domingo, 9 de janeiro de 2022


 

 

O CORPO DAS MORTAS I – 7 JAN 2022

(Na ilustração, a brasileira Luz del Fuego)

 

Fotografias se encontram facilmente

das mulheres desnudas do passado;

cada organismo no presente desmanchado,

mas sua beleza preservada permanente.

 

Ou, pelo menos, quando cuidadosamente

foi escultura ou quadro a óleo conservado,

cada modelo desse anteontem recobrado,

na tumba o esqueleto a desfazer-se lentamente...

 

Se a Duquesa de Alba o pintor Goya não chamasse,

que a retratasse frontalmente nua,

quem sequer recordaria do seu nome?

Mesmo que o busto tão somente se estampasse,

não chamaria atenção tal face sua:

tantas existem, pintadas sem renome...

 

O CORPO DAS MORTAS II

 

Mas não se trata simplesmente de vaidade:

elas contemplam suas mães e suas avós

e na transitoriedade se acham sós,

rebeldes a aceitarem sem equanimidade.

 

Será inevitável que na senectude a qualidade

de seus corpos será cepilhada quais enxós:

se não morremos, envelheceremos nós,

vão-se a energia e a beleza com a idade.

 

Por que não preservar somente a imagem

e poder se demonstrar um dia às netas

como foram mais gentis em seu passado?

Mas juventude não passa de miragem,

porém existem belezas mais secretas,

que se conservam num coração alado...

 

O CORPO DAS MORTAS III

 

Assim ninguém se atreva a condenar

essas mulheres que expuseram sua nudez,

sua formosura, o níveo de sua tez,

para a seus pósteros a poderem demonstrar.

 

Quanta tristeza podem elas consolar

em quem contempla a passagem, mês a mês,

de sua energia na maior desfaçatez,

que de algum modo elas a puderam conservar.

 

E assim mortas, as que foram semideusas,

ainda mostram tais quais foram um dia

e que a raça ainda a elas se assemelha;

serão suas filhas as transitórias deusas,

que a nudez do presente lhes daria

na duração singular de sua centelha.

 

O CORPO DA RAÇA I – 8 JAN 22

 

Creio na Arte, na História e na Ciência.

A História engloba a Filosofia e a Religião,

A Arte a Poesia de cada geração,

O Teatro e a Ópera em toda a sua potência.

 

A Pintura e a Escultura em subserviência,

o Artesantato em qualquer outra situação;

a Ciência engloba em sua manifestação

a Geografia e Zoologia e nos traz à existência

as mil cidades que morreram no passado,

ressuscitadas pela Arqueologia,

os ossos fósseis pela Paleontologia.

 

A Química e a Astronomia no acurado

das grossas lentes de um observatório,

o microscópio a dominar laboratório...

 

O CORPO DA RAÇA II

 

A Arte e a Ciência sempre se entrelaçam;

de ambas depende toda a Medicina,

para ambas o tecnológico se inclina,

há Engenharia nos quadros que nos façam.

 

A História e a Ciência igual se abraçam;

desde as observações desses astrólogos;

dos naturalistas nos brotou a Biologia,

nossos caminhos a pouco e pouco traçam

e quem nos diz, não fossem os alquimistas,

qual o ponto que nossa Química atingiria?

A buscar a Pedra Filosofal deixaram pistas...

 

E na busca do Elixir da Longa Vida,

A Fisiologia a pouco e pouco cresceria,

Na longa teia pela História urdida...

 

O CORPO DA RAÇA III

 

Era costume se denominar Filosofia

a cada ramo de qualquer conhecimento:

toda a Ciência e a História em seu assento

Aristóteles classificou em sua Taxonomia.

 

Mas a Religião que fosse “criada” exigiria:

“Philosophia ancilla” de cada mandamento;

mas mesmo assim, seu exotérico desalento

nossas questões primordiais atiçaria,

na Idade Média dos conventos numerosos

foram guardados os velhos manuscritos,

mesmo encobertos por religiosos textos.

 

Tais cânticos à Virgem hoje se mostram generosos,

que por técnica moderna os ancestrais escritos

só à luz vieram ao decifrar-se palimpsextos...

 

O CORPO DE UM SONHO I – 9 JAN 2022

 

Sonhei que me tornara um cirurgião

e a certa mulher restaurara seu nariz;

não me recordo da maneira como o fiz,

só vi seu rosto já agradecido na ocasião,

bem diferente do anterior à operação,

mas seu marido, a que agradar igual eu quis,

também sorriu, porém seu rosto só me diz,

cheio de rugas, a medida da apreensão.

Eu lhe expliquei que sua esposa conhecera

há muitos anos, que houvera trabalhado

junto com ela, não recordo mais em quê,

mas de algum modo pareceu-me que o ofendera,

qual suspeitasse assim de tal passado:

mais que ciúme, algum rancor mesmo se vê...

 

O CORPO DE UM SONHO II

 

Todo sonho traz um cunho de verdade,

 por mais que sejam de tremenda variação;

mas este sonho teve sua concocção

em algo que encaro com a maior seriedade:

vejo minha esposa com real serenidade

envelhecer, sem lastimar sua situação;

ainda em seus traços eu vejo a perfeição

que demonstravam antes da mtaturidade;

e de algum modo, caso eu fora um cirurgião,

talvez pudesse refazê-los habilmente,

igual deixá-los ao semblante que já foi;

e esse marido tão cioso em sua feição

poderia ser o Tempo que se fez tão insistente

em sua passagem que a juventude rói.

 

O CORPO DE UM SONHO III

 

Também sou eu, embora menos transitório,

com quase oitenta, mas sem rugas em meu rosto

e não se diga que jamais sofri desgosto,

mesmo num sonho desfrutado em dormitório.

Mas imagino, se em algum ato decisório,

lhe conseguisse devolver o antigo gosto,

pelo menos ultrapassado já o sol posto

e alguém talvez me cobiçasse o ostensório...

Solerte sendo a mente dos humanos,

acionada pela certeza de sua morte,

em simbolismos oníricos de tal porte,

a disfarçar nossos egoísmos mais insanos

assim sua imagem só opero em meus sonetos,

com os seus traços de ardor ainda secretos...

 

 

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