ESPELHOS VAZIOS I (2008)
(Joanne Woodward)
Ela se pôs a me escrever de novo
e, em cada traço que de sua alma expunha,
a minha despertava, testemunha
de sentimentos que jamais reprovo.
São frases simples, orvalhos de renovo,
a pederneira que estilhaça a cunha,
o pesadelo de que logo se estremunha,
portões de aço com cadeado novo.
São assim as suas frases, confissões
que brotam lá de dentro, mil fagulhas
da lareira de uma alma opalescente.
E assim em mim renascem emoções
que me perfuram quais doces agulhas,
no mais recôndito âmago da mente...
ESPELHOS VAZIOS II (15/2/2009)
As coisas mudam inesperadamente.
É como se outro mundo,de repente,
trilhasse agora, mudo, impenitente,
abandonando os alvos mais antigos.
Que se volte para mim, em pleno amor,
quem tanto mal, em antigo despudor,
já me causou e, em vago resplendor,
me abra a porta dos vazios abrigos!?...
E ao mesmo tempo, a dúvida ligeira
me torna agora e fico atribulado,
pois como irei domar tal ilusão...?
Que já antes controlou-me a alma inteira,
só me deixando ressaibo amargurado
e quebradiço inteiro o coração...
ESPELHOS VAZIOS III
De certo modo, essa atualização
do inatingível me governa a vida.
É como se qualquer obrigação
fosse posta de lado, em despedida.
Que até a minha tarefa mais garrida
se descartasse, sem consideração,
a troco dessa ânsia enlouquecida
de captar uma nova dimensão...
Até parece que a própria alma sente
tal parasita nutrir mais importante,
do que negar-se qualquer satisfação.
Porque esse amor, se forte está presente,
pouco se importa com o sonho delirante
e só me quer devorar o coração.
ESPELHOS VAZIOS IV
E aqui afirmo e ajo diferente,
como se fosse altruísta, totalmente,
e não quisesse, de fato, egoistamente,
tomar só para mim o seu afeto.
E conservá-la debaixo de meu teto,
sem perceber, em ânsia permanente,
que poderá sem mim, bem claramente,
viver melhor, permanecendo ausente.
E mesmo assim, o coração humano
quer a si mesmo e seu próprio interesse,
mais que o dos outros, em dote infeliz,
porque, de fato, só busca o próprio engano,
pois diz amar e balbucia prece,
mas só quer devorar, como eu já fiz.
ESPELHOS VAZIOS V
Quando se ama, existe uma esperança
de se poder mergulhar noutras pupilas,
de tomar essas íris como ancilas,
egoísmo vasto, tal e qual o de criança;
ou ao contrário, a mente não descança
enquanto não mergulha nas argilas
da melanina, despindo-se em esquilas
até perder-se na retícula das danças
que ali transcorrem em manifestação
de sentimentos mais amplos do que o ego
que nesses olhos pretende-se mesclar,
na mais estranha e arcaica comunhão
a drapejar em tal constante apego,
por desmanchar-se e se multiplicar.
ESPELHOS VAZIOS VI
Os olhos a nossos olhos fotografam
em tais momentos de contemplação,
de nosso par total penetração,
enquanto sonhos dentre os seus se grafam,
mas nessa absorção nunca se abafam,
porém se abrangem em dupla excitação,
tornado duplo o nosso coração,
mas nesse pulsar duplo não se estafam;
sem que de fato haja intercâmbio realmente:
não é que nos mudemos a outros olhos
ou que outros olhos o nosso olhar ocupam,
mas que em ambos os olhares é presente
a dupla vida, retirados os antolhos
com que quaisquer outros olhos nos apupam.
ESPELHOS VAZIOS VII
Quando se olha no espelho, algum reflexo
o nosso corpo imita e o nosso rosto;
nem sempre é imitação a nosso gosto,
por mais fiel que se apresente-nos seu nexo,
pois essa imagem raro dá o seu amplexo:
é simples luz, sem prazer e sem desgosto,
desaparece tão breve esteja posto
o sol luzente que ali produz o anexo,
pois nem tocamos a nós mesmos na vidraça,
a chapa é lisa e está desnuda de calor
e nem ao menos para nós é transparente;
se nos copia, o faz só por pirraça,
de uma inversão total mostra o pendor,
quando o fitamos com anseio ingente.
ESPELHOS VAZIOS VIII
Não nos repete na mesma conjunção:
para o seu braço esquerdo, tem direito,
que assim nos mostra, por mais seja perfeito:
para o direito, da esquerda traz visão.
Enquanto aqui apresentamos dimensão
em três planos, isso ali não é aceito,
pois é bidimensional esse sujeito:
se nos contempla, é falsa sua expressão.
Se nosso corpo é morno, o seu é frio
e essa imagem manifestada contra nós
um outro ângulo possui no especular,
mostra o sorriso com bem diverso brio,
como se o mundo de que estivesse empós
fosse composto de rancor e não de amar.
ESPELHOS VAZIOS IX
Mas esse espelho que é dito espelho d’alma
nos corresponde emoção por emoção,
quando tomado da mesma exaltação,
quando o triunfo agita a mesma palma,
quando reflete nosso olhar em plena calma,
qualquer que seja ali o domínio da paixão,
sem recusar-nos pura e clara aceitação
na lágrima do olhar que nos embalma.
O olhar se banha em tal poça de pranto,
ondulado de blandícia e nostalgia,
sem que haja dor nessa lágrima que oscila
e então percorre das vistas cada canto,
preso no espanto da cálida alegria,
um duplo lago no brilho da pupila.
ESPELHOS VAZIOS X
Mas quando o olhar não vê o que procura,
é outra a sensação que nos recebe,
se verdadeiro amor não se concebe,
porém ciúmes rebrotados em tortura;
nesse amor falso, a imagem não perdura;
ela se oculta enquanto a nossa bebe,
uma cortina se faz de espinho ou sebe,
por que avalia com expressão bem dura.
Pois esses espelhos de olhar estão vazios
e nossa imagem só se busca ali em vão;
talvez se encontre a sugestão de sexo,
no baile singular dos olhos frios,
avaliadores agiotas que eles são,
a calcular seu lucro em tal amplexo.
ESPELHOS VAZIOS XI
Vazios apenas os teus olhos em franqueza,
mesmo espelhando-me qualquer cintilação,
sem ser mais que um refletir dessa paixão
que em nosso olhar perceberam com certeza,
sem lealdade, por mais vasta a sua beleza,
são olhos de sereia e de medusa são,
a transformar-nos em pedra o coração,
como é de pedra esse olhar de tal dureza.
Não obstante, tais vistas perscrutam,
quiçá buscando achar em nós retorno,
olhar vazio tal qual o que mostraram
e no espaço intermédio os olhos lutam,
sem mais calor do que um lampejo morno,
sem explosão, pois nunca estilhaçaram.
ESPELHOS VAZIOS XII
Mas de outras vezes, é o contrário que sucede:
contemplas olhos de carinhos cheios,
amor brotando dos mais singelos veios,
mas dá carinho quem de nós carinho pede;
só que não passam por tua própria rede,
pois apenas lhes transmites teus receios,
embora então envidem novos meios
para abrandar a quem amor não cede...
Pois são tuas vistas unidimensionais,
vazias as imagens com que visas
olhos sinceros e tridimensionais,
nesse vago destino dos mortais,
de transmitir de si figuras lisas,
cacos de espelho que arestas têm mortais.
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