arando os mares i (10/2/2009)
(Esther Williams, apogeu de Hollywood)
em torno a nós traçamos cinco círculos:
o mais íntimo de todos é o do ser,
depois alguém que nos reparte o seu viver
e então vêm a família e os amigos...
o quarto círculo terá vários rótulos:
pode ser o trabalho ou o conviver,
mesmo o lugar em que vamos a comer;
muitos estranhos e uns poucos
inimigos.
e, finalmente, abrimos para o mundo
a nossa intimidade mais social,
nesse incluímos toda a humanidade,
no quinto círculo, de amplidão profundo,
em que encaramos o globo natural
e nos abrimos para a eternidade.
arando os mares ii
não podemos limitar as amizades
àqueles que gostamos, que afinal,
o mundo é amplo demais para a total
exclusão das demais comunidades.
mas preferimos certas etnicidades
trazer para mais perto, em semental
ágil e vigoroso, em rubro sal,
abrangendo numa só as fraternidades.
se julgarmos ser apenas importante
o nosso círculo interno, descartamos
mil avenidas de cooperação,
mas se incluirmos nesse mesmo instante
todos quantos encontrarmos, completamos
o grande círculo da aproximação.
arando os mares iii
somos mais próximos do que nos parece:
através dos milênios, cruzamentos
foram reunidos ao longo dos momentos
de paz e guerra, de maldição e prece.
enquanto a longa teia se entretece,
genótipos se juntam, fragmentos
penetram os carnais integumentos,
a vida surge e a humanidade cresce.
e nesses mares, não rejeites teu irmão,
tão só porque pareça diferente;
tais diferenças são milimetrais...
bem lá no fundo, cada coração
bate no mesmo toque complacente
e os glóbulos vermelhos são iguais.
arando os mares iv
pois julga bem a que ponto são pequenas
da humanidade as grandes diferenças,
montes e vales em vastidões extensas,
usando saias de palha ou mesmo penas,
talvez por tradição a mostrar kilts de
lã,
diversamente de calças ou bombachas,
saiotes gregos, albornozes ou as faixas,
ostentando turbante, brandindo iatagã!
olha os crânios que recobrem tantas
toucas,
espia por dentro ou por baixo dessas
roupas,
que toda pele encontrarás como uma só.
marcando o ventre todos tem o seu umbigo,
e sem esforço eu nem sequer consigo
recordar que igual a todos já fui pó.
arando os
mares v
não espero
ser feliz. felicidade
é algo que
se dá e distribui.
é mesmo
assim que a religião instrui:
"amai-vos
uns aos outros", em verdade!
e, desse
modo, o amor da humanidade
(de cujo
amor até empós eu fui)
se reduz
lentamente e assim inclui
apenas os
amigos, o bairro, uma cidade...
não espero
ser feliz. mas sei que devo,
se possível
me for, dar do que tenho
e provocar
sorrisos temporários...
então
demonstro quanto amor eu levo
e assim me
esforço, no maior engenho,
a recolher
em mim sorrisos vários...
arando os
mares vi
embaixo da
cidade existe a terra
e existe
terra embaixo da floresta;
existe terra
sob toda a festa
e terra
existe sob toda a guerra.
embaixo desta
vida, que se emperra,
existe terra
e quanto nos atesta;
que a última
verdade nos infesta
e é a terra
que tal vida nos encerra.
pois somos
todos filhos do planeta,
que um dia
nos consome, em plenitude
e fecundamos
nossa mãe em tal incesto.
nessa terrível
ejaculação secreta,
em que toda
consciência, suave ou rude,
se dilui e se
desmancha num só gesto.
arando os
mares vii – 30 dezembro 2022
dos cinco
círculos formamos nós o sexto,
compartilhado
com milhares de animais,
alimentados
por bilhões de vegetais,
por sobre o
eterno mineral palimpsexto,
que apagamos
com nosso passo lesto,
para ali descrever
mil vaidades triunfais
que
promulgamos (ou milagres divinais),
que o mineral
logo apaga em breve gesto.
maior que nós
é sempre a natureza
e a ela nos
reunimos nesse pasmo,
quando
escorremos na final certeza,
em que as
próprias entranhas nos abrimos
e ejaculamos no
derradeiro orgasmo,
com que à
terra finalmente nos unimos.
arando os
mares viii
ou nos
perdemos no arar dos mares,
passam as
naves cheias de imponência,
até que venha
das tormentas flatulência
e
naufragamos, quais a gases similares
e não somente
dos barcos os vagares,
sempre que o
corpo enfrenta sua veemência
e o mar o
engole muito além de sua potência,
nas águas
lavra um canto de pesares.
bebendo as vagas
que vê na superfície,
para depois
ir afundando mais e mais,
até
plantar-se qual semente lá no fundo,
nova camada
no lodo da imundície,
a dissolver
seus elementos naturais,
no matrimônio
final e mais profundo.
arando os
mares ix
só assim a
terra e a água fecundamos,
nosso momento
de entrega mais completa,
vai-se a
carne, afinal, que nos afeta,
certeza plena
de que todos partilhamos
e o que
resulta dos restos que deixamos,
nessa
assertiva que final nos intercepta,
seria assim puro
tributo à mãe dileta
ou ao pai
oceano de que todos derivamos?
retorno ao ventre
de negror materno,
retorno ao
sêmen do fragor paterno,
somos das
ondas em maré ejaculação,
que até hoje
ainda esfrega nas areias
restos moídos
da cauda das sereias,
para aos
crustáceos dar alimentação.
arando os
mares x
e o sétimo
círculo existe derradeiro,
maior que a
terra ou do que o vasto oceano,
incompreensível
para o engenho humano,
esse estelar
que à noite canta o seresteiro,
constelações
a nos soprar um som brejeiro,
da música das
esferas o desmedido arcano
que nos
convida em seu desejo soberano
a nos
mesclarmos com seu fulgor inteiro,
porque filhos
do sol somos todos certamente,
sem seu calor
não haveria brotação
e ao mesmo
tempo a sua vasta radiação
em seu
tremendo orgasmo de ironia,
toda essa
vida que criou, finalmente trairia,
ao desintegrá-la
até o neutronamente.
arando os
mares xi
hoje ainda
buscamos o amanho desse mar,
muito menos
que o de nosso pai oceano,
ao
desmanchar-nos nele em qualquer ano,
em oposto à
terra que o quer delimitar,
bolha de gás
que se dilui no ar,
todo o
planeta terá seu dia profano,
quando seu
sol, em derradeiro engano,
irá em fragor
e luz se dissipar.
sétimo círculo,
será o mais perigoso?
na via láctea
de radiação mortal,
cujos mundos
se revestem de negror,
e o pluriverso,
a nós tão dadivoso,
na majestade
da contração final,
dará outro à
luz mais pleno de vigor.
arando os
mares xii
na busca
enfim do centro do universo,
a via láctea
arando o cosmos sem pensar,
imensa
estrela em luzir negro a acompanhar,
toda a
galáxia em um só átomo submerso,
e quando
consumir-se o pluriverso,
como um
buraco negro talvez tudo irá matar,
em seu capricho
ansiando o cosmos devorar,
quiçá já
construído alhures seu inverso.
a terra
aramos e aramos todo o mar,
o mar e a terra
também arando o sol,
o sol
rasgando o cosmos em charrua
e esse cordão
de leiva a palpitar
irá alimentar
as cordas do arrebol,
única célula
da final estrela nua.
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