meu próprio olhar as
ampliasse
e só meus passos lhes dessem solidez,
mesmo as pessoas crescem e se
encolhem.
Dizem que efeito da perspectiva se
tratasse,
mas não é a perspectiva o meu arnez,
não são meus olhos que o mundo ao
redor tolhem?
MENTES DE CRISTAL VIII
Até admito que as tais perspectivas
no olhar dos outros a mim também
ampliem;
quando me afasto, também me diminuem,
igual fantoche perante mentes mais
ativas.
Leio de outros as impressões altivas,
qual sobre o mundo de modo igual
atuem,
porém que prova eu tenho que me
cunhem
de maior a menor assim vistas
furtivas?
Minha única certeza é de que o faço,
tal qual se o mundo girasse a meu
redor,
mal-assombrado por minha onipotência,
os demais seres a manter no meu
abraço,
determinando seu porte e cada cor,
que o efeito eu crio em tal
magnificiência!
MENTES DE CRISTAL IX – 10 junho 2022
Da “Corte Impura” meus malvados
cortesões,
a ulular por detrás de fortes grades,
num canto gregoriano de maus frades,
enchem masmorras de vastas vibrações.
Seus lamentos jamais cortam corações
e nem conseguem despertar bondades,
mas os gritos reverberam impiedades
a esbater-se contra outras mil
visões.
E as letras de seus ais já se
misturam
num alfarrábio denegrido de gordura,
são catecúmenos de religiões perdidas
e tais lamentos cá e lá ainda
perduram
em bordalesas de vinícola mistura,
vinho de versos de parreiras
esquecidas!
MENTES DE CRISTAL X
Essas palavras agitadas por clamores,
como rebates de tensões imateriais,
bolas de tênis de raquetes imortais
ou que mergulham em caçapas
incolores.
Nos ricochetes da sinuca há jogadores
sem mãos ou tacos a rebatê-las mais,
redes vazias em gramados estivais,
que ali constroem o som dos
estertores.
Frase após frase das bocas
esfaimadas,
cristais rachando das janelas
matutinas,
mentes impuras de subterrânea voz,
até que aos poucos, sentenças orientadas,
quais redemoinhos em correntes finas,
chegando às mãos do carcereiro
atroz...
MENTES DE CRISTAL XI
Eu tomo as mentes de cristal manchado
e as lapido ao chiado do esmeril,
de cada praga corto a ganga vil,
caleidoscópio criando subornado.
Cada demônio ou lâmia ali guardado,
suas unhas arrancando no gradil,
suas agonias moldando em som gentil,
mais um soneto assim concatenado...
Porém meus Monstros do Id sempre
anseiam
por ter sua voz malévola escutada,
caso contrário, quiçá se extinguirão
e desse modo digladiam e peleiam,
uivando em coro a sua missa
marchetada,
o carcereiro a estilhaçar sem
compaixão!
MENTES DE CRISTAL XII
Assim retorna a insistir perspectiva:
será que sou tão só um prisioneiro,
meu sangue a me sugar o carcereiro,
que em poesia o tornará fonte cativa?
Quem sabe estilhas de cristal ligeiro
seja minha mente que órgão assim
ativa,
apenas um tubo na harmonia rediviva
que o organista já concebeu primeiro?
Do mesmo modo que a visão a vida
amplia
ou para trás a deixa mais estreita,
é o seu olhar a me tornar vibrante?
Sempre uma honra partilhar da
sinfonia,
instrumentista que à partitura se
sujeita,
faceta e aresta de um cristal
gigante!...
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