ALMOFARIZ I (8/7/2009)
(Mijanou e Brigitte Bardot)
vou-me entranhar nas paredes, como
insetos,
entrar por uma fenda ou rachadura.
talvez exista sociedade pura,
ungida de argamassa, sob os tetos...
talvez existam templos mais diletos
entre as gretas dos tijolos, sem
loucura,
sem automóveis, sem maldade dura,
sem leitura sobre crimes ou
panfletos...
espiarei através da fechadura,
meu espírito livre da prisão
dessas paredes que esquece a
atmosfera.
sem a graça clerical dessa impostura
que perverte e contamina o coração
pela mentira dessa longa espera.
ALMOFARIZ II
entre as calçadas e paredes, eu
me estendo
e a cada dia vejo fenda nova,
por onde a alma penetra e assim
renova
conhecimento antigo e
então compreendo
e em cada greta, eu percebo que
estou sendo
espelho e cópia de quem já está
na cova,
as imagens permanecem, mesmo mova
o corpo à sepultura e então,
entendo
felicidade e dor, passos das
vidas
desempenhadas por entre estas
paredes,
imagens tênues de quem foi
visita,
imagens firmes de tantas
despedidas,
imagens presas em eternas redes,
onde uma réstia de alma ainda se
agita.
ALMOFARIZ III
a imensa multidão assim me aguarda,
e não apenas a egrégora local,
o gnômon da raça em seu fanal,
na mesma estrada que o destino
albarda.
olhos sem luz, a lã que não se
carda,
animais mortos, em fúria canibal,
almas partidas, em alas de hospital,
velhos soldados, esquecida a farda.
os sacerdotes, impuros ou sinceros,
famintos operários, fazendeiros,
medíocres vidas ou
ricas de opulência,
todos me esperam, esqueletos meros,
engavetados em horizontais
sendeiros,
todos iguais na partilha da impotência.
ALMOFARIZ IV – 21 mar 2023
às vezes, tenho pena de pisar
por onde as sombras, tanta vez,
passaram:
nas tijoletas seu calor deixaram,
enquanto o sol impediam de
pousar.
essas sombras não apenas se
evolaram,
correram pelas gretas, a buscar
refúgio permanente no sonhar,
sob os ladrilhos então se
refugiaram.
e, como os novos amos, pisoteiam
as sombras secas de velhos
proprietários
que assim fazem gemer...
porém recebem,
também elas, novos passos que as
tonteiam
e geram, por sua vez, espectros
vários,
que sob os mansos pisos se
concebem.
ALMOFARIZ V
deste modo, é melhor sair à noite,
que toda sombra será filha da luz
e a luz só brilha a partir da
escuridão,
salvo quando na camisa de um
lampião,
quando o percorre, agitada por
açoite,
dela a sombra é arrancada e reproduz
uma silhueta na parede lisa,
que ao longo do reboco assim
desliza,
até encontrar um lugar em que a
argamassa
já se quebrou por salitre ou umidade,
os dois irmãos em constante
altercação
e de repente a sombra já não passa,
escondida sob as gretas sem idade,
não mais querendo ser tão só
reprodução.
ALMOFARIZ VI
não te surpreendas, portanto, se
tua sombra,
bem mais fiel até que um velho
cão,
subitamente te abandone à
solidão,
indo esconder-se entre os irmãos
que ombra
e formam na cidade longa
alfombra,
um cortinado espesso de emoção,
fibra detida em plena brotação,
conservada no temor que nos
assombra,
qual o que resta dos mortos nesse
escuro,
em que não rasga sequer réstia de
luz,
por chapas de concreto
recobertos,
suas sobras para trás, em ato
puro,
que as tentações do mundo não
seduz,
mas permanecem em ovários sempre
abertos.
ALMOFARIZ VII – 22 mar 2023
outras sombras se refugiam nas
pestanas,
algumas vezes disfarçadas de
fantasmas
e quando piscas, alguma vez te
pasmas,
em sobressaltos das figuras mais
insanas,
depois suspiras ou tomas tuas
tisanas,
para acalmar o coração que orgasmas,
num palpitar de expandir as plasmas
e as sobrancelhas levemente espanas,
com um riso de desculpa pelo rosto,
pensando que afinal não fora nada,
qual ilusão de ótica transiente,
enquanto a sombra se aninha no teu
busto,
por algum tempo assim reencarnada,
bem mais real do que suponha a
gente!
ALMOFARIZ VIII
outras sombras se difundem nos sprays,
quando os borrifas a afugentar
mosquitos
e se projetam em vapores
esquisitos
e julgas serem, de tua razão nas
leis,
só girotear de tais insetos, que
malditos
te esbatem pelo rosto em vastas
greis,
não mais as sombras de defuntos
reis
que se espalharam nos espaços
infinitos
e que de noite se encontram mais
aflitas,
ao se verem dissolver na escuridão,
mas outras dançam de uma vela no
morrão
e nesses pontos em que as luzes
são restritas,
saem dos velhos espirais de
proteção,
esses “boa noite” de esverdeadas
fitas.
ALMOFARIZ IX
pequenas sombras igual valsejam ao
redor,
sombras redondas de migalhas de
confete,
partilhas que provoca o “mata-inset”,
sombras dos dedos, das unhas, de um
odor,
as sobras dos cabelos, furta-cor,
esguias dançarinas de alfinete,
as sombras pixeladas da internet,
cada letra pintalgando seu valor,
sombras minúsculas das eructações,
as sombras lânguidas emitidas em
bocejo,
as sombras assustadas de um espirro,
mil devaneios em sombras de emoção,
as cem sombras carmesim de teu
desejo,
contra os tetos condensadas como um
cirro.
ALMOFARIZ X – 23 março 23
as minhas sombras são tear de
largo manto,
que sobrenadam e revoam ao redor,
algumas delas que conheço já de cór,
outras ressoando somente no meu
canto,
sombras salgadas das lágrimas de
pranto,
cada sonho assombreado em
multicor,
refrações de fogo-fátuo em
esplendor,
qual um fogo de santelmo em nada
santo,
as sombras do passado bem
lavadas,
engomadas e dobradas em alfazema,
as sombras do presente em amaciante,
sombras da máquina em giro
delirante,
as sombras do futuro ainda
aguardadas,
cada uma delas igual pequena
gema.
ALMOFARIZ XI
vejo mil sombras moldadas em
santuários,
escondidas da vista mais mundana,
coros de sombras das novenas da
semana,
sombras de santos de gesso em seus
sacrários,
sombras de antigos carros
funerários,
sombras dos cânticos que procissão
proclama,
a sombra das serragens que derrama
cada tapete em seus desenhos
perdulários,
sombras do incenso que no ar evola,
cada turíbulo embriagado de tontura,
como crianças a brincar em longos
giros
e das coroas cada sombra que se
esfola,
enquanto não vão roubar da sepultura
os mil lamentos engastados em
suspiros.
ALMOFARIZ XII
e as sombras que não queira mais
estranhas,
adormecem pelas gretas das
calçadas,
permanecendo em rua aprisionadas,
sombras das rimas que solitária
sonhas,
mas me vejo tolhido em emaranhas,
sobras de sombras também por ti
deixadas,
entre teias de aranha
entrincheiradas,
donas tais sombras de sábias
artimanhas,
mas enquanto a casa velha ainda
perdura,
moem-se as sombras dos antigos
moradores,
no almofariz da veraz repetição,
em sua aguardança de ocasião
futura,
em que se perderão seus estertores
sob os martelos da final
demolição.
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