PANACEIA I (24 JUN 22)
Se não houvesse
morte e nem doença,
não surgiria a
civilização;
continuariam todos
onde estão,
sem precisar de
ideologia ou crença.
Se não houvesse
morte, a fome intensa
nem causaria
preocupação;
se esperaria que os
frutos da estação
na boca aberta
caíssem, qual despensa.
Se não houvesse
morte ou enfermidade,
para que se
construir habitações,
que protegessem as
vastas multidões?
Pois se iriam
acumulando, sem vaidade,
os outros corpos
fornecendo proteções,
como os pinguins em
meio à tempestade...
PANACEIA II
Porém doenças há e
existe morte;
maior rigor produz
pneumonia;
a umidade nos traz
dores e alergia
e outros males de
ainda maior porte.
Destarte, por
trabalho ou pura sorte,
se acha uma caverna
ou mataria
de galhos mais
cerrados e a ventania
não nos atinge as
costelas com seu corte.
Se não houvesse a
morte, bestas-feras
não nos
conseguiriam devorar,
nem seriam
necessárias as esperas
para a caça de
pequenos animais,
para alimento ou
para as peles lhes roubar,
por nossa falta de
pelames naturais.
PANACEIA III
Se não houvesse
morte, a medicina
nunca teria, aos
poucos, confirmado
cada remédio para o
momento asado
ou cada antídoto
que a experiência nos ensina.
Da sangria ao
cataplasma já empregado,
cada tisana uma
melhora pequenina;
surge o chocalho e
a dança se destina,
para espantar os
maus espíritos do lado.
E deste modo, não
haveria biologia,
nem botânica, ou
química, ou alquimia;
foi a morte que as
ciências cultivou.
Por isso, essa
figura de gadanha,
Cujo furor em torno
a ti se assanha,
Ao contrário de
roubar, nos ajudou.
PANACEIA IV
E se algum dia se
descobrisse a cura
da morte e da
doença e toda a dor,
acabaria também
nosso fervor
de lutar por
qualquer coisa que perdura.
Sem a certeza da
morte, qualquer jura
seria quebrada
impunemente, sem terror;
e sem temer o fim
do seu calor,
se esvaziaria a
sensação mais pura.
E de onde os mais
humanos sentimentos,
se os nenezinhos
não fossem ameaçados
pela doença e a
morte; e precisassem,
durante anos, de
proteção e alentos?
E que valor teriam
os bens mais apreciados,
sem se aguardar o
momento em que faltassem?
TU E O OUTRO I (25 JUN 22)
Também é a morte a
razão de todo o amor,
desde aquele
primordial amor materno,
até o orgulhoso,
mas inquieto amor paterno,
na proteção desse
serzinho sem rancor.
Se nidífugos
fôssemos, seria de supor
que não fosse tão
leal o peito terno;
e se relva se
comesse, até no inverno,
onde esse impulso
para o abraço protetor?
Porém somos
nidícolas e surge, então,
visualizada em
sutil contemplação,
essa gama de
emoções tão conflitantes,
que a seguir
projetamos ao redor,
tornando o círculo
cada vez maior,
sem encaramos mais
o mundo como dantes.
TU E O OUTRO II
Assim é a morte de
todo o ódio a razão.
Se eterno fosses,
não te faria falta
dos bens materiais
a grande malta:
tempo haveria para
a substituição;
ou mesmo da emoção
que mais te exalta,
sentirias bem menor
deprivação;
há indiferença no
eterno sem paixão:
é o sabor da impermanência
que te assalta.
Mas quando a ti
usurpam de algum bem,
seja ele material
ou sentimento,
de ti roubam
igualmente teu futuro;
do usufruto se vão
anos também
e qual um vácuo se
expande tal momento,
pela rapina de um
sentimento puro.
TU E O OUTRO III
É bem difícil
entender a eternidade,
para nós seres no
tempo compreendidos;
por isso tantos se
sentem preteridos,
sem concessão da
divinal longanimidade
e seus pedidos de
maior necessidade,
feitos de fé e de
fervor nutridos,
por mais que rezem,
não percebem atendidos:
Papai Noel não
existe, é bem verdade.
Mas para Deus,
mesmo feito de bondade,
não existe tempo,
desde o seu início,
nem duração; e nem
tampouco o seu final,
mas tudo goza de
simultânea intensidade.
Como, então, te
prestará um benefício,
se já contempla seu
desfecho natural?
TU E O OUTRO IV
Mas, por certo, não
é essa a eternidade
que alcançarias, se
não mais houvesse morte;
sempre haveria do
nascimento o norte,
indefinida que
fosse a infinidade;
nem tampouco
enxergarias com verdade,
esse forma que teu
fado ainda comporte;
só lembrarias do
antanho a antiga sorte,
sempre o porvir em
véu de obscuridade.
Abandonarias
somente essa ansiedade
pela incerteza
sempre vaga do futuro;
só perderias do
usufruto poucos anos,
amor ou bem em
recuperabilidade,
a anestesia a nos
tornar insanos...
Antes a morte que
tal fadário impuro.
O CANTO DO CROCHÉ
I (26 JUN 2022)
A vida é um
magnífico bordado,
em que as luzes
numa teia se entrelaçam,
em que as sombras
se misturam e perpassam,
cada torcida uma
coleta do encantado,
cada arrecada uma
réstia do passado,
em que todos os
males se disfarçam,
nossas culpas,
pouco a pouco, despedaçam,
nossos erros em
destino amarfanhado,
renda de bilro uma
tal especiaria,
um bastidor contra
o vento sobranceiro,
o progresso a
madurar de cada feto,
nesse retrós de
canto, em que se cria
tapete mágico a
passar ligeiro,
no rendilhado do
derradeiro afeto.
O CANTO DO CROCHÉ
II
Antigamente, com
perícia se fazia
sobre a pedra, um
bordado polverento,
renda de mármore,
ibérico portento,
que uma influência
islâmica trazia;
ainda perdura a
bela cantaria,
embora hoje não se
encontre igual assento;
outra escultura, já
no Renascimento,
sem a riqueza dos
detalhes à porfia.
Fosse embora de
mesquita ou sepultura,
o rendilhado
imitava a humana vida,
cheia de voltas,
desencontros e meneios,
cada voluta
conduzindo a nova agrura
que no fundo do
peito acha guarida,
nessas folhas de
acanto dos receios.
O CANTO DO CROCHÉ
III
Ainda existem
antigos bastidores,
de fato, em maioria
já empenados,
em que torçais de
linha, entrelaçados
pelas agulhas de
artesãos e criadores
imitavam nossa vida
em destemores,
pavões e damas em
rendas de laqueados
ou nesses velhos
panos tricotados,
através dos
invernos e tremores,
que serviam de
coberta às bordadeiras,
enquanto se
aplicavam às tarefas,
longas agulhas ou
finas de croché,
suas vistas
desgastando por inteiras,
no cuidadoso tecer
dessas sanefas
para antepêndios da
verdadeira fé.
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