O CÃO
SAGRADO
Capítulo Terceiro
ESTA NÃO É UMA HISTÓRIA
INFANTIL. Antes da leitura desta
terceira e última parte, recordo a necessidade de discrição, já que pormenores
sobre a prática ritual e escravidão no período histórico anterior ao paganismo
clássico podem causar desagrado a certas pessoas. Na ilustração a atriz
francesa Brigitte Bardot na praia com seu animal de estimação (sem afirmar que
fosse chamado Krimisos, nem que ela o cultuasse de qualquer forma!).
Quando eu completei meu décimo-terceiro ciclo lunar, os
sacerdotes do deus-cão bateram à nossa porta para informar que eu deveria
participar da seleção daquele ano. O senhor
meu pai se demonstrou muito alegre e orgulhoso, ofereceu-lhes uma peça de prata
cartaginesa e convidou-os para entrar.
Os três homens, já bastante idosos, talvez com mais de quarenta ciclos,
após uma certa hesitação, concordaram e celebraram um breve ritual diante do
altar de nossos Lares, mas não aceitaram nada de beber ou de comer. Kersha e Hirsha, minha senhora mãe, pareceram
mais ansiosas do que satisfeitas, mas me prepararam cuidadosamente para a
ocasião solene.
Diante de uma vasta congregação, eu e mais onze jovens da
minha idade fomos levadas ao altar, vestidas com simples trajos de linho,
descalças e com as cabeças descobertas. Por entre cânticos e proclamações
sacras, sentamos em fila, de pernas cruzadas, como nos haviam ensinado e o deus-cão
foi trazido à nossa presença. Ele nos
cheirou e apalpou, lambeu meu rosto e os de outras mais. Cinco foram retiradas, os cânticos se
repetiram e o deus voltou a examinar as sete restantes; novamente nos apalpou e
ao ser retirado, os sacerdotes examinaram as que tinham as roupas mais sujas e
rasgadas e selecionaram três de nós, eu e mais duas. Depois disso, com mais cânticos e homilias,
permitiram que nossos pais nos levassem consigo. Por alguns dias, houve grande expectativa em
nosso lar.
Finalmente, os três sacerdotes retornaram, acompanhados
por todo o concílio, as dançarinas e os escravos do templo e anunciaram que eu
havia sido escolhida para o sacrifício.
Como vira anteriormente, usando uma
túnica simples de linho, descalça e com a cabeça descoberta, fizeram-me
subir a uma liteira aberta, transportada por quatro escravos e fui transportada
para o templo, sem aclamações, sob os olhares curiosos e apreensivos da
multidão parada ao longo das calçadas ou nas aberturas das casas. Somente os sacerdotes e as dançarinas
entraram pela grande portalada. A
liteira foi deixada ao pé da escadaria e eu fui empurrada gentilmente para
subir a pé. Fui banhada, meu corpo
esfregado com óleo santo, depois fui alimentada e revestida de uma túnica
simples de lã, tudo isso em total silêncio, mas com o máximo respeito. O deus apareceu, peludo e negro, muito maior
que eu recordava, farejou-me, lambeu-me as mãos e se afastou.
Depois me deram a beber uma tisana levemente amarga e
dentro de poucos instantes perdi todo o controle de meu corpo. Agora, entre cânticos e suas prédicas
incompreensíveis, me ergueram e
colocaram de bruços sobre um leito de pedra, coberto apenas por um pano de lã. Percebi impotente que me erguiam a túnica até
a cintura e afastavam minhas pernas.
Então chegou o deus e me cobriu, suas patas em meus ombros, resfolegando
e lambendo meu pescoço. Senti que se
movia sobre e então dentro de mim, sem me provocar a menor sensação. Então ouvi um ruído rascante, o deus ganiu,
estremeceu algumas vezes e tombou inteiramente sobre mim, enquanto um líquido
quente e espesso me recobria o pescoço, os ombros e os cabelos. Respirei um odor forte e metálico. Logo
depois, o deus se retirou para retornar logo em seguida, agora maior e mais
pesado. Senti que me penetrava mais
profundamente e após um período indeterminado, percebi que algo quente era
derramado dentro de mim, antes mesmo que esfriasse o líquido que recobria meus
cabelos.
