raios de chumbo I (2007)
(Mary Pickford, uma das primeiras
atrizes de Hollywood)
chegou o tempo de pensar no tempo,
que o tempo pensa em mim e não se importa:
passa por cima, às vezes. Se me entorta
a vida, descarta fácil todo o contratempo.
chegou o tempo de, nesse entretempo,
pensar no tempo como uma comporta
que se abre e fecha e logo nos deporta
para o passado, em vasto sobretempo.
ao mesmo tempo que o tempo faz-se clima,
em igual tempo um calor que me aniquila,
depois o frio, que me aquece o coração,
porém não de repente, porque em cima
do frio inesperado vai-se a fila
dos anos todos que me levam a ilusão.
raios de chumbo II
(2/2/2009)
eu cumpro meus deveres sempre a tempo:
meu superego é vasto e me domina;
busco primeiro aquilo que me ensina
ser necessário e devido ao mesmo tempo.
eu me dedico assim ao topotempo
e me revolto quando se envagina
o corredor que cruzo na minha sina
e descubro ter apenas poucotempo.
nem que seja em meu criar de neologismos,
eu busco a vida que meu tempo rouba
e roubo ao tempo a vida que me leva
e fico a meditar nesses truísmos,
acabando por fazer pergunta boba:
enlevo o tempo ou é o tempo que me enleva?
raios de
chumbo III
virá um dia
em que esta carne humana
será
manipulada e quase nada
nos poderá
matar. na eternidade
viveremos
concretos. permanentes
serão os
corpos. sem essa desumana
velhice ou
acidente, a alma alada
terá morada
constante na vaidade
desses corpos
às moléstias resistentes.
partilharemos
da regeneração
como os
lagartos. membros decepados
rapidamente
de novo crescerão.
só pelo tempo
seremos desgastados,
mas muito
lentamente; e entes cansados,
de boa
vontade, a morte buscarão.
raios de chumbo IV – 19 Agosto 23
eu devo abandonar todo o desejo,
como dizem os bonzos do nirvana:
deixar de lado o quanto a carne clama
sem mais prender-me em busca de um ensejo.
não que outra vida à minha frente vejo,
mas é que tanta coisa me reclama!
minha mente se derrete e se descama,
acariciando a sombra de teu beijo.
nem que o queira de fato. é só uma rima
mais fácil do que outras... mas o fato
permanece que preciso do abandono.
é hora de trabalho e não de sina:
se algo conseguir por que me bato
será acordado e não em pleno sono.
raios
de chumbo V
porém,
quando a longa aurora surge,
meus
olhos vivos vão empós o raio,
saltam
das órbitas, qual cavalo baio,
correndo
ao sol, enquanto o tempo urge.
o
corpo fica para trás, qual cego:
somente
os olhos prendem esse freio,
enquanto
os cílios se transformam num arreio
e
as sobrancelhas são espora e pregos.
por
que meus olhos assim o corpo deixam,
inerme
e mudo no seu catre duro?
o
que procuram em galopar vertiginoso?
pois
as pálpebras como sela o sono enfeixam,
a
relinchar nas catedrais do escuro,
que
mais que a vida o sonho é poderoso.
raios
de chumbo VI
eles
veem esses versos, em loucuras,
eles
veem os poemas, em certezas,
eles
mantêm os versos em proezas,
ricos
flagelos a galopar planuras.
eles
veem esses versos com ternuras,
eles
veem os poemas, quais riquezas,
transformam
em magia as suas vilezas,
espargindo
pelos céus meigas agruras.
e o
esquema se compõe, nesse altaneiro
ritmar
de mil sons, na cor do tato,
na
canção imortal do sol perdido...
canto
fatal do momento derradeiro,
antes
que os olhos voltem, em recato,
para
arrancar do sono o corpo erguido...
raios
de chumbo VII -- 20 agosto 2023
por
dentro eu choro e, a pouco e pouco,
meu
cérebro se enche de amargura;
ao
invés de rolarem em doçura,
seguem
as lágrimas um caminho louco...
vão
subindo seu canal, em sonho rouco,
atravessam
meus ossos, a máter dura
e
as demais meninges, com lisura,
para
chorarem ali seu pranto mouco...
por
detrás da etmóide e ali protegem
meu
órgão cerebral de tantos baques,
a
um ponto tal que não sofre mais lesão.
e
é só então que as lágrimas se aspergem
e
sambam as artérias, em atabaques,
por
proteger-me também o coração...
raios
de chumbo VIII
ou,
quem sabe, pela testa sobe o pranto
ao
invés de se escorrer, gotas tardias,
espalhadas
pelo escalpo, névoas frias,
recobrindo
os parietais, liquido manto.
só
então me caem aos ombros e me espanto
de
ver-me assim ungido nesses dias,
por
tal túnica recendendo a maresias,
a
sal e a iodo, em redolente canto.
pois
me recobre assim, feito armadura,
a
muralha do pranto, que defende
dos
ataques do mundo mais grosseiros,
nesta
casula transparente e pura,
que
ao redor de mim toda se estende,
no
luto e mágoa, da esperança herdeiros.
raios
de chumbo IX
em
meu segredo fiz a transposição
do
chumbo em metal nobre e sem desdouro,
líquido
ardente transformei em ouro,
nesse
crisol do metal em mutação.
não
trago a pedra filosofal na mão,
mas
nos meus olhos já encontrei tesouro,
as
catdupas se abriram com estouro,
nesse
circuito de incessante procissão,
pois
não bastava a forte radiação,
mas
a presença de um elemento estranho,
que
de tal reação não partilhasse
e
de teu rosto recolhi, com precaução,
cada
emoção das faces em seu lanho,
tornando
as lágrimas em ouro que rolasse.
raios
de chumbo X – 21 agosto 23
transmutei
chumbo em ouro em tal crisol,
moí
as lágrimas em meu almofariz
e
as misturei com esforço e o suor que fiz,
na
escuridão de tal olhar de sol
e
o chumbo líquido explodiu em farol,
mil
raios a brotar em chafariz;
numa
peneira recolhi quantos eu quis,
classificando
as radiações em claro rol.
de
uma túnica branca então vesti
meu
coração como um catalisador,
de
lágrimas e suor na reação conversos
e
como antigo alquimista consegui
a
frágil transmutação de um sonhador,
enquanto
as lágrimas geravam novos versos.
raios
de chumbo XI
porém
não pense que seu pranto bastará,
nem
mesmo de mistura com o da amada,
para
ver transmutação executada,
do
alquímico segredo ainda precisará,
pois
idêntica operação se deverá
executar
em cada época encontrada,
até
encontrar o minuto e a hora asada,
que
sua ampulheta então registrará.
não
é o químico manipular dos ingredientes,
antes
o místico revolver do tempo,
que
irá causar os efeitos desejados,
mas
os segredos de emoções ferventes
e
na dosagem calculada do retempo,
por
mais que os prantos brilhem de salgados!
raios
de chumbo XII
bem
mais nos vale o tempo do que o amor,
pois
o tempo é infinito e insondável,
enquanto
o amor é pequeno e desgastável,
muito
menor, de fato, que o rancor!
enquanto
dura, nos transmite seu vigor
e
ao invés o tempo, em fluxo insuportável,
tira
de nós o quanto há de saudável
e
nos transforma em relógios sem valor...
e
como o chumbo não expele radiação,
mas
as demais radiações suga faminto,
assim
o tempo só nos dá protelação,
de
quanto anseio no coração pressinto
e
brilha em rios de intensa mutação,
nas
cores cinza com que a saudade pinto!
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