O CÃO SAGRADO – 9 JUN 2021
Lembro que esta não é uma
história infantil. É a descrição
pormenorizada de um período histórico pouco conhecido, com o emprego de nomes
próprios fenícios e cartagineses. Os detalhes
sobre as práticas de escravidão e rituais primitivos podem causar desagrado a
certas pessoas, portanto recomendo o uso de cuidado e critério antes de
continuar a leitura.
Capítulo
Segundo
Passaram-se
as lunações e celebramos minha septíadre com pompa e alegria. Nem todas as crianças vivem tanto. A bruma do mar nos traz a pestilência e raros
são os próprios adultos que atingem a quinta septíadre, ou trinta e cinco
ciclos de treze lunações. A essa altura,
Hanno, outro de meus “primos” também já fora vendido e meu pai, percebendo
minha confusão, tomou-me no colo e me falou com gentileza: “Azyadê, minha
querida, procura entender, teus avós faleceram ainda na quarta septíadre e esta
responsabilidade recaiu sobre mim. Devo
vender essas crianças. Escolho sempre as
melhores familia Sicanas, nas quais sei que não serão maltratados, nem
molestados, apenas tratados como escravos da gleba durante sete ciclos
lunares. Depois disso, serão aceitos no
exército e se demonstrarem valor e lealdade, poderão receber o título de
cidadania ao completarem a terceira septíadre, entendes? Então deixarão de ser escravos e não herdarão
sobre si a menor mácula da Maldita.”
“E
as meninas?” – indaguei. “Korê também foi vendida...” “Eu a vendi para o templo de Tanit, que os
Micenianos chamam de Astarte ou Aphrodite.
Ela será bem tratada como escrava e se demonstrar aptidão, será treinada
como hetaira, uma profissão muito honrada para os Micenianos, que exercerá a
partir do seu décimo-quarto ciclo lunar.
Ao completar a terceira septíadra, poderá escolher um marido e não faltam
os Micenianos que se disponham a casar com as hetairas do templo. Deste modo também deixará de ser escrava. Que
melhor destino para as filhas da Maldita? Entendeste agora? O que eu faço é um
ato de bondade.”
“Mas
os meus pri... os filhos de Kersha?” “A vida militar não é difícil, somos uma
nação pacífica e temos boas muralhas... Mas sempre é possível que os piratas
Micenianos ou Tirrenos nos queiram atacar, como fizeram no passado. O exército serve como força de dissuasão...
quer dizer, vão pensar duas vezes antes de nos assaltarem. Na verdade, eles agem mais como patrulha
noturna ao longo dos limites de nossos campos.
Se isto não é feito, os mais selvagens de nossos primos Sículos nos
assaltam para roubar as colheitas, os animais e mesmo os escravos. Raramente é preciso entrar em combate, salvo
quando um bando mais numeroso se aproxima.
Os filhos de Kersha estarão seguros. Agora, vai brincar, ainda és meio
criança.”
Lembro da primeira vez em que participei de uma festa no
templo. Um grande banquete foi servido,
os escravos tocavam e cantavam e as bailadeiras dançavam. Os Micenianos de Érix também eram convidados
e a única reclamação era que serviam mais cidra do que vinho, mas as nossas
festividades eram sempre alegres e tranquilas.
A Cadela desse ano estava sentada em uma espécie de trono junto à mesa
central, lado a lado com o orgulhoso rapaz com quem havia casado poucos dias antes. Ela usava os mesmos trajos suntuosos do
desfile e o deus-cachorro, a que se referiam como o deus-vivo, estava em seu
colo, embora frequentemente saltasse ao chão para recolher os pedaços de comida
que todos lhe jogavam. Não admira que
crescesse tanto, já parecia bem maior.
Mesmo os escravos eram admitidos e escutei de passagem um comentário
entre risadas, de que as celebrações dos Micenianos no Templo de Tanit eram
muito mais ruidosas e indecentes do que
as nossas.
Havia outras festividades de que só pude participar nos
últimos ciclos de minha segunda septíadre.
O sacrifício havia sido apresentado na véspera, mas não se sabia ainda
do resultado. Um grupo de doze moças
vestidas de linho branco estava sentado à parte, enquanto os sacerdotes
esparziam o sangue do deus-morto sobre os fiéis a fim de abençoá-los. Depois disso, apenas os homens livres se
aproximavam do altar e recebiam nas bocas um pedaço da carne do deus.
Afirmava-se que a essência masculina do deus morto seria assim transmitida por
eles à sua descendência.
Em
outras ocasiões, algumas lunações após o desfile da Santa Cadela daquele ano,
aquelas mesmas doze jovens eram apresentadas a um deus-cão de tamanho médio,
que lambia e apalpava algumas delas.
Após cânticos sagrados, em uma língua incompreensível para mim, cinco
eram retiradas e sete apresentadas ao deus; uma última vez e apenas três
permaneciam, aquelas cujas vestes estivessem mais sujas ou rasgadas, isto é, as
que tinham recebido a maior atenção do cão sagrado. Uma das três seria selecionada meses depois
para o sacrifício anual. Mas me
afirmaram que só o fato de estar entre as três já era uma grande honra, pois o
deus as agraciara.
