GARRAS
SECAS I – 17 JAN 2023
(Germaine Greer, autora de The Female
Eunuch = O Eunuco Feminino)
nesse
estranho farrapo de incerteza
que
se convencionou chamar de amor,
na
turbamulta de emoções sem cor,
nessa
sopa de hormônios sem leveza,
nesse
caldo de enzimas sem beleza,
que
tempera o organismo em seu sabor,
nas
mil ações impensadas desse ardor,
avassaladas
por prazer ou por tristeza,
nesse
ninho de víboras amadas,
cujas
picadas são mais procuradas,
quanto
mais seja aguda a sua peçonha,
eu
te conservo, imagem de esperança,
entremeada
de firmeza e de mudança,
que
o coração me orgulha e me envergonha.
GARRAS
SECAS II
que
amor é essa dor tão desejada,
quanto
mais funda, tanto mais se quer,
quer
pelo homem, seja por mulher,
mesmo
em ciúme sempre acalentada,
que
não se vive sem outra face amada,
mesmo
que morta, perdura em seu viver,
mesmo
perdida, permanece em seu querer,
mesmo
ferida, mesmo até despedaçada,
porque
ainda que não haja a real morte,
mata
uma parte de cada coração,
em
sua amargura ou na desilusão;
contudo
mais amarga a nossa sorte
se
nada houver do que se desiludir,
sem
relembrar de um calor a nos nutrir.
GARRAS
SECAS III
que
na verdade todo amor é sutileza,
uma
série de paradoxos inconsúteis,
apego
a gestos que parecem ser inúteis,
a
confusão do que inexiste com a certeza,
que
não se pode segurar com realeza
quanto
se ama só por motivos fúteis,
quando
se toca sem palpares dúcteis,
só
nessa nuvem desconforme de beleza;
e
no entretanto, como nos traz apego
esse
fantasma cintilante e verdigris,
ferrugem
doce a consumir o coração,
visão
brilhante para o olhar mais cego,
inapagável
a branca imagem desse giz,
doçura
amarga a gotejar pura emoção!
AURORA
DE CIMENTO I – 18 JAN 23
tempo
houve, no passado, em que eu brincava
que
a ninfa do jardim, em noite escura,
subia
à minha janela, em sua doçura,
que
me abraçava e junto de mim deitava;
estátua
do jardim que por capricho batizava
com
o nome de Calíope, que foi pura
donzela
do passado, em sua branca alvura,
que
nessa noite escura para mim chegava
e
que a despeito das grades da janela,
destinadas
a afastar qualquer ladrão,
a
virgem bela não era inacessível,
porém
barras recurvadas, lavra bela,
também
mantinha a redor do coração,
tornando
a alma de fato intransponível.
AURORA
DE CIMENTO II
nem
sei se realmente eu me iludia
enquanto
a olhava, em minha impudicícia,
por
entre as grades a imaginar ter a carícia
da
estátua simples que entre as flores via,
porque
depois de a sonhar, então dormia
e
material a doce ninfa em sua letícia
subia
pelo alpendre a partilhar-me sua delícia,
deitada
junto a mim e me queria;
mas
no sonho irreal eu contemplava
rostos
variados, tangíveis e macios,
com
a qualidade feminina da mornura,
não
esse rosto real que conservava
a
branca estátua de traços vazios,
imóvel
sempre e sem qualquer doçura.
AURORA
DE CIMENTO III
tempo
existe ainda hoje, em que observo
a
meiga estátua branca e semioculta
pelas
folhagens, qual ao jardim pagasse multa
por
ter subido ao encontro de seu servo;
e
sem me comprometer, ainda conservo,
na
abstinência de minha mente culta
o
ateísmo que do imaginar me indulta;
mas
algo sobe do coração e então eu fervo,
nesse
desejo estúpido e inclemente
de
que tal sonho fosse verdadeiro
e
que comigo se viesse deitar ainda peço
e
ainda não sei, quando acordo finalmente,
se
vejo felpas tão só do travesseiro
ou
fragmentos descartados de seu gesso.
APOMETRIA
I – 19 JANEIRO 2023
como
é terrível se negar o amor,
se
por acaso o que tinha se perdeu
ou
quando apenas enfatuação se conheceu,
enquanto
o par ainda mantinha igual calor,
em
especial se nos morde outro fervor,
muito
mais forte que o favor que então se deu,
o
amor carinho que lentamente adormeceu,
mas
conserva na abandonada o seu vigor;
e
quando novo carinho pleno corresponde
e
nos compele a uma novel fidelidade,
que
se abandone o amor antigo sem bondade,
seu
final resto estocado nem sei onde,
negado
o amor que já teve sua beleza,
em
troca plena por tal nova incerteza...
APOMETRIA
II
porque
amor se não for de fato inteiro,
em
parte feito de subserviência
e
em outra parte até de complacência,
não
é perfeito, mesmo que seja o derradeiro:
e
quando o novo amor vem sobranceiro,
a
alma inteira a encher com elegância,
nos
arrebata em sua plena dominância,
nada
a deixar para esse amor primeiro,
porque
de fato, nunca foi amor real,
mas
só conforto e gratidão sensual,
mantida
a vida em seus braços de calor;
mas
de repente, como um clarim fatal,
chega
esse amor de verdade e consensual,
a
consumir-nos em sua ânsia de fervor!
APOMETRIA
III
e
é preciso abandonar o que se tem,
por
ser vazio, sem sabor e sem sentido,
comparado
ao amor novo percebido,
que
nos massacra a dominar também;
quando
a maldade que à mente agora vem
reconhece
que se tornou nada e exaurido
o
amor de poeira que nos havia nutrido,
enquanto
o novo tudo que há em nós retem!
seria
então razão de em sacrifício
pôr
de lado essa auréola de esperança,
para
a outrem não causar um malefício?
ou
real pecado seria o desperdício
desse
amor que só uma vez a vida alcança,
por
amor morto que se tornara quase um vício?
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