O
CÃO SAGRADO
Esta não é uma história
infantil. Embora estritamente de
caráter histórico, mesmo sendo um episódio pouco conhecido, inclusive com o
emprego de nomes originais fenícios ou cartagineses, certos pormenores sobre a
escravidão e rituais primitivos poderão causar a alguns um certo desconforto. Portanto, recomendamos empregar seu próprio
critério antes de encetar ou continuar a leitura.
Capítulo
Primeiro – 7 junho 2021
Krimisos, o deus-cão, é o
nosso patrono e protetor.
Érix
é a cidade mais ocidental do mundo civilizado.
Localiza-se justamente no promontório que se projeta contra o Mar
Cartaginês da ponta oeste da Sicília.
Desde tempos imemoriais foram
aqui erigidos os templos de Krimisos e de Tanit, a deusa-mãe cartaginesa. Mas Krimisos é o deus mais antigo, que
fecundou sete ninfas e se tornou o pai de todos os Sicanos. Os Micenianos orientais, que chegaram bem
mais tarde, não cultuam nosso deus e reconstruíram e ampliaram o templo
abandonado de Tanit, transformando-o em um santuário de sua própria deusa
Astarte, que também chamam de Aphrodite, o qual hoje alcança grande fama e é
objeto de peregrinação de toda a ilha, desde a estrada do norte, a partir de
Himera e da estrada do sul, que se inicia em Akragas. Contudo, muitos chegam igualmente desde
Siracusa, geralmente indo de barco através do estreito até Himera, já que a
margem sul da ilha é ainda mais perigosa que os redemoinhos, pois os
comerciantes Fenícios tendem a afundar a maior parte dos barcos rivais, a fim
de manter em segredo as suas rotas marítimas até Massilia e seus entrepostos
comerciais na Gália, Hispânia, Gétula e Numídiia.
Mas
tudo isso eu só vim a saber mais tarde.
Muito se aprende e pouco se recorda em nossos primeiros anos. Minha primeira lembrança nítida provém da
metade de minha primeira septríade, eu deveria ter então mais ou menos quatro
anos. Um dia, minha atenção foi
despertada, juntamente com a dos escravos, de meus pais e das demais crianças,
pelo estrondo de tambores, pífanos e adufes na rua que passava em frente à
nossa casa, que mais tarde vim a saber ser a avenida principal que conduzia
diretamente ao templo do Cão Divino.
Chegamos
à sacada, enquanto os escravos se aglomeravam junto à soleira da porta. Um grupo de sacerdotes tocava os
instrumentos, enquanto os escravos do templo atrelados a uma carruagem puxavam
uma mulher vestida com a custosa seda de Cos, no Mar Fenício, coberta de jóias,
com sandálias de couro vermelho nos pés, presas em tiras de pano de púrpura
entrecruzadas e amarradas atrás dos joelhos, trazendo na cabeça uma tiara de
ouro em formato de folhas de louro, uma árvore muito rara na Sicânia. O povo a aclamava com grande estardalhaço:
“Cadela! Cadela! Santa Cadela! Cadela bem-aventurada!” e
saudações semelhantes. Mas o que mais me
chamou a atenção foi um animal negro e peludo no seu colo, que eu não recordava
de ter visto antes.
Perguntei
o que era. “É a Sagrada Cadela, a
abençoada do Deus Krimisos! Teremos boas
colheitas este ano e as cabras e ovelhas se reproduzirão!” Fiquei confusa e repeti a pergunta: “Não, o
que é aquele bicho?” As pessoas me olharam sem compreender. “Aquele animal preto,” insisti. Os escravos viraram o rosto, porém minha mãe
explicou: “És ainda muito pequena para saber dessas coisas. É o deus-cachorro, que vai nos proteger
durante este ano.” Fiquei ainda mais
confusa, pois já escutara de passagem referências a Krimisos, o deus-cão, mas o
que era um “deus-cachorro”? Contudo, minha mãe me fez sinal para aguardar em
silêncio enquanto a procissão passava alegremente.
