quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

CONSTANCE TALMADGE, ATRIZ DO CINEMA MUDO
 

 

HERANÇAS DO PASSADO I – 22 JAN 22

Cada ato sexual forma um degrau

na longa escada de minha transcendência;

talvez em sonhos tenha reminiscência,

que mais não seja como em sonho mau.

Entre cada dois passos se acha um vau,

preenchido por décadas de impotência;

de pais e mães existe arcana veemência,

mesmo que às vezes tropecem em calhau.

Sei que descendo de Gregos e Romanos,

dos Celtas, dos Hititas e Germanos,

mas se uma só concepção faltasse?

Não mais seria do que esperma derramado,

pequeno óvulo em sentina rejeirado,

sem que minha carne em nada se formasse.

 

HERANÇAS DO PASSADO II

Sei bem que houve milhares que falharam,

em que um óvulo não abençoou esperma

com seu cone de atração, imagem terna,

em que milhões de eus possível terminaram.

Este meu corpo que meus avós legaram

tem mil cabeças qual Hidra de Lerna;

perdura apenas em manifestação superna,

desses mil florões de vida que ficaram.

É realmente questão plena de humildade,

reconhecer que foi em tal causalidade

que este conjunto de genes se formasse

através de milênios e éons de gerações,

em que meu deeneá, aos tropeções,

em meu fenótipo atual se condensasse!

 

HERANÇAS DO PASSADO III

Ou será que fio houve condutor

a transmitir-me em sua eletricidade

o que seria o corpo da fatalidade,

a interferência de um eterno Criador,

que o mecanismo forjasse em seu fervor,

para do ventre escolher da humanidade

precisamente destes gens a quantidade

incalculável que hoje forma o meu pendor?

Ou se foi deixado à vontade o mecanismo,

sobrevivendo a terremoto em cataclismo,

cada mãe e cada pai a ser atuado?

Siddharta, dizem, no devashan ainda, (*)

seus pais aproximou de forma linda,

mas como os meus eu teria aproximado?

(*) Local de espera entre duas encarnações.

 

HERANÇAS DO PRESENTE I – 23 JAN 2022

Os cartões se acumulam, lentamente,

em meus sonhos de poeira inacessível;

já chego a duvidar seja possível

que em algum tempo, mediante esforço ingente,

na maior parte já amarelescente,

entocados no armário do invisível,

atrelados ao saber incognoscível,

possam ser revividos finalmente.

Precisaria, julguei, de um ano ou dois,

em que nada mais fizesse em meu viver

do que passar a limpo essas mortalhas,

amarfanhadas de fantasmas, pois,

nesse entrementes voltaria a escrever,

aprisionado na rede dessas malhas...

 

HERANÇAS DO PRESENTE II

Mas há dois anos que tenho me esforçado

para os rascunhos antigos dar à luz,

cujo parto claramente me seduz,

que não ficasse meu antanho desgarrado,

porém descubro esta premência do meu lado,

que para mais escrever sempre conduz,

se soneto concretizo dessa antiga cruz,

por dois ou três ou mais é acompanhado.

Igual que a escada em que fui concebido,

milhares de casais equilibrados,

em seus degraus de orgasmos apressados,

eu sou por tal premência convencido

a martelar a escada de meus versos,

que pelo mundo, em vão, faço dispersos.

 

HERANÇAS DO PRESENTE III

É até possível que exista um condutor

que veja à frente os versos do possível

e selecione algum que seja incrível,

a ser por mim orgasmado com fervor,

que cada verso é também ato de amor,

do mesmo modo que enfim fui atingível,

sem recordar de tanta gente perecível,

sem a qual meu corpo não teria hoje calor.

E sinto assim que cada soneto é descendente

de quantos o precederam nessa escada,

cada palavra qual esperma ejaculado,

cada óvulo uma estrofe permanente,

que se fosse soerguendo desde o nada,

até o poema final ser completado.

 

HERANÇAS DO FUTURO I – 24 JAN 2022

De modo igual, embora tenha transmitido,

por leis da carne, o deeneá que um dia ganhei,

de que maneira algum dia saberei

se o ideal da espécie por mim foi atingido?

Se esse conjunto de gens será escolhido

para algum ser especial que nem verei

ou que entre meus descendentes já encontrei

neste presente, mas sem ter reconhecido.

Muito embora tenha orgulho de meus filhos,

nessa alegria pequena das vitórias,

no avançar consistente de seus trilhos,

como saber qual será a sua influência

na humanidade, em suas futuras glórias

ou até que ponto seguirá sua descendência?

 

HERANÇAS DO FUTURO II

Já com os versos a coisa é diferente

dos bilhões de minhas células que foram,

sem que alguma vida no passado afloram:

parece-me um tal desperdício, realmente!

E embora os versos sejam, certamente,

bem menos numerosos que os que goram,

esses milhares de estrofes que ali choram

têm maior abrangência independente.

Que a maioria alcance só desprezo,

se um só poema for absorvido

e no coração de outrem recolhido,

poderá, com os laivos de seu vezo,

milhares  de outras mentes fecundar,

bem mais que a carne poderia conquistar.

 

HERANÇAS DO FUTURO III

Assim é certo que fui aparelhado

e que veículo ache no espaço digital

para levar a semente, bem ou mal:

essa a missão para que fui designado,

embora reconheça, de meu lado,

que os versos não são meus no seu total,

mas inspirados e enviados por canal:

sinto-me apenas o escriba atarefado,

mas de que modo posso dizer que minha semente,

que transmiti no passado, sexualmente,

fosse um pólen que a mim só pertencesse?

E assim os versos que lanço para o escuro

talvez destino tenham bem mais puro

que a descendência que para a raça eu desse.

Nenhum comentário:

Postar um comentário