SUCESSORES I – 3 AGOSTO 2023
(Mylene Demongeot, apogeu cine francês)
O que será de mim, se um dia fores
Pelo caminho por que ninguém retorna,
Contra meus dentes só a lembrança morna
Desses teus beijos de vívidos calores?
Como irei resistir às tantas dores
Com que a vida progressivamente escorna,
Qual um receptáculo que meu peito adorna,
Pintalgado de torturas de mil cores?
Não saberei, caso te vás
primeiro,
Até a abertura da final comporta,
Se existe vida depois com emoção,
Nem irei saber se vou seguir ligeiro
Ou terei longa estadia na retorta
Dessa flor murcha que será meu coração.
SUCESSORES II
A morte não me espanta e nem a temo,
Só me amargura cruzar a decadência,
Na jornada sem fim dessa tua
ausência,
Empunhando sem vontade o duro remo.
Como aos Romanos, para mim esse
veneno
Não será junto de mim jamais
presença,
Enquanto estou aqui não tem potência,
Quando chegar, só no instante mais
pequeno
Me encontrará, sem causar maior
efeito,
Quer descesse ao Orco, sob a antiga
Roma,
Ou fosse achar no Hades seu sentido;
De qualquer modo a tal fim não estou
sujeito,
Nem a minha mente computará sua soma;
Se for de fato o fim, sem temor será
acolhido.
SUCESSORES III
Só o que me afeta é a pena do processo,
Que o preço de se ter longa existência
Seja enfrentar momentos de demência
Ou ver o corpo a estilhar-se como gesso.
Se é possível pedir, a morte eu peço
Que chegue rápida em sua total potência,
Sem enfrentar a tortura da inclemência:
A cada dia que passa, um menos meço.
Contudo encaro ainda a multidão
De meus rascunhos que nunca digitei,
Mais os milhares só datilografados:
Por mais que me incomode a posição,
A cada dia novo esforço empreenderei,
Que alguns ao menos sejam registrados.
SUCESSORES IV – 4 agosto 2023
Sem qualquer dúvida, cumpri a minha função
Para os gens da raça humana transmitir,
Deixo seis filhos para me seguir,
Espero vê-los ao redor de meu caixão.
Encaminhados sei bem todos estão,
Embora cinco netos só me quiseram permitir,
Mas é quanto basta para a hora em que eu dormir,
Sua existência é que me dá preocupação.
Se de algum modo a morte me perturba
É o de assistir de algum o passamento,
Mui certamente partir quero primeiro,
Para reunir-me a essa imensa turba,
De meus velhos ancestrais em seguimento,
Sem me tornar sobrevivente derradeiro.
SUCESSORES V
Talvez por isso tenha escrito tantos
versos
Para espalhar por aí tão descuidado,
Tais herdeiros que nem sei para que
lado
Os fiz partir nestes mundos
controversos;
Meus sentimentos em liturgias
conversos
Terão algures existências reais
achado?
Que noutras mentes se tenham
aninhado,
A disputar os julgamentos mais
diversos?
Mas como saberei se não morreram
Esses milhares de poemas espelhados,
Terão achado um galho em que pousar?
Dificilmente poemas netos me
trouxeram...
Quais seriam os seus sonhos
continuados
E se os tiveram, como posso os
abençoar?
SUCESSORES VI
Meu pai fazia questão que lhe beijasse
As costas de sua mão para sua bênção dar.
Acreditaria ter de Abraão
bênção para dispensar?
E ma daria em prestação, caso a tivesse?
Qual bênção tinha para
que me repassasse?
Certamente não me soube aconselhar.
Quem sabe achasse que o fui desapontar,
Talvez sentisse que ao contrário o superasse.
Era político e discursava muito bem,
Eu nada herdei de seu dom de oratória,
Sei apenas distribuir meus versos mil,
Que tanta vez já declarei também
Sequer acreditar me dessem glória,
Mas me viessem de algum ponto do Brasil.