A essa altura, eu já entendia muitas coisas. Compreendia que todos nós, Sicanos,
descendíamos diretamente de Krimisos.
Não os Fenícios e Cartagineses e muito menos os Micenianos, essa graça e
privilégio eram exclusivamente nossos.
Nossos primos selvagens, os Sículos, também se consideravam seus
descendentes. Os Micenianos de Segesta
zombavam abertamente de nossa santa religião, dizendo que eram seus cães que
descendiam de Krimisos e da ninfa Segesta.
Os Micenianos de Érix se calavam a respeito e o Sicanos não comentavam
sobre os rituais de sua deusa Astarte.
Eventualmente, os peregrinos demonstravam surpresa por não encontrarem
cães nas ruas e nem nas casas de Érix, a cidade do deus-cão, mas eram
informados que apenas permaneciam as ninhadas do templo e os excedentes eram de
fato enviados para Segesta, de forma que até esse ponto eles não estavam
errados.
Eventualmente soube que Segesta já fora nossa, mas que os
sacerdotes a haviam vendido aos Micenianos, por ficar muito afastada e ser
difícil de defender. Com frequência os
Sículos atacavam seu campos e eram combatidos ferozmente, do mesmo modo que
piratas Tirrenos, cujos corpos eram queimados no meio das plantações, suas
cinzas espargidas como adubo e um pequeno monumento comemorativo erguido no
lugar da pira, segundo diziam, para homenagear os mortos, mas de fato, porque
temiam que seus manes os viessem
perturbar.
Na
ponta oriental da ilha, junto ao estreito de Scylla e Charibdis, viviam Sicanos
misturados com Cartagineses, Micenianos e mesmo alguns Tirrenos, que eram
comerciantes pacíficos e chamavam a si mesmos de Herthes e se diziam
descendentes dos Heteles da Mísia, mas esses Sicanos eram hereges que negavam
sua ascendência do Sagrado Krimisos. Os
Tirrenos também afirmavam terem saído de sua cidade Thraya, quando fora
destruída pelos Micenianos, aliás, pela sétima vez; estes a haviam
reconstruído, mas provavelmente haveria de ser queimada mais uma vez, já que
dominava o estreito que dava acesso ao Mar Farsi ou Mar dos Citas, enclausurado
no interior do continente.
Também por essa época tomei consciência de que Herkle, o
senhor meu pai, era o homem mais rico de Érix.
Não somente nossa casa era a maior dentro dos muros da cidade, como ele
possuía vastos campos de cultivo de linho e de cevada, rebanhos de ovelhas e
cabras, olivais e videiras, como um pomar de laranjas, maçãs, romãzeiras e
amoreiras, além de uma ampla horta de produtos variados, tudo isso cuidado por
mais de cinquenta escravos, que trabalhavam de boa vontade sob a supervisão
benevolente de Herkle. Um dia, indaguei
por que eles não fugiam. Meu pai soltou
uma gargalhada:
“Fugir
para onde? Os Sículos estão à espreita e
os capturariam... e sabem que nossos primos são canibais... A comida é escassa
nas montanhas e é até compreensível que eles devorem os prisioneiros... Consta mesmo, embora isso seja negado
veementemente por eles, que para conservar a carne por mais tempo, eles cortam
nacos dos braços e das pernas e cauterizam a ferida de imediato... Podes
imaginar a dor dos infelizes? Não,
Azyadê, nenhum deles sequer pensa em fugir.
E depois, como podes ver, são bem tratados, muito melhor que os de
outros proprietários.”
Ainda em meu décimo-terceiro ciclo lunar, percebi que meu
pai, embora ainda gentil, evitava de me tocar.
Hirsha, a senhora minha mãe, explicou que ele me preservava, sem entrar
em detalhes. Por algum motivo,
lembrei-me de indagar quem eram os pais das escravas permanentemente
grávidas. Hirsha respondeu-me que Herkle
tinha o dever de visitá-las. “Mas a
senhora não se importa?” “Nós, Sicanos
de Érix, vivemos muito pouco e cada vez mais as famílias antigas se vêm
tornando menos numerosas. A bruma do mar
nos traz a pestilência e muitas crianças morrem, tu já percebeste que três de
teus irmãos morreram pequenos e eu mesma ainda abortei várias vezes, não é
novidade nenhuma para ti. Mas o senhor
teu pai apenas visita as escravas até ter certeza de que estão prenhes. Em breve tempo teus dois irmãos terão idade
suficiente para cumprir esse dever e então ele visitará somente a mim, ainda
que eu já tenha perdido a esperança de ter mais filhos...”
“E
ele também visita Kersha?” “De modo algum!” – respondeu-me consternada. “Se o
fizesse, traria a maldição sobre nós!...
Ela cumpre o seu dever com os escravos do campo.” Após uma pausa, quase como uma lembrança
tardia, ela acrescentou: “Mas a Maldita já está bem avançada em sua quarta
septríade, em breve completará a quinta e será dispensada dessa obrigação, de
uma forma ou de outra. Afinal, ela tem
nove crias vivas e perdeu pelo menos cinco. Mas vamos encerrar esta conversa
agora, já sabes mais do que o suficiente para tua idade.”
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