segunda-feira, 10 de abril de 2023


 

 

kandahar I   (2007)

(Debra Paget, Hollywood Golden age)

 

poesia é como pílulas douradas

que propalam trazer felicidade;

ou como as mais modernas, azuladas,

que extasiam ao criar virilidade.

 

poesia é mentirosa, falsa crença:

fala de amor e coisas desiguais

que só perduram nos momentos de impotência,

quando se perdem feitos mais reais.

 

contudo, em seus esforços lisonjeiros,

os aedos descrevem o sonhado

em versos belos, mas infecciosos,

 

em que proclamam momentos passageiros

tal qual eterno fosse seu passado,

porque poetas são sempre mentirosos.

 

kandahar II  (28/1/2009)

 

para a mulher, servir um alimento

é dar parte de si, quer faça ou não:

nesse servir, fatia o coração

e sempre a cobertura é sentimento.

 

já vi tal coisa, até nesse momento

fugaz, em que nos serve a refeição

a garçonete, diferente do garção,

que apenas cumpre - e com ressentimento

 

seu dever de servir a quem não ama.

mas a mulher, quando serve o que prepara,

é esposa e mãe de qualquer desconhecido.

 

sempre existe algo de amor com que recama

essa porção e o coração repara

que ela é mulher em quanto tem servido.

 

kandahar III

 

amor é vício de quem deseja a mágoa,

não mais que parceria temporária, 

um sopro só de vento e a brisa vária,

que se estilhaça no ardor de qualquer frágua.

 

pois nada dá, só nos consome a água,

a rebrotar da tristeza multifária,

na revolta afinal da mente pária,

em que a tristeza só frescor deságua.

 

mas quem busca esse vicio, mal passado,

retorna a ele qual se fosse mel

e o sorve inteiramente, na ilusão

 

de que algum dia veria confirmado

que ainda existe amor permeio ao fel

em que a saudade coagulou seu coração.

 

kandahar IV – 29 mar 2023

 

amor é vidro em sopros de Murano,

mil gotas quentes de fel e desengano,

pingos amargos no coração humano,

de todas as cruéis maior ferida.

 

amor de giro rápido e pastoso,

que os lábios queima em talho doloroso,

nesse beijo de rescaldo perfumoso,

amor de areia em poeira derretida.

 

amor é tal cristal inatingível,

essa crueza redonda de rosário,

que na ponta dos dedos se tateia,

 

uma emoção apenas perecível,

conduzindo o coração a seu calvário

e o transformando em baços grãos de areia.

 

kandahar V

 

amor é vingança contra a vida,

que a cada dia nos desgasta à morte

e na reunião temporária com a consorte,

por instantes leva a morte de vencida.

 

amor éa incerteza perseguida

de algum triunfo que a vida não aborte,

de algum sonho real que não se corte

pela vitória por outrem conseguida.

 

amor é o balançar do imponderável,

essa nuvem transformada em fios de lã,

sobre a qual se caminha sem sentir.

 

amor é o garantir do inconquistável,

a real obtenção da busca vã,

que em torno à testa nos vem tremeluzir.

 

kandahar VI

 

amor é algum martírio permanente,

esse abandono do egoísmo solitário,

transformado em súbito sacrário,

cuja tortura se aceita alegremente.

 

amor é ter no peito escapulário

em que a relíquia nunca está presente,

amor é fogo sem chama incandescente,

branca vaidade desprovida de vestuário.

 

amor é a fantasia que se tem no relicário,

que se conserva trancado com firmeza,

sem nunca olhar para seu interior.

 

amor é o desaponto de um santuário,

que se imagina faiscante de beleza,

mas que conserva presa apenas dor.

 

kandahar VII – 30 mar 2023

 

amor é o pó da peregrinação

para atingir o templo mais profano,

amor é a adoração do desengano,

espinho fundo em cada coração.

 

amor é arco-íris em perfuração

do desdém a chegar ano após ano,

amor é o desvendar de cada plano

perante olhar de quem se espera aprovação.

 

amor é essa constante negação

daquilo que algum dia se esperou

e que a preço de suspiros se ganhou.

 

amor granito que se pensou ser jade,

jóia partida a brilhar consolação,

não mais que engaste da real felicidade.

 

 kandahar VIII

 

amor mais do que tudo é aceitação

de quanto nos pode dar um companheiro,

de quanto mais se perderá ligeiro,

quando se ingressa demais num coração.

 

amor é o vício feito em abnegação,

quando é preciso se entregar primeiro

aquele mesmo dote alvissareiro

que se esperava receber já de antemão.

 

amor desejo que se torna mais difuso

e tão somente em despeito se partilha,

de não se ter do esperado o quanto

 

amor que se queria em diário uso,

nessa marcha em comum da longa trilha,

a lavar dos pés o pó com o próprio pranto

 

kandahar IX

 

amor contudo é o único descanso

que encontramos em cada encruzilhada,

sem esse vago amor não temos nada,

salvo ilusão que surja sem remanso.

 

amor diariamente assim nos lança

a demonstrar a esperança na alvorada,

nós mesmos dando a dádiva esperada,

que receber em troca não se alcança.

 

amor é neste dar que então perdura

e se reforça a cada esforço mais

e não se perde o que lançamos lá.

 

amor é o egoísmo generoso desta jura,

que sempre encontra em si algo demais,

porque se ganha no instante em que se dá.

 

kandahar X – 31 março 2023

 

amor é o ato de servir um alimento,

para a mulher sempre prova de amor,

mas o poeta manifesta igual ardor

enquanto serve porções de sentimento.

 

amor são versos de imperfeito julgamento,

porém que neles se investiu pleno vigor:

algo se perde, mas se transmite sem temor

fatias solertes do próprio pensamento.

 

amor é a massa tornada em refeição,

em que se investe carinho e energia,

sem se dar a própria carne a mastigar.

 

amor do poeta é o rasgar do coração,

em cada trecho de luz que traz ao dia,

num sacrifício que nem quer recuperar.

 

kandahar XI

 

amor é essa capa em que se esconde,

quando não busca fama ou qualquer glória,

a própria alma em intenção peremptória,

fluir deixando sem sequer saber aonde.

 

amor as frases a brotar sem saber donde,

cada estrofe da anterior persecutória,

sem de fato revelar a própria história,

nem quanto de sua carne ali se infunde.

 

amor capricho que veria um psiquiatra

como uma pista para seu desequilíbrio:

por que entregar-se assim, inutilmente?

 

amor domínio de uma agonia tão atra,

que ainda se oculta por trás desse ludíbrio,

na pretensão de ser à dor indiferente.

 

kandahar XII

 

amor não existe para a psicanálise,

sua mola mestra no fundo é sempre amor,

por mais diverso do comum o seu valor,

nos versos todo amor sofre diálise.

 

amor é a falha real de uma autoanálise,

de cada artéria a sangrar em seu fervor,

sua própria mente servida em estertor,

sua própria alma em sístole e diástole.

 

amor é a servidão nessa guarida

na mulher a dispersar-se inteiramente,

como alimento para seu metabolismo,

 

amor é o verso lançado a quem convida,

algo supérfluo para o povo realmente,

para quem ama o furta-cor do romantismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário