CRIMES SEM SANGUE I (2008)
(Sheena, a Rainha das Selvas, Anos 50)
Se a água vem de Deus e o seu batismo
não necessita das mãos de sacerdote:
também o sangue transmite arcano dote,
e seu derrame traz da vida o niilismo,
mas não se mata a água em algum modismo,
ela escorre simplesmente para o lote
de outras águas, talvez em vasto bote
de uma cachoeira a lançar-se para o abismo,
mas não se mata a fonte ao se beber
e não se corta o rio ao se nadar,
nem a água da torneira a mão extingue;
cortado o ramo, seiva e linfa a escorrer,
nenhum jorro de água a se cortar,
se impede apenas que sobre a relva pingue.
CRIMES
SEM SANGUE II
O
sangue é água vermelha em estiagem,
que à
nossa vida a biologia indica,
ao
osso anima e à carne purifica,
água roubada
pela força da voragem,
da
água a vida sempre quer tirar vantagem,
o
sangue ferve e a água o purifica,
a
artéria flui e o coraçao repica,
mas
toda a água foi roubada da paisagem,
crimes
sem sangue com egoísmo se comete
e por
mais que a devolvamos para o chão,
por
mais que seja trocada com frequência,
retorna
a agua e a vida nos promete,
crime
sem sangue em perene comunhão
com a
água virgem a aguardar-nos com paciência.
CRIMES SEM SANGUE III
Tudo depende do conceito de voragem,
se da vida individual se faz questão
ou se o que importa é o imenso turbilhão
da vida inteira em sua imortal viagem,
se as vidas surgem do corpo em brotação
e no momento da dispersão se espargem,
seus elementos a ressurgir em cada vagem
e nos microorganismos em franca erupção,
se for a vida da alma o resultado
e passe a vida assim a um outro plano,
retemperada por qualquer reencarnação,
quando a consciência será posta de lado,
com todo o orgulho do animal humano,
para expandir-se em nova geração.
CRIMES SEM SANGUE IV
E quando o sangue se asperge em rubras gotas
sobre as calçadas ou vertido numa pia,
que diferença ao universal faria
essa dispersa multidão de hemácias loucas?
Quantos micróbios se nutrem dessas poucas
luzes vermelhas tombadas na bacia,
nuvens de espuma o calor que se perdia,
como pagando de um holocausto as quotas?
Não existe assim ato pródigo, afinal,
somente impera sobre nós termodinâmica,
a vida inteira sendo um círculo fechado,
dentro do qual cada um é comensal,
nessa serpente que conserva a sua dinâmica,
com o rabo entre seus dentes bem firmado.
CRIMES SEM SANGUE V – 7 NOV 22
Melhor será então doar-se à terra,
no barro feito de umidade e areia,
decomposição mais rápida se esteia,
o corpo morto em mil vidas se encerra,
melhor ainda que se creme a veia
e seja a cinza esparzida nessa guerra
entre as dunas e o vento, sem emperra,
absorvida na paisagem que a permeia,
não encerrados os corpos em caixões
ou ataúdes em escuras catacumbas,
que é um crime cometido, com certeza,
crimes sem sangue de tantas multidões,
amortecidas no gelo de suas tumbas,
como múmias ressequidas de avareza.
CRIMES
SEM SANGUE VI
Querer
que as almas corram ao Paraíso
ou que
sejam no inferno encarceradas,
ou
nesse limbo de espera conservadas,
é novo
crime executado em pouco siso,
é
furtar ao Devashan o seu juízo, (*)
que
sejam outra vez experimentadas,
até
estarem afinal purificadas,
após
mil gerações sobre o chão liso,
pois
qual a lógica de um castigo eterno
por
uma vida que durou vinte anos,
que
raramente ultrapassa seus oitenta,
que
Criador forjaria um mundo externo,
para
povoar com a insensatez de humanos,
que
qualquer crime tão facilmente tenta?
