domingo, 25 de dezembro de 2022


 

 

VISÕES DIFUSAS I – 21 DEZ 2022

 (Pola Negri, a namorada de Rodolfo Valentino)


nas lágrimas do tempo eu sigo empós tua imagem,

que o tempo chora um instantâneo a cada vez,

somente na encruzilhada de suas lágrimas me vês,

sempre um pouco distorcida em sua passagem,

permanente a difração nessa paisagem,

linhas sinuosas que me percorrem toda a tês,

ainda embora recomposta não é o que crês,

não há uma figura especular de igual contagem.

 

Pois sempre o tempo reconforma essa figura,

a cada vez quer perpassou sinuosidade,

já um pouco se fez a imagem envelhecida,

porque essa lágrima da imagem nunca é pura,

sempre que passa da curva a cavidade,

nova ilusão quer nos fazer apercebida...

 

VISÕES DIFUSAS II

 

não age o tempo como os pixels da tela, (*)

que quando for deixada a descansar,

simplesmente se torna a desenhar,

nesse requadro a parecer contê-la;

porém essa cobertura tão singela

é um turbilhão que não para de chegar,

linha após linha renova em pixelar,

jamais conseguirás outra vez vê-la

 

como no rio de heráclito, o obscuro,

jamais te podes banhar nele duas vezes:

de modo idêntico a imagem demudou,

feita no tempo que sempre é algo perjuro,

da lágrima e da tela em mil revezes,

nunca imagem ou lágrima vertida retornou.

(*) Picture Cells

VISÕES DIFUSAS III

 

nas lágrimas do tempo eu vejo a tua figura:

igual qual vês a minha, é distorcida,

nunca a real imagem poderá ser percebida,

nunca a certeza de sua visão mais pura,

somente a ilusão de tua face me perdura,

cada figura de teu ontem foi perdida,

a cada vez que o tempo pisca é destruída,

silhueta apenas ilusória em sua candura.

 

não admira que te transmutes tanto,

quem vejo hoje a mesma já não é

que encarei nos mil ontens de minha vida,

sem que deixe de te amar nesse entretanto,

pois no fundo de meus olhos guardo até,

uma por uma, cada lágrima esorrida.

 

VISÕES SOMBRIAS I – 22 DEZ 22

 

até o fogo tem sombra e tremeluz,

enquanto as flamas crepitam na lareira,

por mais que a sombra não se perceba inteira,

não lhe fazem os tijolos plena jus,

mas quando os galhos são postos em cruz,

do acampamento no centro da fogueira,

se expande a sombra luzidia e altaneira,

sobre os rostos se reflete e se conduz.

 

toda a sombra se acha ali, avermelhada,

outras vezes amarela e mesmo azul,

as chamas brancas só surgem na fornalha

e até a sombra nesse forno é devorada,

resta apenas o clarão a nos fitar exul,

enquanto sopra o fole e a luz se espalha.

 

VISÕES SOMBRIAS II

 

de certo modo, a sombra da fornalha

é esse calor que aquece uma bigorna

e que o metal em objeto torna,

consoante o esforço do ferreiro nela espalha,

a cada golpe com que o ferro malha,

quando a sombra das fagulhas se contorna,

cada centelha que o derredor adorna

logo se apaga e mesmo a sombra falha.

 

contudo a sombra do fogo nos aquece,

enquanto aos poucos nos rodeia inteiramente,

envolvidos por tal sombra luminosa,

sombra de fogo nos recama como prece,

em nós a sombra se mostra persistente,

sombra do sangue a farfalhar preciosa!

 

VISÕES SOMBRIAS III

 

até a sombra tem fogo e nos atinge,

com precisão totalmente irregular,

em seu brilho escurecido e singular,

que seja fogo ansiosamente finge;

da sombra o fogo toda a pele tinge,

não mais que a sombra podemos respirar,

o calor ígneo nos poderá queimar

e assim a sombra a nossa carne cinge

 

e a sombra assombra quando se distribui

por nossos cantos escondidos e escaninhos,

enquanto o fogo afogueia a nossa face

e a sombra desce e dentro em nós dilui,

sem enxergarmos das artérias os caminhos,

por mais que ao rosto o fogo se estampasse.

 

VISÕES ENCEGUECIDAS I – 23 DEZ 2022

 

antigamente, durante o medioevo,

raspavam monges cuidadosamente,

com a ponta de facas bem assente,

os caros pergaminhos e papiros;

por cima destes, ao santo que era servo,

vinha o copista e redigia moralmente

hinos e cânticos da moral corrente,

apagando dos pagãos os velhos giros.

 

assim pratico também os mesmos gestos,

apagando com cuiddo minha vivência,

com reescritura de sabores mais diversos,

que meus poemas são palimpsestos

e nem eu sei, ao ver-lhes a inocência,

o que encontrei por detrás destes mil versos.

 

VISÕES ENCEGUECIDAS II

 

quase todos só nos mostram o melhor,

nos seus sorrisos falsos e brilhantes,

buscando mais mostrar-se interessantes,

em sua caça de troféus sempre maior;

só é sincero quem mostra o seu pior,

em momentos de certeza mais confiantes,

sem mostrar seus defeitos desde antes,

causa um desgosto que espera ser menor.

 

pois se aquela que nos ama nos aceita,

após saber com quem está lidando,

irá mais firme relação alicerçando,

do que quem por só defeito nos rejeita,

porque, afinal, só se amam corações

pela impureza que têm em seus senões.

 

VISÕES ENCEGUECIDAS III

 

há muito tempo eu soube que confiar

nessa peças que recobrem tabuleiro

do destino, em um lance corriqueiro,

seria uma ilusão que não devia albergar,

já que estas configurações a me rodear

são transformadas no lance mais ligeiro,

pela pessoa que se ama ou companheiro,

dessa partida em um eterno trapacear.

 

assim só posso depender da posição

em que dispus as minhas próprias peças,

no alicerçar de meus castelos sobre areias;

então por que é, ao sofrer desilusão,

que sinto algum momento em que me esqueças,

como se o sangue não corresse mais nas veias?

 

 

 

 

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