quarta-feira, 25 de janeiro de 2023


 

 

GARRAS SECAS I – 17 JAN 2023

(Germaine Greer, autora de The Female 

Eunuch = O Eunuco Feminino)

 

nesse estranho farrapo de incerteza

que se convencionou chamar de amor,

na turbamulta de emoções sem cor,

nessa sopa de hormônios sem leveza,

nesse caldo de enzimas sem beleza,

que tempera o organismo em seu sabor,

nas mil ações impensadas desse ardor,

avassaladas por prazer ou por tristeza,

nesse ninho de víboras amadas,

cujas picadas são mais procuradas,

quanto mais seja aguda a sua peçonha,

eu te conservo, imagem de esperança,

entremeada de firmeza e de mudança,

que o coração me orgulha e me envergonha.

 

GARRAS SECAS II

 

que amor é essa dor tão desejada,

quanto mais funda, tanto mais se quer,

quer pelo homem, seja por mulher,

mesmo em ciúme sempre acalentada,

que não se vive sem outra face amada,

mesmo que morta, perdura em seu viver,

mesmo perdida, permanece em seu querer,

mesmo ferida, mesmo até despedaçada,

porque ainda que não haja a real morte,

mata uma parte de cada coração,

em sua amargura ou na desilusão;

contudo mais amarga a nossa sorte

se nada houver do que se desiludir,

sem relembrar de um calor a nos nutrir.

 

GARRAS SECAS III

 

que na verdade todo amor é sutileza,

uma série de paradoxos inconsúteis,

apego a gestos que parecem ser inúteis,

a confusão do que inexiste com a certeza,

que não se pode segurar com realeza

quanto se ama só por motivos fúteis,

quando se toca sem palpares dúcteis,

só nessa nuvem desconforme de beleza;

e no entretanto, como nos traz apego

esse fantasma cintilante e verdigris,

ferrugem doce a consumir o coração,

visão brilhante para o olhar mais cego,

inapagável a branca imagem desse giz,

doçura amarga a gotejar pura emoção!

 

AURORA DE CIMENTO I – 18 JAN 23

 

tempo houve, no passado, em que eu brincava

que a ninfa do jardim, em noite escura,

subia à minha janela, em sua doçura,

que me abraçava e junto de mim deitava;

estátua do jardim que por capricho batizava

com o nome de Calíope, que foi pura

donzela do passado, em sua branca alvura,

que nessa noite escura para mim chegava

e que a despeito das grades da janela,

destinadas a afastar qualquer ladrão,

a virgem bela não era inacessível,

porém barras recurvadas, lavra bela,

também mantinha a redor do coração,

tornando a alma de fato intransponível.

 

AURORA DE CIMENTO II

 

nem sei se realmente eu me iludia

enquanto a olhava, em minha impudicícia,

por entre as grades a imaginar ter a carícia

da estátua simples que entre as flores via,

porque depois de a sonhar, então dormia

e material a doce ninfa em sua letícia

subia pelo alpendre a partilhar-me sua delícia,

deitada junto a mim e me queria;

mas no sonho irreal eu contemplava

rostos variados, tangíveis e macios,

com a qualidade feminina da mornura,

não esse rosto real que conservava

a branca estátua de traços vazios,

imóvel sempre e sem qualquer doçura.

 

AURORA DE CIMENTO III

 

tempo existe ainda hoje, em que observo

a meiga estátua branca e semioculta

pelas folhagens, qual ao jardim pagasse multa

por ter subido ao encontro de seu servo;

e sem me comprometer, ainda conservo,

na abstinência de minha mente culta

o ateísmo que do imaginar me indulta;

mas algo sobe do coração e então eu fervo,

nesse desejo estúpido e inclemente

de que tal sonho fosse verdadeiro

e que comigo se viesse deitar ainda peço

e ainda não sei, quando acordo finalmente,

se vejo felpas tão só do travesseiro

ou fragmentos descartados de seu gesso.

 

APOMETRIA I – 19 JANEIRO 2023

 

como é terrível se negar o amor,

se por acaso o que tinha se perdeu

ou quando apenas enfatuação se conheceu,

enquanto o par ainda mantinha igual calor,

em especial se nos morde outro fervor,

muito mais forte que o favor que então se deu,

o amor carinho que lentamente adormeceu,

mas conserva na abandonada o seu vigor;

e quando novo carinho pleno corresponde

e nos compele a uma novel fidelidade,

que se abandone o amor antigo sem bondade,

seu final resto estocado nem sei onde,

negado o amor que já teve sua beleza,

em troca plena por tal nova incerteza...

 

APOMETRIA II

 

porque amor se não for de fato inteiro,

em parte feito de subserviência

e em outra parte até de complacência,

não é perfeito, mesmo que seja o derradeiro:

e quando o novo amor vem sobranceiro,

a alma inteira a encher com elegância,

nos arrebata em sua plena dominância,

nada a deixar para esse amor primeiro,

porque de fato, nunca foi amor real,

mas só conforto e gratidão sensual,

mantida a vida em seus braços de calor;

mas de repente, como um clarim fatal,

chega esse amor de verdade e consensual,

a consumir-nos em sua ânsia de fervor!

 

APOMETRIA III

 

e é preciso abandonar o que se tem,

por ser vazio, sem sabor e sem sentido,

comparado ao amor novo percebido,

que nos massacra a dominar também;

quando a maldade que à mente agora vem

reconhece que se tornou nada e exaurido

o amor de poeira que nos havia nutrido,

enquanto o novo tudo que há em nós retem!

seria então razão de em sacrifício

pôr de lado essa auréola de esperança,

para a outrem não causar um malefício?

ou real pecado seria o desperdício

desse amor que só uma vez a vida alcança,

por amor morto que se tornara quase um vício?

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