SUCESSORES VII – 5 agosto 2023
Podem sonetos se enamorar de outros sonetos
E com eles copular literalmente,
Criando versos em formato diferente,
Sílabas secas a montar em esqueletos?
Não recordo esta ideia de locais secretos,
Por mais que tenha lido poemas realmente.
São de fato sucessores frente à frente,
De algum modo a encontrar afetos?
Talvez aqui eu me esteja a contrariar,
Depois de tantos anos, afinal,
Que os versos não são meus, mas recebidos,
Quem sabe para que os possa adotar
E com o seu fado não me preocupar,
Sem ter direito por tê-los concebidos?
SUCESSORES VIII
Se é que existem dinastias de
sonetos,
Como variantes de vírus a ser diversos,
Iguais COVIDes em mutações dispersos,
A mente a infectar qual fazem fetos,
Que se introduzem nos ventres mais
secretos,
Entre as meninges do cérebro
conversos,
Alguns benéficos, talvez outros
perversos,
A conquistar os domínios mais
completos?
Se for assim, decerto me infectaram
Vírus-sonetos no passado concebidos,
Que em mim insistem por serem
redigidos,
Não importa de mim o quanto retiraram,
Mas parasitaram minha alma com ardor,
Seja por fome ou para demonstrar-me
amor.
SUCESSORES IX
Em tal caso, só posso ser sua habitação
E me tornar a mãe desses jograis,
Enquanto o pai de meus próprios ancestrais
E destinado a provocar sua aparição?
Ser lar apenas de sua destinaçãp
Enviados por entidades tão só espirituais,
Que me impõem as suas vontades por demais,
Que por suas lutas deva dar continuação?
“Provai os espíritos e vêde como sãp”,
Nos recomenda o versículo das Escrituras.
Será quetenho o poder dessa balança?
Capaz de fazer assim tal diferenciação,
Entre os indignos e os de
preces puras,
Oscilando entre o desespero e a esperanç?
SUCESSORES X – 6 agosto 2023
Herdeiro sou de toda a humanidade,
Até que ponto a conclusão de seus afetos,
Até que ponto a influir a virilidade,
Até que ponto a feminilidade nesses fetos?
Que diferença, afinal, nesses diletos,
Concebidos pela feminilidade,
Até que ponto foi
masculinidade
Progenitora de tantos seus defeitos?
Poemas filhos, poemas netos ou bisnetos,
Alguns descendem da grande Safo antiga,
Outros de Alceu, que a amou sem ser amado,
Talvez alguns conservem dons secretos
Do Farol de Alexandria ou até da liga
Do Colosso de Rhodes, pelos deuses derribado?
SUCESSORES XI
Se foi assim, da vaidade sou o
herdeiro
Desses meus ancestrais pouco
lembrados,
Só por suas obras sendo recordados,
Extinto assim o seu orgulho
sobranceiro;
De seu castigo serei o companheiro,
Porém meus ossos espero ser cremados,
Sem que sejm no futuro examinados
Por arqueólogo só da ciência
interesseiro.
Somente espero que esta grande multidão
De meus poemas não tenha igual
destino,
Que Apollo e Dionyso mostrem dó
E conservem esta biblioteca de
canção,
Em que resguardo dos ancestrais o
sino
Sem compartilharem de meu próprio pó.
SUCESSORES XII
Fico a pensar nessa congregação
De sílabas, de consoantes e vogais,
Espalhada pelos vácuos digitais,
De uns e zeros em sua alternação.
Pouco me importa par mim celebração,
Mas de igual modo que meus filhos naturais
Não me percebem em aquedutos sepulcrais,
Esses versos de tão antiga geração,
Mas que possam inspirar mil odisseias,
Pelos canais do mundo perfurados,
Abri por eles mil tuneis
pelo ar,
Que ali rebrilhem em douradas candeias,
Por milhares de ventos transportados,
Sem precisar meu estranho nome conservar.
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