sábado, 19 de agosto de 2023


 

SUCESSORES I – 3 AGOSTO 2023

(Mylene Demongeot, apogeu cine francês)

O que será de mim, se um dia fores

Pelo caminho por que ninguém retorna,

Contra meus dentes só a lembrança morna

Desses teus beijos de vívidos calores?

Como irei resistir às tantas dores

Com que a vida progressivamente escorna,

Qual um receptáculo que meu peito adorna,

Pintalgado de torturas de mil cores?

Não saberei, caso te vás  primeiro,

Até a abertura da final comporta,

Se existe vida depois com emoção,

Nem irei saber se vou seguir ligeiro

Ou terei longa estadia na retorta

Dessa flor murcha que será meu coração.

SUCESSORES II

A morte não me espanta e nem a temo,

Só me amargura cruzar a decadência,

Na jornada sem fim dessa tua ausência,

Empunhando sem vontade o duro remo.

Como aos Romanos, para mim esse veneno

Não será junto de mim jamais presença,

Enquanto estou aqui não tem potência,

Quando chegar, só no instante mais pequeno

Me encontrará, sem causar maior efeito,

Quer descesse ao Orco, sob a antiga Roma,

Ou fosse achar no Hades seu sentido;

De qualquer modo a tal fim não estou sujeito,

Nem a minha mente computará sua soma;

Se for de fato o fim, sem temor será acolhido.

SUCESSORES III

Só o que me afeta é a pena do processo,

Que o preço de se ter longa existência

Seja enfrentar momentos de demência

Ou ver o corpo a estilhar-se como gesso.

Se é possível pedir, a morte eu peço

Que chegue rápida em sua total potência,

Sem enfrentar a tortura da inclemência:

A cada dia que passa, um menos meço.

Contudo encaro ainda a multidão

De meus rascunhos que nunca digitei,

Mais os milhares só datilografados:

Por mais que me incomode a posição,

A cada dia novo esforço empreenderei,

Que alguns ao menos sejam registrados.

 

SUCESSORES IV – 4 agosto 2023

Sem qualquer dúvida, cumpri a minha função

Para os gens da raça humana transmitir,

Deixo seis filhos para me seguir,

Espero vê-los ao redor de meu caixão.

Encaminhados sei bem todos estão,

Embora cinco netos só me quiseram permitir,

Mas é quanto basta para a hora em que eu dormir,

Sua existência é que me dá preocupação.

Se de algum modo a morte me perturba

É o de assistir de algum o passamento,

Mui certamente partir quero primeiro,

Para reunir-me a essa imensa turba,

De meus velhos ancestrais em seguimento,

Sem me tornar sobrevivente derradeiro.

SUCESSORES V

Talvez por isso tenha escrito tantos versos

Para espalhar por aí tão descuidado,

Tais herdeiros que nem sei para que lado

Os fiz partir nestes mundos controversos;

Meus sentimentos em liturgias conversos

Terão algures existências reais achado?

Que noutras mentes se tenham aninhado,

A disputar os julgamentos mais diversos?

Mas como saberei se não morreram

Esses milhares de poemas espelhados,

Terão achado um galho em que pousar?

Dificilmente poemas netos me trouxeram...

Quais seriam os seus sonhos continuados

E se os tiveram, como posso os abençoar?

SUCESSORES VI

Meu pai fazia questão que lhe beijasse

As costas de sua mão para sua bênção dar.

Acreditaria  ter de Abraão bênção para dispensar?

E ma daria em prestação, caso a tivesse?

Qual bênção tinha  para que me repassasse?

Certamente não me soube aconselhar.

Quem sabe achasse que o fui desapontar,

Talvez sentisse que ao contrário o superasse.

Era político e discursava muito bem,

Eu nada herdei de seu dom de oratória,

Sei apenas distribuir meus versos mil,

Que tanta vez já declarei também

Sequer acreditar me dessem glória,

Mas me viessem de algum ponto do Brasil.

