quinta-feira, 1 de outubro de 2020

 

 

A FADA ARANHA -- Primeira parte de 4

(Conto fantástico original de William Lagos, 10 out 14, embora contenha os habituais elementos dos contos de fadas e leves homenagens a Alighieri e a Borges.  Esta história foi sonhada em partes durante duas noites. A “água de angústia” é citada na Escritura Sagrada.)

 

A FADA ARANHA I

 

Era uma vez, em um país distante,

uma pobre mulher, que nem sabia

se era casada ou ficara viúva;

de seu marido só recebera a luva

de ferro, que era então chamada “guante”,

e fora achada no campo de batalha...

Com grande brio ao inimigo espalha

perante o si o garboso Leothar,

o exército do rei a comandar,

numa vitória que ao reino salvaria!...

 

Diziam alguns que Leothar era prisioneiro;

outros falavam que, sendo canibais

seus inimigos, fora preso e devorado;

mas o certo é que não fora achado;

e por ter raiva dele, o tesoureiro

suspendera o seu soldo, por despeito

e à viúva negara qualquer direito:

não merecia o soldo por lutar

e nem pensão por um vivo iria pagar,

amparado em certas leis imemoriais...

 

O próprio rei por Leothar nutria inveja,

pois entre as tropas era muito popular;

e algumas vezes, até perdia o sono

pelo temor que lhe tomasse o trono,

já que seu próprio avô, como se enseja,

tomara o trono a seu rei anterior;

e Leothar, com todo esse valor,

descendia da antiga dinastia

em linha direta, como se dizia,

e se quisesse, o poderia derrubar!...

 

Isto ocorreu, de fato, em muito império

e assim Belezzar apoiou seu tesoureiro,

embora muita gente intercedesse

que à esposa e à filha concedesse

alguma soma como um refrigério:

para Leora e sua filha, Leodiceia,

até que fosse concluída essa epopeia;

mas disse o rei que só depois de sete anos,

se o general não voltasse, eram seus planos

declará-la viúva e lhe pagar o soldo inteiro.

 

A FADA ARANHA II

 

Secretamente, com o tesoureiro combinou

que espalhasse pelo reino uns espiões

e se acaso o guerreiro retornasse,

traiçoeiramente qualquer deles o matasse

e que seu corpo lhe enterrassem ordenou;

Leora, afinal, era apenas a sua mulher

e não teria pretensão sequer;

porém incômoda seria Leodiceia,

da dinastia descendente, ao que se creia:

para matá-la precisaria de boas razões...

 

Contudo Leora conseguiu uma audiência

com a rainha Belegilde e a comoveu,

que deu-lhe emprego, por pura caridade:

não mais do que servente, na verdade,

mas garantia de sua subsistência;

entre os criados teve alojamento,

para si e a filha a certeza do alimento;

e Belezzar com a esposa concordou,

e desta forma a rival inocente conservou

sob suas vistas, depois que a recebeu.

 

Partiu Leora então para o castelo,

a carregar as poucas coisas que possuía

em duas trouxas, incluindo o guante,

levando a filha pela mão adiante,

longa alameda subindo nesse zelo;

de ambos os lados bandeiras drapejavam

e como símbolo heráldico mostravam,

vista de costas, grande aranha vermelha,

sobre campo amarelo qual centelha,

“goles” e “jalde”, conforme se dizia.

 

Leodiceia foi indagando pela estrada:

“Por que essas aranhas, mamãezinha?”

“São os símbolos do reino, minha querida:

a aranha em goles a vitória garantida,

o campo em jalde a riqueza acumulada.”

“Mas nunca vi qualquer aranha vermelha...

Tenho até medo dessa aranha velha!”

“Vou-lhe contar então grande segredo,

mas nunca fale a ninguém, por maior medo,

especialmente nem ao rei, nem à rainha...”

 

A FADA ARANHA III

 

“Essa aranha provêm da antiga dinastia:

pintada no escudo do avô desse seu pai,

que foi derrotado pelo avô do atual rei,

que ocupa o trono contra nossa lei;

pela justiça, Leothar se assentaria...

