CRISTAIS DE PRATA I
(8/10/2009)
(Deanna Durbin, no auge de Hollywood)
Não me custa atender ao que me pedem,
quer mereçam, quer não. Qual é o juiz?
Quem julga o mérito e depois me diz
em que medida, com que poder se medem
os méritos que a outrem se concedem?
Quer me atrapalhe ou não, eu sempre fiz
o quanto a meu alcance. Sempre quis
ser generoso, ainda que me enredem.
Quem julga meu prejuízo ou lucro novo?
Não sou eu, certamente. E nem espero
gratidão ou retorno. Só me buscam
quando desejam algo. Assim o povo
que me rodeia, em tudo considero,
embora falsos pensem que me ofuscam.
CRISTAIS DE PRATA II
O que eu queria mesmo era um soneto
fazer de amor aqui, enquanto espero;
porém de alheias coisas deblatero:
não se disseca amor qual um inseto.
Falar de amor seria mais completo.
Todas se agradariam de um sincero
juramento de amor, porém não quero
falar de amor, quando no peito, quieto,
dormita o sentimento. Foi tão forte
e agora apenas pisca sua ironia,
ao compreender como foi manipulado:
pensava ser amor e era outra sorte:
um compromisso ausente de elegia,
pretexto apenas de poema imaculado.
CRISTAIS DE PRATA III
Falar de amor não sei, quando não sinto.
Seco me encontro agora e nem promessa
faço a mim mesmo. Já me olvidei dessa
exultação que em tantos versos pinto.
Não era ideal de amor, porque pressinto
que a agitação sentida já me esqueça.
Não foste para mim senão espessa
sensação desvairada, que um extinto
tesouro demandava e nunca via:
multidão de emoções desencontradas,
que só outras queriam despertar,
porém não alcançaram a magia
achar fora de si, nessas estradas
e se deixaram, uma a uma, agonizar.
CRISTAIS DE PRATA IV – 27 agosto 2023
Pois cada amor é um sonho canibal,
que outros amores anseia devorar,
é uma emoção de egoístico afirmar,
que outras expulsa em fúria de animal!
Queira amor ser exclusivo é natural:
como pode o corpo e a alma dominar,
sem de cada interstício se esforçar
pela expulsão dos homízios de um rival?
Só que expulsar não basta a esse selvagem,
quer todo o sangue e a carne mastigar
e dos ossos fazer flautas de magia!
Do antigo amor a adquirir toda a coragem
ao adversário levando a rastejar,
lançando ao fogo toda a antiga melodia!
CRISTAIS DE PRATA V
Pois todo amor também é partitura,
numa orquestra de melífluos instrumentos,
cada qual a tocar seus fragmentos,
só no conjunto é que a harmonia perdura!
Porém se algum instrumentista ainda conjura
os compassos irregulares do tormento
e a melodia altera a seu contento,
surge a discórdia e a dissonância dura!
Amor assim é o mais cruel regente
e não permite qualquer falha do compasso,
mesmo o spalla a obedecer à sua batuta. (*)
(*) O Primeiro Violino, encarregado dos solos.
Descem as notas sobre o palco ardente,
quiálteras e mordentes num abraço,
que não aceita a mínima disputa!...
CRISTAIS DE PRATA VI
Cristais de prata em forma de nitrato,
se usava antanho para se revelar fotografia,
na exatidão do modelo que ali havia,
bem mais fácil a natureza que um retrato...
Ficam os imóveis rostos em recato
de antepassados quase indicando a agonia,
na imobilidade que então se requeria,
mal respirando para manter um só formato!
Como era egoistica uma tal recordação!
Eram só cascas colhidas com vigor,
reflexo apenas da luz dos refletores!
Os olhos secos contra a expectação
de uma explosão repentina em seu ardor,
de um brilho químico a copiar velhos senhores!
CRISTAIS DE PRATA VII – 28 AGOSTO 23
Claro estava que o costume permitia,
quadros a óleo a requerer igual posar
e mesmo reis não ousavam protestar,
embora, é claro, pausas longas se pedia!
Porém presumo que o infeliz respiraria,
num desespero para se coçar,
que o artista não lhe poderia negar,
pois muitas horas na obra gastaria!...
Mas certamente não havia o padecer
desse aguardo pelo flash alvinitente,
quase forçados os olhos a piscar!
Por isso queriam alguns rosto esconder
dessa tortura apenas conveniente
para a vaidade da família conservar!
CRISTAIS DE PRATA VIII
Só imagino como poderiam se aguentar,
em seus vestidos de grosso gorgorão
ou nas sobrecasacas em que estão,
sob o furor do sol a se aquietar!
Pois certamente viria alguém suar,
nessa postura rígida em que estão,
desfeita a boca num sorriso de ilusão,
malfeito o rosto em rígido penar!
Muitas décadas depois, mais fraco o brilho
das máquinas Kodak e similares,
os maus reflexos surgiam à socapa
e os olhos se estreitavam nesse trilho,
formando expressões patibulares,
qual se tragassem o nitrato da prata!
CRISTAIS DE PRATA IX
Por mais cuidado a se tirar fotografia,
a de um modelo humano é só miragem;
por mais que se assemelhe essa visagem,
não mais que a luz solar se refletia!
O que me importa é a prata que luzia
no teu olhar mais belo que a paisagem,
fotos e cores sob o influxo e a lavagem
do tempo que seus tons desbotaria!
Melhor então para mim o teu retrato,
que no fundo de meus olhos é cristal
e que por certo não olvidarei jamais!
Veste e nudez expostas com recato,
dormindo em mim como saga madrigal,
por mais que o tempo te leve aos ademais!
CRISTAIS DE PRATA X—29 agosto 2023
Ouso querer que no fundo de tua mente
os meus retratos componham galeria
que teu quiasma ótico jamais esqueceria,
por mais que se transforma a humana gente!
Nunca como hoje tornou-se tão patente
que a vida humana frágeis cristais seria;
na foto ou filme antigo se movia
um corpo novo em atividade permanente,
mas na medida do passar do tempo,
vão-se firmando os sinais da decadência,
cabelos brancos, rugas importunas,
a primeira mocidade igual que o vento,
embaçado esse cristal de sua potência,
rasgado o espelho ao impacto das dunas!
CRISTAIS DE PRATA XI
No tempo antigo, as crianças duvidavam
que jovens seus avós tivessem sido,
que daguerreótipos tivessem permitido
conservar essa aparência que mostravam.
Em sua defesa, a si mesmas afirmavam
que o atual aspecto seria assim mantido,
sem pelo bico do tempo ser colhido,
que os velhos sempre assim se apresentavam.
Mesmo na dúvida os retratos contemplando,
bem lá no fundo tomadas de receio,
pois à medida em que o tempo ia passando
e que elas mesmas cresciam de permeio,
vendo suas mães devagar se desmanchando,
quebrava-se o cristal do devaneio!...
CRISTAIS DE PRATA XII
Mas hoje em dia não é fácil duvidar...
Carpe Diem! Enquanto dura a mocidade.
Usa o dia vigoroso em tua maturidade,
no Sic Transit do inevitável transformar
e se o bom aspecto não se pode conservar,
mais longe chega a tua intelectualidade,
desde que o fado, em inesperada falsidade,
não te leve, pouco a pouco, a caducar!
Pois só nos resta mesmo o que
se fez,
tesouro ou esgoto de todas as tuas ações,
melhor lembrança ter sido bem gentil...
E se te importam os versos que hoje lês,
deixa de ti as mais leais recordações,
na mente alheia gravadas com buril!...
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