É
provável que ela pensasse que eu tivesse esquecido ou então fingiu que assim
pensava. Mas Herkle, meu pai, que sempre
me deu atenção e demonstrou carinho, explicou melhor: “Ele cresce, Azyadê,
minha querida e dentro de alguns meses será o deus-cão adulto.” “E a moça?” – me animei a perguntar. “Ela foi abençoada e traz no ventre a cria do
deus. Está sendo levada de volta para a
casa de seus pais com toda a honra e respeito que merece.” Depois disso, minha mãe me olhou de forma tão
severa que não me atrevi a perguntar mais nada.
Afinal, eu era ainda pequena e fui brincar com meus dois irmãos e
Helkiss, minha irmã mais moça.
Alguns
meses depois, nova agitação percorreu a rua.
Fomos todos observar, com antes.
Novamente os sacerdotes tocavam seus instrumentos, mas ao invés de uma
carruagem, era apenas uma liteira descoberta, transportada por quatro
escravos. Em pé, segurando-se a uma ripa
atravessada na parte dianteira, seguia outra mulher, porém descalça e de
cabelos soltos e usando uma simples túnica de linho de uso diário entre as
Sicanas. O povo desta vez não aplaudia,
apenas a olhava, certamente com respeito, mas com expressões de dúvida e de
preocupação. Indaguei, naturalmente e
minha mãe respondeu: “Ela é o sacrificio para o deus-cão” e não disse nada
mais, porém vi em seu rosto uma expressão estranha, que nunca esqueci e só mais
tarde interpretei como sendo um misto de inveja e de rancor.
A
cada ano se repetiam ambos os cortejos.
Certo dia, percebi pela primeira vez que meus pais estavam retornando da
rua, com suas vestes de linho marcadas de manchas castanhas. Nada perguntei, porém Herkle, meu pai
amoroso, vendo a curiosidade em meus olhos, falou em um tom de orgulho: “É o
sangue do deus-morto, querida, para nos abençoar durante todo o ano.” Minha
confusão só fazia aumentar, quando meus pais tiraram as túnicas e as penduraram
com toda a reverência. Uma semana
depois, fomos todos chamados, escravos e crianças, para assistir enquanto as
túnicas eram queimadas no altar dos Lares e depois as cinzas recolhidas. Desta vez foi minha mãe que me informou:
“Vão ser espalhadas em nossos campos, querida...”
Kersha,
a Maldita, era a principal escrava e supervisionava o trabalho de todas as
demais, embora ela mesma realizasse boa parte dele. Ela vestia somente uma túnica solta de
estamenha (estopa), os cabelos sempre soltos e os pés descalços, inverno e
verão. As demais escravas usavam vestes
de algodão grosseiros e tamancos nos pés, muitas delas amarravam os
cabelos. Pensei que a estranha
indumentária de Kersha fosse o sinal de sua posição superior. Ela mantinha um controle firme sobre as
demais escravas e trazia à cintura um pequeno azorrague de três pontas. Quando alguma escrava nova a desobedecia ou
mesmo se atrevia a tratá-la de “Maldita!”, ela a espancava até a submissão, com
total aprovação de meus pais.
Kersha
passava permanentemente grávida. Tivera
já muitos filhos e apenas dois haviam morrido.
Tais crianças tinham permissão para brincar conosco, o que não acontecia
com os filhos dos demais escravos. Um
dia dei falta de Melkari, o mais velho e indaguei se estava doente. Minha mãe me olhou de forma estranha e disse
que ele fora vendido. “E Kersha permitiu?” “Em nossa casa, o único a permitir
ou negar alguma coisa é Herkle, o senhor teu pai.” Assunto encerrado.
Mais
tarde, encontrei Kersha sozinha e lhe perguntei se não se importava que Melkari
tivesse sido vendido. Ela suspirou. “Ele não foi o primeiro, querida, meus dois
mais velhos também já foram assim que completaram sua primeira septríadre. É o costume...” “Mas por que?” – eu
explodi. “Por que você não protesta?”