 

SUCESSORES VII – 5 agosto 2023

Podem sonetos se enamorar de outros sonetos

E com eles copular literalmente,

Criando versos em formato diferente,

Sílabas secas a montar em esqueletos?

Não recordo esta ideia de locais secretos,

Por mais que tenha lido poemas realmente.

São de fato sucessores frente à frente,

De algum modo a encontrar afetos?

Talvez aqui eu me esteja a contrariar,

Depois de tantos anos, afinal,

Que os versos não são meus, mas recebidos,

Quem sabe para que os possa adotar

E com o seu fado não me preocupar,

Sem ter direito por tê-los concebidos?

SUCESSORES VIII

Se é que existem dinastias de sonetos,

Como variantes de vírus  a ser diversos,

Iguais COVIDes em mutações dispersos,

A mente a infectar qual fazem  fetos,

Que se introduzem nos ventres mais secretos,

Entre as meninges do cérebro conversos,

Alguns benéficos, talvez outros perversos,

A conquistar os domínios mais completos?

Se for assim, decerto me infectaram

Vírus-sonetos no passado concebidos,

Que em mim insistem por serem redigidos,

Não importa de mim o quanto retiraram,

Mas parasitaram minha  alma com ardor,

Seja por fome ou para demonstrar-me amor.

SUCESSORES IX

Em tal caso, só posso ser sua habitação

E me tornar a mãe desses jograis,

Enquanto o pai de meus próprios ancestrais

E destinado a provocar sua aparição?

Ser lar apenas de sua destinaçãp

Enviados por entidades tão só espirituais,

Que me impõem as suas vontades por demais,

Que por suas lutas deva dar continuação?

“Provai os espíritos e vêde como sãp”,

Nos recomenda o versículo das Escrituras.

Será quetenho o poder dessa balança?

Capaz de fazer assim tal diferenciação,

Entre os indignos  e os de preces puras,

Oscilando entre o desespero e a esperanç?

 

SUCESSORES X – 6 agosto 2023

Herdeiro sou de toda a humanidade,

Até que ponto a conclusão de seus afetos,

Até que ponto a influir a virilidade,

Até que ponto a feminilidade nesses fetos?

Que diferença, afinal, nesses diletos,

Concebidos pela feminilidade,

Até que ponto foi  masculinidade

Progenitora de tantos seus defeitos?

Poemas filhos, poemas netos ou bisnetos,

Alguns descendem da grande Safo antiga,

Outros de Alceu, que a amou sem ser amado,

Talvez alguns conservem dons secretos

Do Farol de Alexandria ou até da liga

Do Colosso de Rhodes, pelos deuses derribado?

SUCESSORES XI

Se foi assim, da vaidade sou o herdeiro

Desses meus ancestrais pouco lembrados,

Só por suas obras sendo recordados,

Extinto assim o seu orgulho sobranceiro;

De seu castigo serei o companheiro,

Porém meus ossos espero ser cremados,

Sem que sejm no futuro examinados

Por arqueólogo só da ciência interesseiro.

Somente espero  que esta grande multidão

De meus poemas não tenha igual destino,

Que Apollo e Dionyso mostrem dó

E conservem esta biblioteca de canção,

Em que resguardo dos ancestrais o sino

Sem compartilharem de meu próprio pó.

SUCESSORES XII

Fico a pensar nessa congregação

De sílabas, de consoantes e vogais,

Espalhada pelos vácuos digitais,

De uns e zeros em sua alternação.

Pouco me importa par mim celebração,

Mas de igual modo que meus filhos naturais

Não me percebem em aquedutos sepulcrais,

Esses versos de tão antiga geração,

Mas que possam inspirar mil odisseias,

Pelos canais do mundo perfurados,

Abri  por eles mil tuneis pelo ar,

Que ali rebrilhem em douradas candeias,

Por milhares de ventos transportados,

Sem precisar meu estranho nome conservar.

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