HERANÇAS DO PASSADO I – 22 JAN 22
Cada ato sexual forma um degrau
na longa escada de minha transcendência;
talvez em sonhos tenha reminiscência,
que mais não seja como em sonho mau.
Entre cada dois passos se acha um vau,
preenchido por décadas de impotência;
de pais e mães existe arcana veemência,
mesmo que às vezes tropecem em calhau.
Sei que descendo de Gregos e Romanos,
dos Celtas, dos Hititas e Germanos,
mas se uma só concepção faltasse?
Não mais seria do que esperma derramado,
pequeno óvulo em sentina rejeirado,
sem que minha carne em nada se formasse.
HERANÇAS DO PASSADO II
Sei bem que houve milhares que falharam,
em que um óvulo não abençoou esperma
com seu cone de atração, imagem terna,
em que milhões de eus possível terminaram.
Este meu corpo que meus avós legaram
tem mil cabeças qual Hidra de Lerna;
perdura apenas em manifestação superna,
desses mil florões de vida que ficaram.
É realmente questão plena de humildade,
reconhecer que foi em tal causalidade
que este conjunto de genes se formasse
através de milênios e éons de gerações,
em que meu deeneá, aos tropeções,
em meu fenótipo atual se condensasse!
HERANÇAS DO PASSADO III
Ou será que fio houve condutor
a transmitir-me em sua eletricidade
o que seria o corpo da fatalidade,
a interferência de um eterno Criador,
que o mecanismo forjasse em seu fervor,
para do ventre escolher da humanidade
precisamente destes gens a quantidade
incalculável que hoje forma o meu pendor?
Ou se foi deixado à vontade o mecanismo,
sobrevivendo a terremoto em cataclismo,
cada mãe e cada pai a ser atuado?
Siddharta, dizem, no devashan
ainda, (*)
seus pais aproximou de forma linda,
mas como os meus eu teria aproximado?
(*) Local de espera entre duas encarnações.
HERANÇAS
DO PRESENTE I – 23 JAN 2022
Os
cartões se acumulam, lentamente,
em
meus sonhos de poeira inacessível;
já
chego a duvidar seja possível
que
em algum tempo, mediante esforço ingente,
na
maior parte já amarelescente,
entocados
no armário do invisível,
atrelados
ao saber incognoscível,
possam
ser revividos finalmente.
Precisaria,
julguei, de um ano ou dois,
em
que nada mais fizesse em meu viver
do
que passar a limpo essas mortalhas,
amarfanhadas
de fantasmas, pois,
nesse
entrementes voltaria a escrever,
aprisionado
na rede dessas malhas...
HERANÇAS
DO PRESENTE II
Mas
há dois anos que tenho me esforçado
para
os rascunhos antigos dar à luz,
cujo
parto claramente me seduz,
que
não ficasse meu antanho desgarrado,
porém
descubro esta premência do meu lado,
que
para mais escrever sempre conduz,
se
soneto concretizo dessa antiga cruz,
por
dois ou três ou mais é acompanhado.
Igual
que a escada em que fui concebido,
milhares
de casais equilibrados,
em
seus degraus de orgasmos apressados,
eu
sou por tal premência convencido
a
martelar a escada de meus versos,
que
pelo mundo, em vão, faço dispersos.
HERANÇAS
DO PRESENTE III
É
até possível que exista um condutor
que
veja à frente os versos do possível
e
selecione algum que seja incrível,
a
ser por mim orgasmado com fervor,
que
cada verso é também ato de amor,
do
mesmo modo que enfim fui atingível,
sem
recordar de tanta gente perecível,
sem
a qual meu corpo não teria hoje calor.
E
sinto assim que cada soneto é descendente
de
quantos o precederam nessa escada,
cada
palavra qual esperma ejaculado,
cada
óvulo uma estrofe permanente,
que
se fosse soerguendo desde o nada,
até
o poema final ser completado.
HERANÇAS DO FUTURO I – 24 JAN 2022
De modo igual, embora tenha transmitido,
por leis da carne, o deeneá que um dia
ganhei,
de que maneira algum dia saberei
se o ideal da espécie por mim foi atingido?
Se esse conjunto de gens será escolhido
para algum ser especial que nem verei
ou que entre meus descendentes já encontrei
neste presente, mas sem ter reconhecido.
Muito embora tenha orgulho de meus filhos,
nessa alegria pequena das vitórias,
no avançar consistente de seus trilhos,
como saber qual será a sua influência
na humanidade, em suas futuras glórias
ou até que ponto seguirá sua descendência?
HERANÇAS DO FUTURO II
Já com os versos a coisa é diferente
dos bilhões de minhas células que foram,
sem que alguma vida no passado afloram:
parece-me um tal desperdício, realmente!
E embora os versos sejam, certamente,
bem menos numerosos que os que goram,
esses milhares de estrofes que ali choram
têm maior abrangência independente.
Que a maioria alcance só desprezo,
se um só poema for absorvido
e no coração de outrem recolhido,
poderá, com os laivos de seu vezo,
milhares de outras mentes fecundar,
bem mais que a carne poderia conquistar.
HERANÇAS DO FUTURO III
Assim é certo que fui aparelhado
e que veículo ache no espaço digital
para levar a semente, bem ou mal:
essa a missão para que fui designado,
embora reconheça, de meu lado,
que os versos não são meus no seu total,
mas inspirados e enviados por canal:
sinto-me apenas o escriba atarefado,
mas de que modo posso dizer que minha
semente,
que transmiti no passado, sexualmente,
fosse um pólen que a mim só pertencesse?
E assim os versos que lanço para o escuro
talvez destino tenham bem mais puro
que a descendência que para a raça eu
desse.
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