Ela olhou ao redor, para confirmar que estávamos sozinhas. “Escute, querida, meus filhos são escravos
como eu. O amo é muito bom para nós e escolhe
cuidadosamente os compradores. São
apenas boas familias Sicanas como a nossa... digo, como a tua. Eles não são espancados nem molestados e ao
completarem a segunda septíadre serão aceitos no exército. Que melhor destino podem esperar os filhos da
Maldita?”
“Mas
e por que te chamam de Maldita?” “Isso não posso jamais lhe dizer, caso
contrário, meus filhos não serão apenas escravos, porém malditos como eu...
Portanto, nunca mais toque nesse assunto comigo. Pergunte a Hirsha, a senhora
sua mãe, ela pode lhe explicar, caso o deseje.” “Minha mãe nunca me diz nada...
Vou perguntar ao pai.” “Não faça isso!”
– Kersha exclamou alarmada. “Ele poderá
me expulsar de casa para o alojamento dos servos do campo ou talvez me
vender! Não pergunte porquê!” E deu-me as costas, deixando-me sozinha,
balançando ao caminhar, já no final de sua prenhez mais recente.
No
dia seguinte, tomei coragem e fui conversar com minha mãe. Ela me encarou atentamente e depois disse,
quase que num desabafo: “Acho que já tens idade suficiente. Kersha foi rejeitada pelo deus-cão. Os sacerdotes a trouxeram de noite para a
casa de nossos pais, assim como está agora, vestida de estamenha e descalça. O normal é que as Malditas sejam entregues a
nossos primos selvagens, os Sículos, que moram nas serras do interior da ilha
ou então sejam vendidas a preço vil para os Fenícios ou os Tirrenos que as
levam só os deuses sabem onde. Porém
nossos pais se decidiram a conservá-la,
já suspeitavam de que isso acontecesse, pois ela fora sacrificada três meses
antes e em geral as Santas Cadelas são devolvidas depois de dois meses.”
Só
então reparei na perfeita semelhança entre os olhos grandes de íris douradas de
Kersha e os de minha mãe. Indaguei: “Por
que a senhora disse “nossos pais”?
“Kersha é minha irmã mais velha, ainda não havias percebido?” Fiquei muda com o choque, mas ela continuou,
mesmo assim: “Conservá-la como filha amaldiçoaria também a casa inteira. Nosso pai confabulou com os sacerdotes e
mediante um pagamento de sete peças de prata cartaginesa, eles concordaram em
retirar a maldição de sobre nós.
Derramaram três odres de azeite sobre a soleira e o pincelaram no
umbral, nas folhas da porta e nos marcos; depois sete odres de vinho e finalmente,
doze odres de água pura retirada da fonte sagrada do deus-cão.”
“Quer
dizer que Kersha é minha tia?” – balbuciei, assombrada. “Nada disso!
Com a maldição deixou de ser minha irmã e só foi permitido que
permanecesse conosco na condição de escrava, mas a Maldita é só ela, seus
filhos só partilham da escravatura. Mas
ela deve ter o máximo de filhos escravos para compensar a rejeição do deus. É
verdade que ela afirma que seu filho mais velho é cria do deus-cão, mas ninguém
a leva a sério. E é por isso que ela
deve andar descalça, de cabeça descoberta e vestida de estamenha, faça calor ou
faça frio e é muito mais do que ela merece.”
“Mesmo assim...” “Tu não entendes, não é mesmo? Por causa dela eu nunca pude ser apresentada
ao deus para a escolha do sacrifício!...”
“Mas meus primos...” “Não são
teus primos, são filhos da Maldita, que é visitada regularmente pelos escravos,
que não são de nossa raça, uma vergonha, mas é o que a lei canina
determina. Já falei demais. Espera completar tua primeira septíadre no
fim deste ciclo lunar e então o senhor teu pai te instruirá. Mas Kersha não é tua tia! É apenas uma
escrava privilegiada em nosso lar!...”
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