MELODIA
SEM SOM I — 20 JAN 2023
(Ebe Stignani e Maria Callas, cantoras líricas)
O
mais sutil do amor é sua embalagem,
esse
invólucro que oculta o conteúdo,
essa
moldura a lhe servir de escudo,
como
uma capa envolvendo a colportagem.
O
amor inicial é a capsula da vagem
que
envolve esse nenê ainda desnudo:
à
placenta que o protege aqui eu aludo,
quando
à luz chega em inicial viagem.
E
segue o amor em suave beberagem,
colhida
diretamente do seio da mulher,
pela
pequena boca a que acalenta,
todo
outro amor derivado desta imagem,
que
todo amor sensual tem tal mister,
por
mais estranho seja o alvo que aparenta.
MELODIA
SEM SOM II
Triste
esse amor que só se manifesta
por
algum tipo de sublimação,
quando
a boquinha de feroz sucção
jamais
se apresentou após a sesta.
Pois
todo o amor, mesmo a canção de gesta,
deriva
do calor dessa primeira comunhão,
que
não só leite, vem sugar um coração
e
que da carne a própria carne atesta.
Amor
por outrem essa coisa inexprimível,
porém
que sendo materno, é material,
mas
que em paterno talvez seja exaurível,
quando
se busca, sem deliberação,
satisfação
em um leito conjugal,
que
assim resulte na fecundação.
MELODIA
SEM SOM III
Não
obstante, todo amor é resultado
dessa
primeira conotação carnal,
quando
se nasce inerme no total,
na
dependência de um real matriarcado.
Amor
da pátria, amor de ideal dourado,
amor
à arte, amor ao espiritual,
amor
de pensamento, amor ao divinal,
tudo
deriva desse primeiro experimentado.
Mesmo
que seja do nenê um amor egoísta,
que
se lhe atendam as necessidades,
só
retribuindo no imitar de algum sorriso,
até
que o engloba um motivo que o conquista
e
desenvolve as suas possibilidades,
bem
mais profundas que um transitório riso.
REPUGNÂNCIA
I – 21 JAN 2023
Quer
seja assim amor um lento apelo,
alicerçado
sobre límpidas areias,
ou
uma fístula aberta em plenas veias,
como
estímulo perfeito para o zelo,
quer
seja amor somente longo pesadelo,
perfeito
ninho de pegajosas teias,
para
onde me puxas e me enleias,
ocultas
presas no teu rosto belo,
quer
seja amor assim um paralelo,
unindo
o que mais quero ao que mais temo,
longo
estilete a se mover no coração,
com
que a teu fado o meu destino selo,
nesse
prazer sutil por que ainda gemo
e
que me serve de atroz inspiração.
REPUGNÂNCIA
II
Mas
nem por isso a tal amor renego,
que
na verdade existe e é bem real,
sua
necessidade algo constitucional,
por
isso dizem que o deus do amor é cego.
O
que eu afirmo é a variação do apego,
que
todo amor objeto é transicional,
surge
da falta de um amor espiritual
e
uma emoção qualquer no peito rego.
Mas
sem amor é o coração vazio,
mais
do que o dom do peito maternal
é
a necessidade que nos traz o brio
que
nos confirme e que possamos conquistar
em
outro alguém mais que o amor inicial,
que
recebemos sem o sequer buscar.
REPUGNÂNCIA
III
Por
isso eu digo que amor é pesadelo,
quando
é profundo, mas sem correspondência,
tanto
mais forte assim em sua potência,
amor
de invalidez envolto em gelo.
Por
isso eu digo que todo amor é belo,
mesmo
o que for infeliz em convivência,
mas
se no peito conservado em imanência,
sempre
se encontra nele algum desvelo,
que
mais não seja por servir de inspiração,
não
apenas para a arte, para a vida,
que
o desprezado um tal amor reforma
e
o aplica da sociedade à construção,
um
sucedâneo à mórbida ferida,
que
à mãe social o seu amor retorna.
VATICÍNIO
I – 22 JAN 2023
Escrevi
carta na palma de minha mão:
lavei
na água do rio, em um remanso;
de
escrever cartas para ti não canso,
confio
na corrente em pleno poderio.
A
cada carta que no rio te lanço,
desenhada
com meu sangue e com paixão,
nessas
epidermes forjada minha ilusão,
do
meu destino em ironia eu rio.
Porque
sei que não moras rio abaixo,
mas
a jusante das águas, cujo curso
para
te encontrar, inverter-se deveria.
Nao
obstante ás suas margens eu me agacho
e
meus bilhetes de sangue são recurso
deste
amor pálido que de fato nem nutria.
VATICÍNIO
II
Em
teias de aranha a poesia encasulada
aguarda
a ocasião de ser sugada em alimento,
cada
soneto da imensidade do relento,
voando
inerme em sua função inacabada.
Tão
somente a palavra que foi capturada,
por
alguém que a caça em seu tormento,
terá
qualquer significdo em seu portento,
que
nada vale, se for no ar abandonada.
Que
não são borboletas de asas multicores,
nem
libélulas, nem ao menos mariposas,
mas
efemérides, a viver somente um dia,
porém
os pares que buscam para amores
são
essas mentes que as captam orgulhosas,
a
devorar cada mensagem que ali havia.
VATICÍNIO
III
Mas
tal mensagem não vinga de imediato,
é
necessário prendê-la em fina teia
de
pseudópodos mentais, sonho de areia,
facilmente
a desmanchar-se sem recato.
Assim
o pobre soneto é um longo prato,
a
lhe pingar diariamente em cada veia,
enquanto
o imaginar assim se ateia
e
o encapsula totalmente em seu contato.
Por
isso as palavras eu lançarei ao rio
dessa
torrente da invenção humana,
na
esperança que se evaporem como chuva
e
que preencham de outra mente algum vazio,
nos
interstícios de sua alma a encontrar luva,
que
nela possam ali acender alguma chama.
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