Logo depois, perdi toda a consciência. Na manhã seguinte, fui retirada do leito de
pedra e levada para um tanque circular.
Percebi que havia recobrado todo o controle de meus membros, mas as
escravas insistiam em me movimentar, lavaram-me completamente, e senti que
retiravam uma espécie de rolha de cera da saída de meu ventre. Meus cabelos foram limpos de todos os grumos
acastanhados, senti de novo levemente o cheiro metálico. Vestiram-me outra vez com uma túnica de lã,
fui alimentada e cortejada, depois dormi quase todo o dia.
Quando a noite se aproximava, deram-me de novo a
beberagem mística e percebi que era levada novamente até o leito de pedra. Não senti o deus pequeno, nem nada se
derramou sobre meu pescoço e meus ombros.
Mas chegou o deus grande e novamente senti que me cobria, até o líquido
quente me preencher. Desta vez percebi
quando a rolha de cera era colocada em meu corpo. Então me transportaram para um leito macio e
só me acordei no dia seguinte, quando outra vez me banharam e me ungiram. A mesma coisa ocorreu pelos cinco dias
seguintes dessa lunação. Eu me acostumei
a esperar pelo deus grande, mas quando indaguei sobre o deus menor, foi-me dito
que o seu sangue já fora aspergido sobre o povo com hissopos e sua carne
consumida pelos homens Sicanos. Nada
mais perguntei, algo na bebida ou no alimento que me administravam me
conservava meio tonta e sem ânimo.
Completados aqueles sete dias, a alimentação mudou e
minha disposição me permitiu andar e mover-me à vontade. Escravas e sacerdotes me acompanhavam sempre
e percorria todas as dependências do templo, mas não me era permitido sair nem
receber visitas. Mostraram-me uma prensa
em que eram moídos os ossos do deus morto, para serem ritualmente espalhados
pelos campos e um tanque em que fora fervido o lençol sobre o qual eu estivera
deitada, a fim de retirar todo o sangue, que fora mantido morno até a manhã
seguinte, evitando que se coagulasse antes da aspersão ritual para a
purificação do povo. Ao longo das
paredes das câmaras interiores, avistei pendurados centenas de pelegos negros,
conservados os crânios e as patas dianteiras das antigas encarnações do
santísimo deus Krimisos, algumas delas tão velhas que já se desmanchavam e
finalmente fui levada a um quarto onde encontrei uma cadela negra amamentando
seus filhotes e fui encorajada a tocar nas crias, até que um machinho começou a
me sugar um dedo, diante das aclamações de júbilo dos sacerdotes e das
escravas.
No final da lunação, o mal das mulheres não havia
aparecido, mas mesmo assim, fui drogada e levada ao leito de pedra onde o deus
grande novamente me cobriu durante os sete dias da fase lunar. Devido às tisanas que me serviam, somente aos
poucos percebi o que estava ocorrendo.
Novamente tive liberdade durante as três fases seguintes e no final da
lunação, ao perceberem que a maldição feminina não havia retornado, todos se
rejubilaram e se ajoelharam perante mim, chamando-me de Santa Cadela.
No dia seguinte, ainda de madrugada, vestiram-me com a
caríssima seda de Cos, calçaram-me os pés com sandálias de couro vermelho, com
tiras de tecido púrpura entrecruzadas e amarradas atrás dos joelhos, deram-me
um colar, uma profusão de anéis, braceletes e tornozeleiras e colocaram uma
tiara de ouro em minha cabeça, imitando as folhas do raro loureiro. Trouxeram-me o cãozinho negro que me havia
chupado o dedo, tomei-o nos braços e me disseram que era a reencarnação de
Krimisos, o novo cão sagrado. Levaram-me
à carruagem e foi iniciada a procissão, enquanto as dançarinas executavam suas
danças sacras e o povo me aclamava com o mesmo estardalhaço que já ouvira tantas
vezes: “Cadela! Cadela! Santa Cadela! Cadela bem-aventurada!” e
exclamações parecidas. Eu e o
animalzinho manso no meu colo éramos a prova viva de que as colheitas seriam
abundantes esse ano, de que as cabras e ovelhas teriam muitas crias e que, talvez,
poucos Sicanos morressem da febre do mar nesse verão.
