sexta-feira, 30 de dezembro de 2022


 

 

arando os mares i  (10/2/2009)

(Esther Williams, apogeu de Hollywood)

 

em torno a nós traçamos cinco círculos:

o mais íntimo de todos é o do ser,

depois alguém que nos reparte o seu viver

e então vêm a família e os amigos...

 

o quarto círculo terá vários rótulos:

pode ser o trabalho ou o conviver,

mesmo o lugar em que vamos a comer;

muitos estranhos e uns poucos inimigos.

 

e, finalmente, abrimos para o mundo

a nossa intimidade mais social,

nesse incluímos toda a humanidade,

 

no quinto círculo, de amplidão profundo,

em que encaramos o globo natural

e nos abrimos para a eternidade.

 

arando os mares ii

 

não podemos limitar as amizades

àqueles que gostamos, que afinal,

o mundo é amplo demais para a total

exclusão das demais comunidades.

 

mas preferimos certas etnicidades

trazer para mais perto, em semental

ágil e vigoroso, em rubro sal,

abrangendo numa só as fraternidades.

 

se julgarmos ser apenas importante

o nosso círculo interno, descartamos

mil avenidas de cooperação,

 

mas se incluirmos nesse mesmo instante

todos quantos encontrarmos, completamos

o grande círculo da aproximação.

 

arando os mares iii

 

somos mais próximos do que nos parece:

através dos milênios, cruzamentos

foram reunidos ao longo dos momentos

de paz e guerra, de maldição e prece.

 

enquanto a longa teia se entretece,

genótipos se juntam, fragmentos

penetram os carnais integumentos,

a vida surge e a humanidade cresce.

 

e nesses mares, não rejeites teu irmão,

tão só porque pareça diferente;

tais diferenças são milimetrais...

 

bem lá no fundo, cada coração

bate no mesmo toque complacente

e os glóbulos vermelhos são iguais.

 

arando os mares iv

 

pois julga bem a que ponto são pequenas

da humanidade as grandes diferenças,

montes e vales em vastidões extensas,

usando saias de palha ou mesmo penas,

 

talvez por tradição a mostrar kilts de lã,

diversamente de calças ou bombachas,

saiotes gregos, albornozes ou as faixas,

ostentando turbante, brandindo iatagã!

 

olha os crânios que recobrem tantas toucas,

espia por dentro ou por baixo dessas roupas,

que toda pele encontrarás como uma só.

 

marcando o ventre todos tem o seu umbigo,

e sem esforço eu nem sequer consigo

recordar que igual a todos já fui pó.

 

arando os mares v

 

não espero ser feliz.  felicidade

é algo que se dá e distribui.

é mesmo assim que a religião instrui:

"amai-vos uns aos outros", em verdade!

 

e, desse modo, o amor da humanidade

(de cujo amor até empós eu fui)

se reduz lentamente e assim inclui

apenas os amigos, o bairro, uma cidade...

 

não espero ser feliz.  mas sei que devo,

se possível me for, dar do que tenho

e provocar sorrisos temporários...

 

então demonstro quanto amor eu levo

e assim me esforço, no maior engenho,

a recolher em mim sorrisos vários...

 

arando os mares vi

 

embaixo da cidade existe a terra

e existe terra embaixo da floresta;

existe terra sob toda a festa

e terra existe sob toda a guerra.

 

embaixo desta vida, que se emperra,

existe terra e quanto nos atesta;

que a última verdade nos infesta

e é a terra que tal vida nos encerra.

 

pois somos todos filhos do planeta,

que um dia nos consome, em plenitude

e fecundamos nossa mãe em tal incesto.

 

nessa terrível ejaculação secreta,

em que toda consciência, suave ou rude,

se dilui e se desmancha num só gesto.

 

arando os mares vii – 30 dezembro 2022

 

dos cinco círculos formamos nós o sexto,

compartilhado com milhares de animais,

alimentados por bilhões de vegetais,

por sobre o eterno mineral palimpsexto,

 

que apagamos com nosso passo lesto,

para ali descrever mil vaidades triunfais

que promulgamos (ou milagres divinais),

que o mineral logo apaga em breve gesto.

 

maior que nós é sempre a natureza

e a ela nos reunimos nesse pasmo,

quando escorremos na final certeza,

 

em que as próprias entranhas nos abrimos

e ejaculamos no derradeiro orgasmo,

com que à terra finalmente nos unimos.

 

arando os mares viii

 

ou nos perdemos no arar dos mares,

passam as naves cheias de imponência,

até que venha das tormentas flatulência

e naufragamos, quais a gases similares

 

e não somente dos barcos os vagares,

sempre que o corpo enfrenta sua veemência

e o mar o engole muito além de sua potência,

nas águas lavra um canto de pesares.

 

bebendo as vagas que vê na superfície,

para depois ir afundando mais e mais,

até plantar-se qual semente lá no fundo,

 

nova camada no lodo da imundície,

a dissolver seus elementos naturais,

no matrimônio final e mais profundo.

 

arando os mares ix

 

só assim a terra e a água fecundamos,

nosso momento de entrega mais completa,

vai-se a carne, afinal, que nos afeta,

certeza plena de que todos partilhamos

 

e o que resulta dos restos que deixamos,

nessa assertiva que final nos intercepta,

seria assim puro tributo à mãe dileta

ou ao pai oceano de que todos derivamos?

 

retorno ao ventre de negror materno,

retorno ao sêmen do fragor paterno,

somos das ondas em maré ejaculação,

 

que até hoje ainda esfrega nas areias

restos moídos da cauda das sereias,

para aos crustáceos dar alimentação.

 

arando os mares x

 

e o sétimo círculo existe derradeiro,

maior que a terra ou do que o vasto oceano,

incompreensível para o engenho humano,

esse estelar que à noite canta o seresteiro,

 

constelações a nos soprar um som brejeiro,

da música das esferas o desmedido arcano

que nos convida em seu desejo soberano

a nos mesclarmos com seu fulgor inteiro,

 

porque filhos do sol somos todos certamente,

sem seu calor não haveria brotação

e ao mesmo tempo a sua vasta radiação

 

em seu tremendo orgasmo de ironia,

toda essa vida que criou, finalmente trairia,

ao desintegrá-la até o neutronamente.

 

arando os mares xi

 

hoje ainda buscamos o amanho desse mar,

muito menos que o de nosso pai oceano,

ao desmanchar-nos nele em qualquer ano,

em oposto à terra que o quer delimitar,

 

bolha de gás que se dilui no ar,

todo o planeta terá seu dia profano,

quando seu sol, em derradeiro engano,

irá em fragor e luz se dissipar.

 

sétimo círculo, será o mais perigoso?

na via láctea de radiação mortal,

cujos mundos se revestem de negror,

 

e o pluriverso, a nós tão dadivoso,

na majestade da contração final,

dará outro à luz mais pleno de vigor.

 

arando os mares xii

 

na busca enfim do centro do universo,

a via láctea arando o cosmos sem pensar,

imensa estrela em luzir negro a acompanhar,

toda a galáxia em um só átomo submerso,

 

e quando consumir-se o pluriverso,

como um buraco negro talvez tudo irá matar,

em seu capricho ansiando o cosmos devorar,

quiçá já construído alhures seu inverso.

 

a terra aramos e aramos todo o mar,

o mar e a terra também arando o sol,

o sol rasgando o cosmos em charrua

 

e esse cordão de leiva a palpitar

irá alimentar as cordas do arrebol,

única célula da final estrela nua.

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