kandahar I (2007)
(Debra Paget, Hollywood Golden age)
poesia é como pílulas douradas
que propalam trazer felicidade;
ou como as mais modernas, azuladas,
que extasiam ao criar virilidade.
poesia é mentirosa, falsa crença:
fala de amor e coisas desiguais
que só perduram nos momentos de impotência,
quando se perdem feitos mais reais.
contudo, em seus esforços lisonjeiros,
os aedos descrevem o sonhado
em versos belos, mas infecciosos,
em que proclamam momentos passageiros
tal qual eterno fosse seu passado,
porque poetas são sempre mentirosos.
kandahar II
(28/1/2009)
para a mulher, servir um alimento
é dar parte de si, quer faça ou não:
nesse servir, fatia o coração
e sempre a cobertura é sentimento.
já vi tal coisa, até nesse momento
fugaz, em que nos serve a refeição
a garçonete, diferente do garção,
que apenas cumpre - e com ressentimento
seu dever de servir a quem não ama.
mas a mulher, quando serve o que prepara,
é esposa e mãe de qualquer desconhecido.
sempre existe algo de amor com que recama
essa porção e o coração repara
que ela é mulher em quanto tem servido.
kandahar III
amor é vício de quem deseja a mágoa,
não mais que parceria temporária,
um sopro só de vento e a brisa vária,
que se estilhaça no ardor de qualquer frágua.
pois nada dá, só nos consome a água,
a rebrotar da tristeza multifária,
na revolta afinal da mente pária,
em que a tristeza só frescor deságua.
mas quem busca esse vicio, mal passado,
retorna a ele qual se fosse mel
e o sorve inteiramente, na ilusão
de que algum dia veria confirmado
que ainda existe amor permeio ao fel
em que a saudade coagulou seu coração.
kandahar IV – 29 mar 2023
amor é vidro em sopros de Murano,
mil gotas quentes de fel e desengano,
pingos amargos no coração humano,
de todas as cruéis maior ferida.
amor de giro rápido e pastoso,
que os lábios queima em talho doloroso,
nesse beijo de rescaldo perfumoso,
amor de areia em poeira derretida.
amor é tal cristal inatingível,
essa crueza redonda de rosário,
que na ponta dos dedos se tateia,
uma emoção apenas perecível,
conduzindo o coração a seu calvário
e o transformando em baços grãos de areia.
kandahar V
amor é vingança contra a vida,
que a cada dia nos desgasta à morte
e na reunião temporária com a consorte,
por instantes leva a morte de vencida.
amor éa incerteza perseguida
de algum triunfo que a vida não aborte,
de algum sonho real que não se corte
pela vitória por outrem conseguida.
amor é o balançar do imponderável,
essa nuvem transformada em fios de lã,
sobre a qual se caminha sem sentir.
amor é o garantir do inconquistável,
a real obtenção da busca vã,
que em torno à testa nos vem tremeluzir.
kandahar VI
amor é algum martírio permanente,
esse abandono do egoísmo solitário,
transformado em súbito sacrário,
cuja tortura se aceita alegremente.
amor é ter no peito escapulário
em que a relíquia nunca está presente,
amor é fogo sem chama incandescente,
branca vaidade desprovida de vestuário.
amor é a fantasia que se tem no relicário,
que se conserva trancado com firmeza,
sem nunca olhar para seu interior.
amor é o desaponto de um santuário,
que se imagina faiscante de beleza,
mas que conserva presa apenas dor.
kandahar
VII – 30 mar 2023
amor é o pó da peregrinação
para atingir o templo mais profano,
amor é a adoração do desengano,
espinho fundo em cada coração.
amor é arco-íris em perfuração
do desdém a chegar ano após ano,
amor é o desvendar de cada plano
perante olhar de quem se espera aprovação.
amor é essa constante negação
daquilo que algum dia se esperou
e que a preço de suspiros se ganhou.
amor granito que se pensou ser jade,
jóia partida a brilhar consolação,
não mais que engaste da real felicidade.
kandahar VIII
amor mais do que tudo é aceitação
de quanto nos pode dar um companheiro,
de quanto mais se perderá ligeiro,
quando se ingressa demais num coração.
amor é o vício feito em abnegação,
quando é preciso se entregar primeiro
aquele mesmo dote alvissareiro
que se esperava receber já de antemão.
amor desejo que se torna mais difuso
e tão somente em despeito se partilha,
de não se ter do esperado o quanto
amor que se queria em diário uso,
nessa marcha em comum da longa trilha,
a lavar dos pés o pó com o próprio pranto
kandahar
IX
amor contudo é o único descanso
que encontramos em cada encruzilhada,
sem esse vago amor não temos nada,
salvo ilusão que surja sem remanso.
amor diariamente assim nos lança
a demonstrar a esperança na alvorada,
nós mesmos dando a dádiva esperada,
que receber em troca não se alcança.
amor é neste dar que então perdura
e se reforça a cada esforço mais
e não se perde o que lançamos lá.
amor é o egoísmo generoso desta jura,
que sempre encontra em si algo demais,
porque se ganha no instante em que se dá.
kandahar
X – 31 março 2023
amor é o ato de servir um alimento,
para a mulher sempre prova de amor,
mas o poeta manifesta igual ardor
enquanto serve porções de sentimento.
amor são versos de imperfeito julgamento,
porém que neles se investiu pleno vigor:
algo se perde, mas se transmite sem temor
fatias solertes do próprio pensamento.
amor é a massa tornada em refeição,
em que se investe carinho e energia,
sem se dar a própria carne a mastigar.
amor do poeta é o rasgar do coração,
em cada trecho de luz que traz ao dia,
num sacrifício que nem quer recuperar.
kandahar
XI
amor é essa capa em que se esconde,
quando não busca fama ou qualquer glória,
a própria alma em intenção peremptória,
fluir deixando sem sequer saber aonde.
amor as frases a brotar sem saber donde,
cada estrofe da anterior persecutória,
sem de fato revelar a própria história,
nem quanto de sua carne ali se infunde.
amor capricho que veria um psiquiatra
como uma pista para seu desequilíbrio:
por que entregar-se assim, inutilmente?
amor domínio de uma agonia tão atra,
que ainda se oculta por trás desse ludíbrio,
na pretensão de ser à dor indiferente.
kandahar
XII
amor não existe para a psicanálise,
sua mola mestra no fundo é sempre amor,
por mais diverso do comum o seu valor,
nos versos todo amor sofre diálise.
amor é a falha real de uma autoanálise,
de cada artéria a sangrar em seu fervor,
sua própria mente servida em estertor,
sua própria alma em sístole e diástole.
amor é a servidão nessa guarida
na mulher a dispersar-se inteiramente,
como alimento para seu metabolismo,
amor é o verso lançado a quem convida,
algo supérfluo para o povo realmente,
para quem ama o furta-cor do romantismo.
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