Fui levada até a casa de meus pais e recebida na maior
exultação. Para minha surpresa, Kersha
usava uma túnica de linho, atara os cabelos e trazia sandálias de couro cru em
seus pés, caminhando nelas um tanto desajeitada pela falta de prática. Porém um rapaz bastante simpático me
aguardava, disseram-me ser meu noivo e que seu nome era Shimsha. O casamento se celebrou dentro de três dias,
com grandes festividades e as maiores bênçãos dos sacerdotes. Com exceção da guarda das fronteiras e das
muralhas, todos os habitantes participaram, inclusive os escravos e até mesmo
nossos vizinhos Micenianos.
No final da fase lunar, celebrou-se o grande banquete em
frente ao templo de Krimisos, Shimsha muito orgulhoso a meu lado, pois já me
havia visitado quatro ou cinco vezes desde a celebração da boda. Mas isto já
foi descrito em ocasiões anteriores.
Mudei-me para a casa de Shimsha, muito menor que a nossa,
mas bem equipada e guarnecida. Quando
meus pais e meus irmãos morrerem, talvez eu volte para meu antigo lar. Fora também o lar de meus avós, mas Hirsha
não tinha irmãos e Kersha fora amaldiçoada, de modo que herdou a casa em breve
tempo. Como foi dito, a bruma do mar
destrói a vida dos Sicanos em curto prazo.
Kersha, agora redimida desde que eu mesma me tornara a Cadela, não mais
era escrava e nem amaldiçoada, viera morar conosco e trouxera consigo seus três
filhos menores.
Temos apenas três escravas. Shimsha me prometeu ficar apenas comigo até o
quinto mês de minha esperança. Nos meses
finais ele visitaria as escravas, porém me garantiu que me queria acima de
todas e que somente as visitaria até saber que estavam prenhes. Como em nossa casa, Kersha as examinava e
determinava seus períodos férteis e o resultado das visitas. Depois que o filho do deus-cão nascesse, ele
voltaria apenas para mim, a fim de garantir a continuação da própria
estirpe. Meu nenê ainda não tem nome, dá
má sorte mencionar seu possível sexo ou um nome que o possa indicar.
Kersha e eu nunca comentamos, sequer entre nós, o que
ocorre nos rituais sacrossantos do bendito Krimisos, nosso cão sagrado, patrono
e protetor de Érix. Porém nós duas
sabemos.
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Encontrei a primeira alusão a
esta religião primitiva e anterior ao paganismo greco-romano no livro Turms, o
Etrusco, de Mika Waltari, embora apenas de passagem. Pesquisei citações esparsas em vários autores
clássicos, mas a maioria dos detalhes foram fornecidos por Dionisos Sículo (que
era grego e nao Sículo) e especialmente em Johannes Tzetzes, o grande
mitóstego, em sua extensa obra, as Ante-Homérica,
que naturalmente só consultei através de traduções. Mas todos os detalhes referentes à escravidão
e aos peculiares rituais de Érix são históricos, inclusive a escolha de nomes
próprios, de fato Fenícios ou Cartagineses.
Naturalmente, sendo escrita segundo o ponto de vista da protagonista,
seus sentimentos e ideias tiveram de ser elaborados. Os Micenianos são antepassados dos Helenos ou
Gregos, que toleravam esses rituais sem deles participarem, na verdade muito
menos tétricos que as religiões sangrentas de Moloch de Cartago ou de Scylla e
Charibdis, cultuados pelos habitantes do estreito de Messina. Mais tarde, os Romanos suprimiram todos estes
cultos, particularmente a partir da queda de Cartago e depois da imposição do
culto da Deusa Roma e do Deus Imperador durante o domínio de César Augusto.
Mesmo autores clássicos comentam que os mitos do Minotauro e de Leda e o Cisne,
com a geração de Helena e seus irmãos, provavelmente remontam ao período
pelásgico, anterior à chegada das quatro tribos dos Helenos, já que o paganismo
greco-romano não incluía práticas de zoofilia, mesmo sendo apenas figuradas.
Ainda assim, os mitos foram abrandados, afirmando-se que estes animais eram
somente transformações de Zeus, em sua cobiça constante por mulheres
humanas. As ruínas de Érix provavelmente
se encontram no Cabo Boeo, perto da atual cidade de Marsala.
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