domingo, 8 de janeiro de 2023


 

 

RENARD E OS PEIXES I – 14 AGO 16

 

Houve um inverno realmente rigoroso,

comida sem se achar em parte alguma;

Renard de fome em seu castelo espuma,

porem o frio era lá fora pavoroso!...

 

Dona Hermeline lhe disse: “Meu formoso,

Furacerca e Malatesta já nenhuma

comida têm!   De sair terás na bruma,

para a teus filhos trazer prato bem gostoso!...”

 

“Ou mesmo algo de ruim que mate a fome!

Não sentes pena de mim e dos filhotes?”

“Pouco me agrada sair deste castelo,”

 

disse Renard.  (Ninguém contudo assim o tome:

era uma cova com muitos biricuetes,

mas quente, seca e segura em seu desvelo.)

 

Renard, de má vontade, levantou-se,

pôs o focinho para fora e suspirou...

O frio do inverno logo a seguir ele enfrentou

e para a estrada real encaminhou-se.

 

Bem no meio do caminho ele agachou-se

e com cuidado os ares farejou:

cheiro de peixe nas narinas lhe chegou;

para artimanha então aparelhou-se...

 

Assim que ouviu o ranger do carroção

na estrada se deitou, bem estirado:

com tanto frio, bem depressa congelou!

 

Dois carroceiros chegaram na ocasião,

um caminhando, em passo compassado,

que da boleia o vento forte o espantou!...

 

Viram o bicho deitado ali na estrada

e imaginaram qual animal seria:

que era um lobo ou texugo parecia,

tendo Renard uma forma avantajada...

 

“Será que dorme ou morrera congelada

essa tal fera que por ali jazia?...”

Com o bico da bota um o atingia,

porém Renard pretendeu não sentir nada...

 

“É uma raposa, maninho... Está coberta

pela neve e parece mesmo morta...”

A boca experimentou com seu bastão...

 

Fez-se bem dura a criatura esperta,

mesmo a causa esticada, em nada torta.

“Morreu mesmo.  Mas é sorte, meu irmão.”

 

“Essa pele nos dará um bom dinheiro!”

“Então a ponha na carroceria;

lá na estalagem a gente a esfolaria,

com garantia de um preço bem certeiro!”

 

Havia barricas e muitos cestos em poleiro,

estufados de peixes ou de enguia,

que na feira um bom dinheiro renderia,

na sexta-feira seria o lucro bem maneiro!

 

E Renard conservou-se todo duro,

tal qual se morto de fato estivesse

e sobre os peixes foi assim jogado!...

 

Dentro do toldo da carroça estava escuro

e pela estrada manquitolando desce,

ante a comida quase louco de esfomeado!

 

RENARD E OS PEIXES II

 

De fato, era parcial o fingimento,

com tanto frio, ele quase congelara

e sem dificuldade se esticara,

a pretender um total congelamento.

 

Mas na carroça encontrou aquecimento,

já que a lona em toda a volta se fechara

e do frio a pouco e pouco se livrara,

ainda aguardando o seu melhor momento...

 

E ao ouvir que os carroceiros conversavam,

a calcular quanto a sua pele renderia,

abriu os olhos e espiou o que ali havia,

 

percebendo que os sacos mal fechavam...

E com os dentes, logo um laço desfazia:

cem lindos peixes ali dentro se encontravam!

 

Logo se pôs a comer, sem mais receio:

havia pescado, arenques e sardinha,

namorados, linguados e tainha,

comendo tudo o que achava de permeio!

 

Em dois minutos o saco estava pelo meio

e mesmo assim, a sua fome era daninha!

Breve do fundo do saco se avizinha,

desesperado pelo saboroso veio!...

 

E os carroceiros nada perceberam:

com toda a gana, ele comia silencioso,

mas com as orelhas abertas e espichadas!

 

Assim depressa os seus membros se aqueceram,

mas continuava comendo, de guloso,

de seu estômago as paredes alargadas!

 

Julgou então ser o momento de ir embora,

contudo estava cheio em demasia

e percebeu seria bem lenta a correria,

sendo forçado a aguardar mais uma hora!

 

Finalmente, escutando sons de espora,

percebeu já estar perto a hospedaria!...

Ficar mais tempo não mais conseguiria!

Se ia escapar, deveria ser agora!...

 

Devagar, abriu a lona da traseira,

vendo os rastros da gaiola sobre a neve:

muito longe se encontrava o seu “castelo”

 

de Malpertuis... Mas era a hora derradeira

e a enfrentar a jornada então se atreve,

para a família carregando um prêmio belo!...

 

Abriu o saco em que enguias havia

e enrolou quatro à volta do pescoço;

um bom salmão mordeu em bom retoço

e então saltou para a gelada via!...

 

Um carroceiro escutou quando fugia:

comera tanto que ficara grosso!...

E perseguiu-o então o pobre moço,

porém Renard mais veloz que ele corria!

 

Os infelizes ficaram no prejuízo

e Renard chegou à toca, finalmente,

seu botim entregando à sua família!...

 

Sabendo bem que ninguém, em seu juízo,

o iria caçar em um frio tão inclemente

e que em sua cova nem sequer um galgo o pilha!

 

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