janelas nos telhados XIII – 19 julho 2023
ah, meu poema! essa
canção idiota,
que se permite repetir a esmo!
o meu poema, que escrevi eu mesmo,
já foi escrito por tanta gente ignota!
o meu poema pintado foi na grota
por trogloditas nos séculos de antanho,
o meu poema cresceu em tal tamanho
que mal cabe nestas frases que se anota...
a esferográfica trago entre meus dedos,
o meu poema foi digitado na Internet,
a competir com qualquer pornografia...
o meu poema lançou-se sem ter medos
e esfacelou-se em pixelada de confete,
enquanto o teu olhar sequer o via...
janelas nos telhados XIV
o meu poema de há muito não é meu,
ou mesmo nunca o foi, provavelmente;
o meu poema é o apelo do presente
às brumas do porvir, em denso véu;
o meu poema são as gotas de algum céu,
que azuis escorrem em dia de sol quente,
o meu poema é o passado que pressente
a data de meu fim e assim do teu!
o meu poema é a criança desnutrida
cujos brinquedos são cãezinhos pelo chão:
o meu poema tem total falta de higiene!
o meu poema é a fada já esquecida,
velha acendalha que te pica o coração,
que provoca a tua revolta e nada teme!
janelas nos telhados XV
o meu poema é a derradeira gema
que te possa mostrar, feita de vida,
de carne e osso em hora desvalida,
de sangue e mente ao proclamar seu lema!
o meu poema é tão só joia pequena,
que brilha pouco, de seu colar perdida,
envolta em pele, sua luz esmorecida,
mesmo que seja de textura amena...
o meu poema é assim, que hoje te dou,
como outros já te dei e ainda darei,
enquanto a alma escorre entre meus dedos.
chegado o dia em que o poema terminou,
com ele então me fundo e morrerei,
completamente esvaído de segredos...
janelas nos telhados XVI – 20 julho 2023
o meu poema é a solidão de agosto,
quando versos se queimam nas lareiras,
o meu poema é pão e queijo e mosto,
ao redor de um fondue, bocas certeiras,
o meu poema é quando, no sol posto,
alguns colocam nas calçadas as cadeiras,
o meu poema é o tom de cada gosto,
desses que veem as novelas derradeiras.
o meu poema, ave de arribação,
sobrevoando cada parte do verão,
o meu poema as persegue, em sua rapina,
que espreita de soslaio toda sina
e sobretudo, é também ave canora,
que escutas hoje, mas que logo vai-se embora.
janelas nos telhados XVII
e o teu poema, por que não se manifesta?
por que teu verso calado permanece?
é tão somente o que murmuras em tua prece?
ou será isso que gargalhas numa festa?
é tua maldade, que ao redor empesta?
é uma lembrança que à tua consciência desce?
já foi palavra de amor, que ora se esquece?
ou a palavra de ódio que te infesta?
qual é o teu poema, doce amada
ou caro amigo meu, que desconheço?
é teu poema a tua forma de viver?
são os teus passos que deixaste pela estrada?
tudo quanto eu queria conhecer e que hoje peço
e saberei só em meu instante de morrer?
janelas nos telhados XVIII
fazes poemas a servir comida,
fazes poemas no lavar da louça?
faz um poema quem cabelos tosa,
quem limpa a casa e a deixa bem varrida?
fazes poemas em tal hora distraída,
em que te mostras boa mãe e bom esposa,
quando o ferro de passar enfim se pousa,
nesse suspiro final da longa lida?
ah, teu poema! no
escritório escrito,
na loja, na oficina, ao comutar,
nos longos ônibus, cansada das paradas,
no fórum, no hospital, em todo o agito,
nesse invisível rascunho sem cessar,
até que soem da saída as badaladas?
janelas nos telhados XIX – 21 julho 2023
porque, afinal, se serves o alimento,
que diferença faz se eu sirvo o verso?
se teu trabalho é ainda mais diverso,
que diferença tem do pensamento?
esse poema de que hoje me sustento
é a vida humana em seu lidar disperso,
é do ateu, do pagão, todo o converso,
do muçulmano e do budista em seu alento.
e sequer penso que os poemas sejam meus,
tudo dependerá da interpretação:
eles me surgem completos, lá do fundo,
quer para um padre, um rabino, quer ateus,
o que interessa é o que lhes toca o coração,
seja um ligeiro pensar, seja um profundo.
janelas nos telhados XX
o meu poema, portanto, não é meu,
depende inteiramente de ser lido
e quando vejo antigo livro mantido,
nas prateleiras de meu respeito fariseu,
que nunca leio, o poema se perdeu,
nem sequer por meu olhar a ser ferido,
tantos volumes em que poema foi perdido,
mesmo que impresso para quem antes o escreveu.
assim percebo que meu poema é um esmoler,
com a diferença de que na nuvem voa,
mas fica ali encolhido, pipilando,
na esperança de que um rosto de mulher
ou de algum homem sensível de alma boa,
por alguns minutos o vá acariciando.
janelas nos telhados XXI
nenhum poema existe sem leitor
ou, pelo menos, que não tenha ouvinte,
vates e bardos em irmandade se pressinte,
só há congregação se houver reitor,
quer seja a prédica proferida com amor
ou um discurso de político que minte,
no painel da mente não existe quem o pinte,
talvez se grave da fala o esplendor?...
hoje é comum, em tais redes sociais
que se escreva o que foi dito claramente,
há até programas que mostram em alfabeto
o que foi gravado só por vozes naturais
e existe a nuvem, microsoftalmente,
que se gaba de guardar quanto é dileto.
janelas nos telhados XXII – 22 julho 2023
o meu poema é como a ave em extinção,
talvez defendam-no alguns ambientalistas,
mas quantos deles seguiriam minhas pistas,
caso o que eu digo não atenda à sua noção?
o meu poema podia ser fossilização,
a ser guardada de maneiras mistas,
de um grande museu entre as conquistas
(ou somente depositado num porão).
eventualmente, um funcionário responsável,
examinando os depósitos de poeira,
encontrará restos rasgaddos do poema,
a apresentar ao diretor, mais venerável,
que autorizasse sua exibição ligeira,
de uma breve exposição o tema!
janelas nos telhados XXIII
mas por enquanto, só eu percorro as trilhas,
estas se entregam a todo o turbilhão,
sua carne magra como jovem em paixão,
terrível o mar na abordagem dessas ilhas,
são mil estrofes de minha memória as filhas,
em largo leito de sonhos e ilusão,
nesse estremunho de todo o coração,
amor e ódio a evaporar de tantas bilhas.
fica o arcabouço para tua imaginação,
tu estás comigo nessa nuvem plendorosa,
cada centelha uma hóstia se perdendo,
muito mais que tão somente o coração,
cheio de espinhos, sem proteção da rosa,
hastes apenas, em que vai desfalecendo!
janelas nos telhados XXIV
e o meu poema é a luz da mariposa
que um dia te pousou nas sobrancelhas;
o meu poema são as rugas dessas velhas
que ainda recordam quando a pele lhes foi rosa;
o meu poema é a tristeza mais formosa,
é a tua vaidade, se ao mirar te espelhas,
mas meu poema olhares são de esguelhas,
dessas invejas que circundam a mais ditosa.
e meu poema, assim tão reiterado,
não teria sentido se apenas fosse meu,
só tem valor por que o interpretaste e leste,
portanto, assim partilhas do pecado
do ser humano, porque o poema é teu
e não te enganes: foste tu que o escreveste!
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