ritornello I (1979)
(Renée Adorée, cinema
clássico francês)
por onde andará
ela? o que seus passos,
pisando a luz da lua,
por onde andará
ela? o que seus traços,
mostrando a face nua,
farão neste
momento? a quem sorrisos
seus lábios se abrirão,
nesta manhã de
vento? a quem os guizos
alegres soarão...
com quem andará
ela? no que fala,
nesta manhã de sono,
com quem andará
ela? com que gala,
se vestirá de outono,
neste momento
agora? em que pensará ela,
acaso me recorda,
neste momento
agora? qual emoção singela
seu coração transborda,
voltado para mim?
ou nem sequer suspiro
ela me envia ao vento,
lançado para mim?
que nem respiro,
sem tê-la ao pensamento,
que rosto afaga?
para quem nos braços
ela hoje se entrega,
e que memória
apaga? porque tantos laços
rompeu nessa refrega,
quantos busquei
reatar? nessa ilusão
de poder a sua presença
a meu lado reter? e,
enfim, ao coração,
mentir, só por descrença.
ritornello II
(22/10/2009)
onde se encontra agora? quais são
hoje os desejos
de minha meiga aurora?
onde se encontra agora? a quem os doces beijos
reparte nesta
hora?
sobre que mar navega? a minha antiga estrela
a quem ora se
entrega?
sobre que mar navega? a quem um juramento
para o futuro
lega?
terá outra paixão? qual
rosto ela percorre
com os dedos
de sua mão?
terá outra paixão? por qual peito hoje escorre
o bater do
coração?
a quem hoje ela afaga? em qual corpo flutua,
igual que
mansa vaga?
a quem hoje ela afaga? com quem se encontra nua,
a troco de qual paga?
será que ainda recorda? só num piscar de olhos,
na hora em que se acorda,
o que viveu comigo? se para essa lembrança
ainda tem
suspiro...?
terão qualquer valor, no fundo da memória,
os meus
desejos vãos?
com quem ela concorda? ou, usando seus antolhos,
a ninguém mais aborda?
ai, tempo do perigo! de antanho sua esquivança,
em que meus sonhos giro...
e eu tinha tanto amor... na palidez inglória
do toque de
suas mãos!...
ritornello III
em qual conto de fadas
encontro essa medusa
com plumas de pavão,
que ondulam mansamente,
enquanto me recusa
o instante do perdão?
que em estátua então me
fiz, melhor porém seria
alçar-me ao pedestal
que de passagem seu
olhar ao menos lançaria
qual ofídio cipoal?
e mesmo me quebrando, em
restos de granito,
voaria em seus cabelos,
até permanecendo em seus
traços de arenito,
quiçá sem sequer vê-los,
mas presente me
encontrando na mesma vibração
que insufla minhas narinas,
do canto de seus olhos
tão somente a irritação,
nas íris peregrinas,
sem que qualquer colírio
em espanto derramado
me viesse deslocar,
sem que qualquer delírio
de amor atribulado
me pudesse destravar,
em lágrimas de ardor,
constante o seu desdém,
meu antanho choraria,
não lágrimas de amor,
mas a correr, porém,
não mais me esqueceria,
longínqua ao coração a esquálida
ramela
nas vestes ficaria
e nesse seu prantear a
tornaria mais bela,
lavor de alvenaria.
ritornello IV
em qual canto dos sonhos encontro essa sereia,
com espelho de esmeralda,
em qual árido penhasco a tripudiar me enleia,
no desafio da falda?
para desdouro meu, sempre cobriu de cera
o ouvido expectante
e permanece o manto na mesma flor de espera
de canto deslumbrante.
que bem desejaria escutar ainda agora,
em afago comezinho,
a conservar perene o leque de sua aurora,
no mais fundo escaninho...
mas ai de mim! que nunca ouvi o recitativo
que outros louvam tanto,
só pude imaginar, em espanto redivivo,
a cor sutil do canto.
assim me fiz rochedo, cadáver de coral,
formando vago atol,
de pólipos coberto, anêmona estival,
no instante do arrebol,
em minha lenta marcha à praia remetente
em que ela se assentava,
como um manto a seus pés, amante impenitente,
sua pele acariciava,
sem que ela percebesse ser eu o escabelo,
que em solidão supunha,
macio o seu assento por todo o meu desvelo,
em que seus pés depunha.
ritornello V -- 22/11/2022
de certo modo sabe, no
instante em que medita,
que
meu amor a envolve
e as longas tranças
verdes, em irisada fita,
pentear
de novo volve,
um pouco de minha
sílica, de alumínio um traço,
a
imagem lhe devolve,
em espelho transformada
a ânsia desse abraço,
que
a cintilar revolve
e nisso me contento, de
ter as suas pupilas
voltadas
para mim,
sem notar que me fita,
que tais vistas ancilas
copiam
seu carmim,
forjadas são dos beijos,
molhados de saliva,
na
moldura desse espelho,
meus olhos a formar a
imagem fugitiva,
na
réplica do relho,
que cada vez que toma o
cabo marchetado,
concede
um certo indulto,
na superfície plana, seu
rosto ignorado
em
vaguidez de vulto;
e quando toma a escova,
em laivos de vaidade,
eu
lá estou também,
porque flutuei na brisa,
com ardilosidade,
sem
mais ficar aquém
e um fio de meus cabelos
na escova se entranhou,
com
esquiva sutileza,
para dentre os sonhos
belos com que ela se enfeitou
se
oculte com certeza.
ritornello VI
e quando ela se banha nas pregas do luar,
eu fico a observá-la,
e sem que me perceba, em leve palpitar,
alcançarei tocá-la,
por mais digam que a sereia ilude o marinheiro,
a fim de devorá-lo,
para um destino assim me lançaria ligeiro,
na ânsia de alcançá-lo,
pois se me devorasse, me tornaria escama
na cauda variegada
e nunca a perderia em devorada chama
na noite aveludada,
talvez a imaginasse nos braços de um tritão,
que tríade formasse,
mas nesse instante vago, ao ter fecundação,
seu rejeitar cessasse
e ali me quedaria, amante de humildade,
durante o seu orgasmo,
enquanto as barbatanas do ato nupcial
subissem desde o casmo,
apenas por luxúria, na vastidão do cio,
na cópula dos mares,
mas eu seria escama, sentindo grande brio
no espasmo de alamares
e quando se afastasse, cumprida sua tarefa
o mítico tritão,
ali eu ficaria, por mais que ela me esqueça,
em intensa adoração.
SEGUE SEGUNDA PARTE
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