GABAPENTINA I (8/7/2009)
[anestésico e veneno aqui me atua,
como a febre inspirada do destino.]
(Rita Hayworth, Hollywood Golden Age)
Sinto desejo de ti na escuridão
da rua deserta, que não tem abrigo;
em meu ventre, rebrotou ideal antigo,
esse sonho perdido e sem perdão.
Veio o desejo, qual vara de condão
no sortilégio que imaginar consigo,
porém sem realizar jamais contigo:
esse desejo que rasga o coração.
E vivo apenas a percorrer calçadas,
pensando em ti e vendo de relance
uma colheita de trigo e outra de fel,
nessas quimeras de luz amarguradas,
num devaneio de igual alcance
ao dos pinguins que dançam em Argel.
GABAPENTINA II
Em centelha de luz, teus olhos vejo,
o bem-querer perdido, lá no fundo:
uma armadilha nesse ardil profundo,
uma promessa anelada de teu beijo.
Em som de vagalumes, te desejo,
na noite escura, em passos iracundo,
em solitário nó, véu rubicundo,
toque de vento, escandaloso pejo.
Eu me vejo refletido na vitrina
e não gosto de mim, que não gostaras:
sou igual musgo no chão da Groenlândia.
E minha própria desdita me fascina
e contemplo, em sonho azul, das almenaras,
os elefantes que passeiam pela
Islândia.
GABAPENTINA III – 24 MAR 2023
Meu desempenho é igual aos animais,
pois como, durmo, bebo e me alivio,
em diferença o meu constante cio,
caso pensemos só em fatos naturais,
contudo, mais diversos sãoesses racionais
impulsos que dão origem ao que crio,
que em mim consistem vera fonte de desvio,
em minhas meninges de inclinações neurais.
Os meus acertos são talvez erros cruciais
e os meus erros serão afirmações gerais,
tudo ao contrário do que se afirma à toa,
mas nem por isto meu pendor é negativo,
só me conduz a um indolente ativo,
enquanto as focas cantam em Lisboa.
GABAPENTINA IV
“Ah, se eu pudesse voar!” – reclama a gente,
porém eu voo e nada posso reclamar,
passo minha vida brancas nuvens a pentear
e a costurá-las com o vento redolente.
Não voo apenas em sonho indiferente,
percebo toda a diferença ao caminhar
pelas florestas deste meu sonhar,
mas me parece ser o sonho um indigente,
se comparado ao que vejo em devaneio,
ou às elocubrações bem mais concretas,
desses sonhos conservados em anelo,
muito mais poderosos, é o que receio,
do que o tropel das falsas operetas,
ou que as girafas a galopar em Melo.
GABAPENTINA V
Se eu fora cego, aprenderia Braille
e poderia auscultar os furacões,
o discurso a tripudiar das estações,
a lã cardeada no transcorrer do baile.
Para quem gosta do hoje, calhaus dai-lhe,
para quem ama o passado, dai tufões,
quem espera seu porvir, ganhe vulcões,
quem deseja companhia, um cão empalhe.
Se eu fora cego, cantaria teus odores
e os quatro gostos retirados do palato,
uma escala musical da boca ao céu,
e viveria em plena concha dos amores,
sem grande esforço, no voo em triste fato
desses bisões a sobrevoar Montevidéu!
GABAPENTINA VI – 24 mar 2023
Entre as grades da prisão o amor jazia,
recoberto pelo sumo da videira,
a espiar por entre as fendas da viseira,
suando de calor na manhã fria.
Pelo amor da amada não mais se importaria,
vê-la perdida pelos atalhos da cegueira,
vê-la entre os dedos de gente interesseira,
que só por pura distração a morderia.
Amor forrado pelos pelos de pardais,
a arrancar das raposas cada pena,
amor buscando espinho como afago,
a ruminar constante o nunca-mais,
ganhando aplausos da multidão chilena
de mil salmões a marchar por Santiago.
GABAPENTINA VII
Compuz cem frases em malfeito besteirol:
do lado esquerdo da alça do urinol
de porcelana está pintado um coronel,
com suas dragonas, espingarda e fel.
O que eu desejo é beber a chama azul,
que sopre o vento a lã de caracul,
foliões de preto em todo o carnaval,
prêmios só dados a quem dança mal,
meus pratos sejam lavados com anil,
toda minha roupa esfregada em esmeril,
archote acendo para acender a aurora,
enquanto a luz dos Andes vai-se embora,
pois para mim, de fato, tanto faz
que gafanhotos façam ninhos em La Paz.
GABAPENTINA VIII
Carregarei em meus braços o palanquim
no qual me assento com estrelas em minha testa,
o esqueleto serei de toda a festa,
enquanto entoo o canto fúnebre de mim.
O sacramento eu me darei após o fim
e abrirei da catacumba estreita fresta,
para espiar a meu redor, se desta
sobrevivência alguém me quer enfim,
ou se todos batem palmas à minha ausência
e cantam nênias com toda a reverência
com que se batem palmas a um mosquito.
Serei a lápide a tampar minha própria boca
e de dentes cerrados, com voz rouca,
faço a elegia das serpentes sobre Quito.
GABAPENTINA IX – 25 março 2023
Serei piolho e serei o pente fino,
o bálsamo serei e igual a chaga,
ao me vender, eu me darei a paga,
cabelos brancos em calva de menino.
Serei badalo a ribombar meu sino,
serei a casca de uma uva sem ter baga,
serei a chuva que teu deserto alaga,
serei a ponta da adaga e o assassino.
Serei a lâmina de um punhal quebrdo,
serei o nó desfiado de um carrasco,
serei a saia da donzela em seus donaires,
serei a brasa no turíbulo apagado,
serei o fumo em rama que não masco,
quando jaguares sobrevoam Buenos Aires.
GABAPENTINA X
Mas tu serás a luz que me escurece
e o pão seco a mitigar-me a sede,
para minha fome o reboco da parede,
para meu sexo da penitência a prece,
serás vapor quando a chaleira aquece,
a pedra bruta que a esmeralda mede,
chuva de lava que a brotação concede,
o gelo triturado que em mim desce,
serás o talho que minhas feridas cura,
o meu veneno tomado ao desjejum,
a chibatada maior da compaixão,
o gume da tesoura que o olhar fura,
taça sem fundo em que tomar meu rum
e a zebra triste a vagar por Assunção.
GABAPENTINA XI
Os dois seremos de um corvo o crocitar,
enquanto dança no atoleiro o quero-quero;
ver os mil sapos de Atacama ainda espero
e as mil trutas de Paris a businar.
Os dois seremos passageiros do além-mar,
nessa lancha sem fundo que hoje gero,
pela minha língua enxergarei o que mais quero,
pela tua língua irás moldar o meu sonhar.
Seremos quadro estendido no tapete,
enquanto a grama cresce pelo forro,
nossas paredes abertas para o clima
todo o Pacífico a cruzar de patinete,
como piloto nomearei nosso cachorro,
e os crocodilos verás cantar em Lima.
GABAPENTINA XII
E finalmente, que não se esqueça o verso
de se ocultar do outro lado do Universo,
numa tranquila explosão de supernova,
belo cometa a cortejar a Lua Nova,
mas que não seja qualquer palavra escrita,
no palimpsexto da canção maldita,
nem um protesto contra outro protesto,
nem a favor da escravidão um manifesto.
Neles vivi quase toda a vida inteira,
servo serei até minha hora derradeira,
libertação sequer me alcançará,
enquanto os trilhos seguirei até a Austrália,
sem me perder do celular na malha,
doce giboia a se enroscar em Bogotá.
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