sexta-feira, 27 de janeiro de 2023


 

 

MELODIA SEM SOM I — 20 JAN 2023

(Ebe Stignani e Maria Callas, cantoras líricas)

 

O mais sutil do amor é sua embalagem,

esse invólucro que oculta o conteúdo,

essa moldura a lhe servir de escudo,

como uma capa envolvendo a colportagem.

 

O amor inicial é a capsula da vagem

que envolve esse nenê ainda desnudo:

à placenta que o protege aqui eu aludo,

quando à luz chega em inicial viagem.

 

E segue o amor em suave beberagem,

colhida diretamente do seio da mulher,

pela pequena boca a que acalenta,

 

todo outro amor derivado desta imagem,

que todo amor sensual tem tal mister,

por mais estranho seja o alvo que aparenta.

 

MELODIA SEM SOM II

 

Triste esse amor que só se manifesta

por algum tipo de sublimação,

quando a boquinha de feroz sucção

jamais se apresentou após a sesta.

 

Pois todo o amor, mesmo a canção de gesta,

deriva do calor dessa primeira comunhão,

que não só leite, vem sugar um coração

e que da carne a própria carne atesta.

 

Amor por outrem essa coisa inexprimível,

porém que sendo materno, é material,

mas que em paterno talvez seja exaurível,

 

quando se busca, sem deliberação,

satisfação em um leito conjugal,

que assim resulte na fecundação.

 

MELODIA SEM SOM III

 

Não obstante, todo amor é resultado

dessa primeira conotação carnal,

quando se nasce inerme no total,

na dependência de um real matriarcado.

 

Amor da pátria, amor de ideal dourado,

amor à arte, amor ao espiritual,

amor de pensamento, amor ao divinal,

tudo deriva desse primeiro experimentado.

 

Mesmo que seja do nenê um amor egoísta,

que se lhe atendam as necessidades,

só retribuindo no imitar de algum sorriso,

 

até que o engloba um motivo que o conquista

e desenvolve as suas possibilidades,

bem mais profundas que um transitório riso.

 

REPUGNÂNCIA I – 21 JAN 2023

 

Quer seja assim amor um lento apelo,

alicerçado sobre límpidas areias,

ou uma fístula aberta em plenas veias,

como estímulo perfeito para o zelo,

 

quer seja amor somente longo pesadelo,

perfeito ninho de pegajosas teias,

para onde me puxas e me enleias,

ocultas presas no teu rosto belo,

 

quer seja amor assim um paralelo,

unindo o que mais quero ao que mais temo,

longo estilete a se mover no coração,

 

com que a teu fado o meu destino selo,

nesse prazer sutil por que ainda gemo

e que me serve de atroz inspiração.

 

REPUGNÂNCIA II

 

Mas nem por isso a tal amor renego,

que na verdade existe e é bem real,

sua necessidade algo constitucional,

por isso dizem que o deus do amor é cego.

 

O que eu afirmo é a variação do apego,

que todo amor objeto é transicional,

surge da falta de um amor espiritual

e uma emoção qualquer no peito rego.

 

Mas sem amor é o coração vazio,

mais do que o dom do peito maternal

é a necessidade que nos traz o brio

 

que nos confirme e que possamos conquistar

em outro alguém mais que o amor inicial,

que recebemos sem o sequer buscar.

 

REPUGNÂNCIA III

 

Por isso eu digo que amor é pesadelo,

quando é profundo, mas sem correspondência,

tanto mais forte assim em sua potência,

amor de invalidez envolto em gelo.

 

Por isso eu digo que todo amor é belo,

mesmo o que for infeliz em convivência,

mas se no peito conservado em imanência,

sempre se encontra nele algum desvelo,

 

que mais não seja por servir de inspiração,

não apenas para a arte, para a vida,

que o desprezado um tal amor reforma

 

e o aplica da sociedade à construção,

um sucedâneo à mórbida ferida,

que à mãe social o seu amor retorna.

 

VATICÍNIO I – 22 JAN 2023

 

Escrevi carta na palma de minha mão:

lavei na água do rio, em um remanso;

de escrever cartas para ti não canso,

confio na corrente em pleno poderio.

 

A cada carta que no rio te lanço,

desenhada com meu sangue e com paixão,

nessas epidermes forjada minha ilusão,

do meu destino em ironia eu rio.

 

Porque sei que não moras rio abaixo,

mas a jusante das águas, cujo curso

para te encontrar, inverter-se deveria.

 

Nao obstante ás suas margens eu me agacho

e meus bilhetes de sangue são recurso

deste amor pálido que de fato nem nutria.

 

VATICÍNIO II

 

Em teias de aranha a poesia encasulada

aguarda a ocasião de ser sugada em alimento,

cada soneto da imensidade do relento,

voando inerme em sua função inacabada.

 

Tão somente a palavra que foi capturada,

por alguém que a caça em seu tormento,

terá qualquer significdo em seu portento,

que nada vale, se for no ar abandonada.

 

Que não são borboletas de asas multicores,

nem libélulas, nem ao menos mariposas,

mas efemérides, a viver somente um dia,

 

porém os pares que buscam para amores

são essas mentes que as captam orgulhosas,

a devorar cada mensagem que ali havia.

 

VATICÍNIO III

 

Mas tal mensagem não vinga de imediato,

é necessário prendê-la em fina teia

de pseudópodos mentais, sonho de areia,

facilmente a desmanchar-se sem recato.

 

Assim o pobre soneto é um longo prato,

a lhe pingar diariamente em cada veia,

enquanto o imaginar assim se ateia

e o encapsula totalmente em seu contato.

 

Por isso as palavras eu lançarei ao rio

dessa torrente da invenção humana,

na esperança que se evaporem como chuva

 

e que preencham de outra mente algum vazio,

nos interstícios de sua alma a encontrar luva,

que nela possam ali acender alguma chama.

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