quinta-feira, 17 de novembro de 2022




 

 

chamada digital i  (24/6/2009)

(Colleen Moore, atriz do cinema mudo, 

mas que sobreviveu ao som)

 

eu venderei amor por dez centavos,

por não dizer que te darei de graça:

amor em gotas negras se repassa,

hoje em dia, por espaços cibernéticos.

 

essas redes comportam mil escravos

ou carregam consigo, na hora escassa,

contatos e comércio.   O amor sem jaça

é reduzido aos quadros inestéticos.

 

desse modo, se sempre foi difícil

vender poesia, é agora mais barata:

para mostrá-la, é preciso pagamento...

 

assim eu pago a luz e a banda físsil

e mando pela rede o dom que mata,

naco após naco, meu próprio sentimento.

 

chamada digital ii

 

pois venderei poesia no mercado

e montarei por lá minha barraquinha:

“vendem-se versos!” – cantarei em ladainha,

à espera de um cliente apaixonado,

 

mas cujo estro encontre-se emperrado,

mas ainda queira impressionar a sua rainha;

enfeitarei a sua ideia bonitinha,

como um poema bem-apessoado

 

e tão medíocre quanto o meu freguês,

porque caso lhe escreva melhor verso,

bem certamente não o compreenderá

 

e pior ainda, a impressão me fez

que o alvo desse amor não é diverso

e que sua dama tampouco entenderá...

 

chamada digital iii

 

tais versos terão assim simplicidade,

sem grandes voos de imaginação,

poucas imagens de original noção,

“ama” com “cama” a rimar em saciedade.

 

ou “vida” com “guarida” em qualidade

ou qualquer outra pobreza de emoção,

que lhe pudesse sair da própria mão,

seu é o esplendor da real mediocridade.

 

e em meu teclado eu lhe digitarei

o seu poema de valor chinfrim,

para depois pari-lo na impressora

 

e um preço módico então lhe cobrarei,

em minha vergonha de aceitar assim

a sua aprovação que me desdoura...

 

chamada digital iv

 

mas venderei um retalho de meu peito,

a pele e os músculos, até certa gordura,

para quem desejar sopa mais pura:

até por dois centavos eu aceito,

 

pois ledo engano! – vender amor não tenho jeito,

posso vender tão somente a sinecura

de me entregar sem esperança dura

e então voltar descarnado para o leito. 

 

a vida fez de mim um vendilhão,

malbaratando o fardo dos talentos,

justamente porque os ganhei demais

 

e assim desperdicei-me sem paixão,

jogando versos ao sabor dos ventos,

sem que fossem recolhidos nos quintais!

 

chamada digital v – 16 nov 2022

 

eu lançarei na praça meus desvelos

sem grande mágoa – que sejam pisoteados!

ninguém amou meus sonhos encantados,

foram pesados demais, cubos de gelos,

 

tão derretidos, que nem recordo tê-los,

com suco de limão bem misturados,

mil aicebergues no oceano derramados,

sem que tivesse a força de contê-los!

 

fiquei neles a remoer os meus tomaras,

perdido a mastigar meus oxalás,

apoquentado somente por recéns,

 

lembrando o dia antigo em que encantaras

pelos sorrisos que raramente dás,

a ruminar-me a saga dos poréns!...

 

chamada digital vi

 

mas nunca sei se haverá quem se disponha

a comprar os meus poemas e desvelos,

são transitórios e mal consigo vê-los,

passam depressa tão rápido os exponha,

 

substituídos por essa vasta ronha

que anseia ser escrita ou vou perdê-los,

alguns horrendos, outros mesmo belos,

que vou envolvendo em fraldas de cegonha

 

e assim saio a voar, levo no bico

esses meus nascituros, natimortos,

que no geral sequer encontram lar,

 

mas vou deixando das chaminés no pico,

expostos ao calor e a desconfortos,

na vã espera de que alguém os possa amar.

 

chamada digital vii

 

pois nessa digital feira de vaidades

a concorrência é cada vez maior

e meu proclama decerto é bem menor,

tendo receio de quebrar as amizades,

 

na timidez de velhas inverdades

de tantos sonhos sabidos já de cór

e não me inscrevo assim no longo ror

desses que espalham suas opacidades

 

tais fossem ideias novas e brilhantes,

a repetir apenas o já-dito

ou mesmo a reduzir o seu alcance,

 

que a correnteza cortada assim remanse,

enquanto o curso desse rio é infinito,

por mais que o obstruam ignorantes.

 

chamada digital viii

 

e deste modo, me limito a traduzir,

nessa consciência de minha insignificância,

sonhos alheios escutados à distância,

ou me assoprados de um alheio seduzir,

 

mas os melhoro sempre, a perquirir

onde se encontra o brilho dessa instância,

onde se encontra a inocência de minha infância,

sem autocrítica, ansiosa por luzir.

 

mas sem luz própria, pretensiosa como a lua

a refletir tão somente a luz alheia,

em sua pálida e transiente imitação,

 

mas que a vagar pelo negror ainda flutua,

sempre a apagar o brilho que incendeia

dessas estrelas que tão distantes são!

 

chamada digital ix – 17 novembro 2022

 

e embora nunca espere as adquiram,

lanço quimeras ao redor da rede,

talvez alguma a matar alheia sede

ou lágrimas causar nesses que viram

 

essas falácias minhas, que se atiram,

sem o menor cuidado a quem as pede,

sem que em penumbra qualquer uma quede,

depois que os bites e baites já se estiram;

 

contudo existem empecilhos e percalços,

interferências de muitas entidades,

que atravancam a rede inutilmente

 

e assim se embatem sobre cadafalsos,

linha de frente de novéis verdades,

em seu combate ao mundo indiferente.

 

chamada digital x

 

sempre seguem por aí, a uns e zeros

espalhadas por satélite e antenas,

talvez amainem quaisquer alheias penas,

talvez apliquem alguns desejos feros,

 

porque não são imensos, sonhos meros,

a se espalhar por aí, doces verbenas,

talves se aprestem a povoar estranhas cenas

ou estridentes piem, qual os quero-queros!

 

já que esses versos por igual são sentinelas

a percorrer tais sendeiros digitais,

em fiel busca por tristonhos e aflitos,

 

num apregoar de cançonetas paralelas,

àqueles que não sabem cantar mais

e se limitam a silenciar seus gritos.

 

chamada digital xi

 

também assim eu prantearei nos meus arquivos

essa inconsútil dor universal,

sem qualqeur busca por um canto triunfal,

sem os limites de gestos mais esquivos;

 

apenas mostrarei os mais altivos

sentimentos de sabor filosofal,

sem as promessas do antinatural,

sem criar ouro em alambiques vivos,

 

nada mais faço que aquilo que sussurram

as vozes mortas, quiçá no meu passado

ou as vozes natimortas do futuro,

 

que para a luz sem descansar se empurram,

a disputar por meu funil atribulado,

com que meus dedos seu porvir auguro.

 

chamada digital xii

 

porventura me reduzo a tais retalhos

soltos ao vento, trapos verdadeiros,

que nem sei se são meus ou de terceiros,

a desfraldar galhardetes pelos galhos,

 

minhalma almofariz, que sob os malhos

e golpes de pilão os derradeiros

traços de fé dos sonhos altaneiros

torna em pequenas luzes de atos falhos;

 

porém que seja assim, que cada verso

que de meu peito retirou farrapos,

possa grudar-se a nova fantasia,

 

que em cada peito seja assim disperso,

que novos sonhos surjam desses trapos,

sem que lhes mude qualquer ideologia.

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