ISQUEMIA I
(26/12/2009)
Escravo deste corpo, sou a besta
de carga do capricho feminino;
esgotado de injúrias, sou a festa
de azorrague cruel e dançarino,
que baila nas minhas costas e que encesta
talho após talho, grande ou pequenino;
seu galope provocando meu destino:
já há larvas nos cortes e o ar se empesta.
E não sei como furtar-me à triste sina
que me deixou a dama nesta hora,
que me esporeia em fulgor de castração,
porque esse amor é ave de rapina:
pendura-me em suas garras e devora,
bicada após bicada, o coração.
ISQUEMIA II
Não é em vão que amo. Foi talvez
para mostrar o mesmo amor ao mundo,
ajudar no que possa, no profundo
desespero que dos homens mancha a tez.
Não espero que me ajudem. Meu inglês
basta bem para o sustento. Bem no fundo,
até prefiro ajudar do que, iracundo,
ter de sentir-me grato por minha vez.
Cuido de mim somente para ter
o suficiente, no evento ou na ocasião
de que de mim precisem quantos amo.
E como fico grato, ao perceber,
que quanto ganho basta para a mão
abrir àqueles que de amigos chamo.
ISQUEMIA III
Muito te amei um dia e já me espanta,
agora que de novo me procuras...
Que por ti eu já sofri penas bem duras,
que em tantos versos meu amor descanta.
A simpatia, é certo, se levanta
entre nós dois, mas são cores escuras
o que agora recordo das mais puras
emoções em que o outrora se agiganta.
Ainda me lembro das noites de esperança
e hoje me espanto do que em ti enxergava,
quando espremida a memória se remurcha,
de que me sobre apenas a lembrança
daqueles anos em que tanto te mandava
pequenas jóias de surpresa murcha!...
ISQUEMIA IV
– 1º janeiro 2021
Amor pode
ser belo ou asqueroso,
dependendo
da forma em que se veja:
quando se
tem o quanto mais se almeja,
quando se perde
o dote mais formoso.
Às vezes, ao
perder-se, em rigoroso
fiasco do
destino que se enseja,
é quando
belo ainda mais se alveja,
que é a
perda desse amor que o faz airoso.
Mas tanta
vez, se amor se tem nos braços,
desaparece,
no instante do domínio,
da maravilha
a vasta cordilheira...
E na memória
furtiva de seus traços,
se encerra
lentamente e sem fascínio,
aquela ânsia
perdida por inteira...
ISQUEMIA V
É quando
mais se passa pelo atroz
momento de
certeza alvissareira,
fulgor da
expressão mais condoreira,
que se
percebe como amor é algoz.
Passado o
ardor, de novo estamos sós;
passada a
vez segunda e a terceira,
nada mais
resta dessa ambição primeira
que a
sensação de que não somos "nós",
mas somos
dois, na fímbria dos abraços,
nessa
tristeza pura e imaculada,
nesse
inundar total do coração.
Já se
sumiram do desejo os traços
e não se
espera mais, se espera nada
dessa
perfeita e carnal desilusão.
ISQUEMIA VI
Na
realidade, é imperfeita perfeição,
enquanto se
engalana o material,
na fruição de
imenso amor carnal,
que se
reveste de pequena imensidão.
Na
realidade, só biológica emoção,
que se
destina a perpetuar o cabedal
de nossos
gens, não um dote espiritual
que se
transmita para nova geração.
E nisso se
resume o vasto orgasmo,
que se expande
por momentos cintilantes,
todo o
sistema nervoso a percutir,
por breve
instante de perene pasmo,
o mundo
inteiro suspenso por instantes,
a própria
alma num espasmo a se fundir!
ISQUEMIA VII – 2 JAN 2021
Em tal espasmo se prende todo o espaço
e se suspende até a circulação,
o corpo inteiro compromete na explosão,
toda contida no cerne desse abraço
ou antes na recepção de tal congraço,
ventre com ventre em longa estremeção,
vida com vida contida em contração,
na eterna vida de tal momento escasso!
Todo o sangue a percutir no seminal,
trompas abertas na canção do amor
e bem no fundo, o óvulo na espera,
no mais real momento do irreal,
em dimensão de surpresa e de vigor,
a nova vida a se moldar da cera!...
ISQUEMIA VIII
Sangue vermelho em seu fluir leitoso,
tornado branco por força do carinho,
um vasto fluxo empós seu escaninho,
que meio ser já conserva, dadivoso!
E no momento de enfoque poderoso,
em que o cone de atração prepara o ninho,
é como um salmo a se entoar baixinho,
a nos vibrar pelos ossos, espantoso!
Qual o segredo que preside tal escolha?
Como essa esfera sabem quem precisa?
Como se espasma a santa seleção?
Na capa líquida que o integumento molha,
que arcana voz à receptora avisa:
“Esta é a metade de teu coração?...”
ISQUEMIA IX
Qual potestade esse escolher preside?
Pois sem dúvida rejeitam-se milhares;
não é penetração feita aos azares,
que o novo corpo escolhe com quem lide.
Qual a metade dessa nova vide
que o vinho irá verter em seus lagares,
a fermentar misticamente nesses lares,
tem já o óvulo mente e assim decide?
Ou algum tipo de gnômon toma conta,
qualquer egrégora ansiando por formar-se,
antepassados presidindo tal catarse,
enquanto a raça inteira estua e monta,
a presidir esse novel destino,
o sangue inteiro a salmodiar tal hino?
ISQUEMIA X
Qual potestade preside o nascimento
de qualquer árvore na prodigalização
desses milhões de sementes, multidão
que ao solo desce em tal falecimento?
Qual é o trono que dá florescimento
a alguma flor que não teve plantação,
que de um almácego não teve a proteção,
mas que floresce em majestoso alento?
Qual domínio permite que uma estrela
surja do cosmos em miríades de poeira,
nesse agregar de luz alvissareira?
E qual portento faz parecer mais bela
essa mulher que envolve a gravidez
dessa semente de incrível pequenez?
ISQUEMIA XI
Por isso falo aqui haver uma isquemia,
não acidente de caráter vascular
a ressecar um segmento cerebral,
mas a criar nova jóia de valia!...
Por isso falo da estranha sinfonia
de algum coro de anjos a entoar
e não apenas uma vez no individual
da Encarnação que o Espírito nutria!
Mas sempre que outra vida assim se cria,
em nossa raça, dita ser a semelhança
da própria Divindade que a soprou,
nesse fôlego da vida, que se alia
ao soldadinho que ao óvulo se lança
e se dissolve quando triunfou!...
ISQUEMIA XII
E novamente, quem a escolha presidia
ao forjar de um amor espiritual,
a transcender do corpo material,
será a mulher somente que escolhia?
Tal como o óvulo que para um só se abria,
pode a mulher, em místico fanal,
decidir quem dará semente ideal,
não só do corpo, mas da alma que se cria?
Todos os mais desprezando na isquemia,
quer o capricho só pareça transitório,
mas que de seu arbítrio é independente,
e ainda indago que coisa em mim se via
para aceitar-me um peito complacente,
minha semente a recolher como um cibório?
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