RENARD E OS PRESUNTOS I – 27 NOV 16
Ora, Renard, escondido lá no mato,
a cena inteira contemplara, divertido.
Não comi nada, mas nem
tudo foi perdido,
Pensou ele, gargalhando sem recato.
Eis que depois de todo aquele espalhafato,
Mouflart, o Abutre, é que tudo havia comido,
exceto as penas, consoante havia prometido
para Primaut, mas até o bico do pato!...
Saiu do galho, majestosamente,
ou quem sabe, por estar muito pesado,
e foi voando em direção ao ninho;
deixou Primaut a contemplá-lo, tristemente,
com fome e raiva por ter sido logrado,
sob o carvalho deixado ali sozinho...
Então Renard, como quem não vira
nada,
aproximou-se do lobo, lentamente;
vendo Primaut, a lamentar
profusamente:
chegou a chorar, ao ver o
camarada...
“Renard, meu bom amigo, que
maçada!
Perdão quero pedir-te,
gentilmente...”
“Não zombes de mim, seu
insolente!
Comeste o pato, uma grande
tratantada!”
“Mas não comi, Renard, fui
enganado!”
“E essas penas que estão a teu
redor?”
“No momento em que o pato
depenei,
“veio Mouflart e, num bote
calculado,
roubou-me o pato e comeu tudo,
vil traidor!
Em vão por um pedaço eu
supliquei!...”
“Eu agi mal, mas fui bem
castigado!
Humildemente, agora peço teu
perdão...”
“Se foi assim, eu te perdoo, meu
irmão!”
E um juramento de amizade bem sagrado,
os dois fizeram... “Ai, Renard,
estou esfaimado!”
“Eu não estou. Fiz há pouco uma incursão
àquela granja. Bem cheio está o porão
de bons presuntos e comi um bom
bocado!”
“Ai, presuntos! Como eu queria também!,,,”
“Pois seja assim. Olhe, a noite vem chegando.
É só esperar, que a seguir te
mostrarei
por onde entrar e então comerás
bem!...
Tão logo viram as luzes se
apagando,
foram à granja, a seguir da fome
a lei...
Ora, o porão tinha sido bem fechado:
a porta com cadeado e com corrente;
a janela tendo grade bem potente...
“Não dá pra entrar! Está tudo
trancado!”
“Sempre se encontra um ponto descuidado,”
disse Renard. Junto à porta, bem à
frente,
com o focinho empurrou pedra, calmamente
e ali mostrou por onde havia penetrado...
“Por várias noites eu cavei este buraco;
comi um pouquinho só de cada vez,
sem ceder à tentação de pôr num saco...”
“Até agora não me descobriram
e olhe que aqui venho há quase um mês!
Não há cachorro e os donos nem me viram...”
RENARD E OS PRESUNTOS II
Renard entrou pelo buraco, facilmente
porém Primaut, que era bem maior,
só conseguiu passar com grande ardor,
mas a fome impeliu-o, finalmente...
E no interior havia, realmente,
muitos presuntos do melhor sabor;
a comer já começou, sem ter temor,
porém Renard, como sempre, foi prudente.
“Não devias de comer esses da frente,”
explicou ele então ao companheiro.
“Das outras vezes eu comi só os de trás...”
“Ah, Renard, minha fome é bem potente!”
“Mas o melhor é sairmos bem ligeiro,
logo esse estrago vão notar que você faz!”
E de novo saiu Renard bem
facilmente,
mas quem disse que Primaut o
acompanhava?
Comera tanto que já não mais
passava:
ficou entalado – quase
completamente!
Disse Renard: “Saia logo, que vem
gente!”
Mas de Primaut o ventre se
entalava!
“Vire-se um pouco, é a posição
que atrapalhava,
Empurre um pouco sua cabeça para
a frente!”
E o pobre lobo ficou preso por
guloso,
mal conseguindo a cabeça pôr lá
fora
e Renard o segurou pelo
focinho...
Puxou com força e o lobo,
temeroso,
fazia força, já adiantada a
hora!...
As orelhas lhe mordeu, com algum
jeitinho!
Renard, logo a seguir, armou
laçada
com uns cipós e ao pescoço lhe
prendeu,
sem resultado... Primaut quase
morreu,
os seus esforços sem resultar em
nada!
Mas com o barulho foi a gente
despertada
e o dono pela escada então
desceu!...
Primaut soltou a laçada e se
meteu
de novo no porão, sua defesa
preparada...
Renard agira com toda a retidão,
mas agora, que mudara a situação,
bem depressa girou nos
calcanhares!
E fugiu bem depressa do terreiro.
Que poderia fazer? Seu
companheiro
era o culpado por seus próprios
azares!
O camponês desceu rápido a escada,
com uma vela na mão para alumiar...
Então Primaut decidiu-se a atacar:
no lufa-lufa foi a vela derrubada!...
O camponês desferiu-lhe uma pancada,
mas nesse escuro não o pôde acertar...
Subiu à cozinha para outra luz pegar,
porém Primaut lhe foi atrás e deu dentada
bem nas nádegas gorduchas do sitiante!
Chegou a mulher com um pau para bater.
“É o diabo!... Vá pedir socorro!...”
Foi a mulher abrir a porta e, num instante,
Primaut largou-o e saiu a bom correr
e só parou após subir um morro!...
Caso lhe tenha chamado a atenção
que todas estas histórias versam sobre fome e assalto a despensas bem fornidas,
não existe nisso nada de casual. Renard
é um representante dos camponeses pobres.
Durante a Idade Média Intermediária, nos séculos XI e XII (anos mil e
mil e cem), excelentes condições climáticas na Europa, causadas por um dos
periódicos aquecimentos globais, aliadas à introdução da charrua de ferro que
substituiu o anterior arado de madeira, à substituição do jugo na testa dos
bois e cavalos pelo jugo peitoral, à difusão dos moinhos e outras benfeitorias,
permitiram um grande aumento da população.
Mas a partir do século XIII (anos 1200), com o início da Baixa Idade
Média, devido a erupções vulcânicas e longos invernos provocados por
resfriamento global, as colheitas se tornaram escassas e mesmo inexistentes,
provocando grandes fomes e facilitando a difusão da Peste Negra, a partir de
1353, já no século XIV. A situação só
melhorou com novo aquecimento global no século XV e a introdução de novos
alimentos vindos da América, como o milho, a batata e a abóbora. Somente os castelos, as abadias e as herdades
fortificadas conservavam alimentos em celeiros e adegas e periodicamente eram
assaltados por camponeses, durante as chamadas Jacqueries.
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