(*) O
lugar de aprendizado e escolha entre as vidas.
CRIMES SEM SANGUE
VII
Dante Alighieri
colocou Paolo Malatesta
e Francesca da Rimini em seu inferno,
porque somente uma vez, em dia de inverno,
trocaram um beijo de amor em breve festa;
até Alighieri afirma e não contesta
que não fizeram
nenhum sexo externo,
embora o desejassem em seu interno
e o pecado da cobiça assim os infesta;
Giovanni Malatesta, o assassino,
que apunhalou então esposa e irmão,
foi parar em um inferno mais profundo,
crime de sangue tornou justo seu destino,
mas um castigo de tal desproporção!
Seria um único beijo assim imundo?
CRIMES SEM SANGUE VIII
Por certo seres humanos Deus criou,
mas foram eles que criaram o inferno
e até imaginaram o Rei do Averno
como um arcanjo que do bem se desviou,
pois afinal, tanta maldade se encontrou
em nosso mundo de pecado eterno,
que um castigo que dura sempiterno
para ímpios e réprobos se determinou;
mas é claro que são os nossos inimigos,
ou mesmo aqueles de quem temos inveja
que são lançados a essas profundezas,
enquanto destinamos os amigos
e a nós também, quando a morte nos enseja,
para gozar de paradisíacas belezas...
CRIMES SEM SANGUE
IX – 8 nov 22
Porém existe um crime mais sangrento
e que consiste em sufocar as emoções,
sem revelar a outrem as paixões
que nos percorrem em nosso sofrimento;
é assim que se trucida o sentimento,
que coagula em nossos corações,
vida após vida em tais sepulcros pões,
crime sem sangue é pó de um juramento.
Se assim ocorre, somos todos assassinos,
executores a mastigar filosofia,
quando podamos os excessos de lamentos,
os campanários a dobrar os sinos
por cada velha e defunta fantasia,
que procuramos exilar dos pensamentos.
CRIMES
SEM SANGUE X
Mas
que dizer, quando se faz o oposto
e se
expõe os sentimentos sem mais pejo,
quando
se anseia manifestar desejo,
quando
se queira proclamar desgosto?
O que
fazer, quando nos é imposto
pela
vida o opróbrio de um ensejo,
quando
se vê perdido o puro almejo,
quando
se falha em quanto se há proposto?
Expor
ao mundo não será sacrificar
os
sentimentos à alheia zombaria,
crimes
sem sangue, cometidos a granel,
ante
os alheios que irão nos desprezar,
ainda
que igual sofressem algum dia
e
disfarçassem em prazer sabor de fel?
CRIMES SEM SANGUE
XI
Sempre nos resta certa escapatória,
o transformar em arte nossa dor,
crimes sem sangue cometidos com amor,
quadros a óleo ou poemas sem história,
quer seja o verso anônima vitória,
ao se pintar de outrem o esplendor,
que se pretenda não ser nosso vigor,
ou que se finja não ser estranha glória
e ao ler os versos, quem se identifica,
como pode saber se esse escritor
alguma vez sentiu o que escreveu
ou se essas juras de amor por que suplica
foram somente o resultado do fervor
de breve instante de ilusão que o acometeu?
CRIMES SEM SANGUE
XII
Talvez não passe o poeta de açougueiro,
um magarefe sem sangue nos seus dedos,
crimes narrando sem quaisquer segredos,
mesmo inventando algum crime mais certeiro,
sacerdote oficiante em alvissareiro
altar para o holocausto de seus medos,
oficiante da morte em sonhos ledos,
um falso intercessor, mau conselheiro?
E mesmo assim a fazer versos me atrevo,
não pinto a óleo as unhas deste sangue,
que é menos rubra a tinta que ora emprego,
crimes sem sangue que na minha alma levo,
a despertar no coração exangue
a mais perfeita imagem para um cego!
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