Essa aranha lhe pertence, minha querida,

mas se souberem, será perseguida:

embora seja somente uma criança,

à pretensão de reinar tem esperança

e pela aranha grão respeito mostrar vai!...”

 

Ficou a menina muito surpreendida

e prometeu não contar nunca o segredo,

grave silêncio a guardar pelo caminho.

O mordomo encarou-a, com carinho:

“Essa é a filha do general perdido?

Decerto será muito corajosa...”

Porém ficou Leodiceia silenciosa;

em um quartinho as duas se alojaram;

como era tarde, logo se alimentaram,

Leodiceia dormindo sem ter medo...

 

No outro dia, Leora recebeu

um uniforme, balde e os utensílios

adequados às suas novas funções;

a menina a conquistar os corações

e Leora logo confiança mereceu,

encarregada de lavar os corredores

e a encerá-los com belos esplendores,

seu trabalho fielmente a executar,

sem por um único momento se queixar,

deixando os pisos em luzentes brilhos...

 

Contudo, já passada uma semana,

iniciando a trabalhar de madrugada,

viu uma aranha correndo para ela

e sem pensar, com a vassoura bateu nela:

matando o artrópode, escuro como lama!...

Seguiu varrendo, misturando-a ao lixo,

horrorizada com o tamanho de tal bicho!

Então surgiram dois criados, que indagavam

se ela vira o animal que procuravam...

“Eu a matei...” – disse Leora, descansada.

 

A FADA ARANHA IV

 

“Você a matou?  Matou a aranha do rei?”

Os dois criados mal podiam acreditar!...

“Por que, fiz mal? – disse ela, surpreendida.

“Era a mascote do rei!  Decerto com sua vida

irá pagar por quebrantar-lhe a lei!...”

Nesse momento, entrou pela janela

o primeiro raio de sol; e só então ela

viu ser vermelha a aranha que matara!...

Em vão protestou que ela a atacara:

foi amarrada para ante o rei se apresentar...

 

Belezzar só apareceu daí a uma hora,

deixando Leora a esperar, acorrentada,

só aos poucos compreendendo o que fizera,

ao ver a consternação que o ato gera...

Primeiro ao rei apresentaram uma senhora:

“Você deixou a minha aranha se escapar?”

“Sim, Majestade,” disse ela, a balbuciar.

“Foi a redoma que caiu e ela fugiu,

chamei os servos e a gente a perseguiu,

quando a achamos, já fora assassinada!...”

 

“A culpa é sua e por tal negligência

você será executada ao entardecer!...”

Levaram a mulher ainda a implorar...

Para Leora então voltou-se Belezzar,

seu rosto triste a demonstrar paciência.

“Minha filha, por que tal crime cometeu?”

“Pensei fosse daninha!  Nunca me ocorreu

que ainda existisse essa aranha vermelha;

pensei que fosse tão só uma lenda velha...

Ela atacou e apenas quis me defender!...”

 

“Até compreendo que com ela se assustou,

mas tais aranhas são mansas e cuidadas

há gerações, como símbolos do reino;

entendo que apenas começou seu treino:

foi o mordomo que nada lhe explicou!...”

E ordenou que cinquenta chibatadas

ao entardecer, lhe fossem aplicadas.

“Mas o que farei com você, a assassina?”

“Majestade, apiade-se de minha sina:

Nunca pensei que aranhas fossem consagradas!”

 

A FADA ARANHA V

 

“Elas garantem da dinastia a continuidade!...”

disse-lhe então, em tom tristonho, Belezzar.

“Só que agora elas se encontram em extinção!

A última fêmea você matou, sem ter razão!...

Compreende de seu crime a enormidade...?”

“Não, Majestade, de fato, nem pensei:

tive um impulso e com a vassoura a esmaguei...”

“Entendo bem, mas não a posso perdoar;

por negligência, irei aos outros castigar;

quanto a você, vou meu Conselho consultar...”

 

“E seu castigo só depois determinar.

Nunca antes foi tal crime cometido

e nem calculo qual será a sua tortura;

será levada à prisão de mais agrura:

pela manhã a mandarei buscar...”

“E minha filhinha?  Quem vai dela tomar conta?”

“Essa é sua preocupação de menor monta...

Mas aproveite para rezar bastante

e se prepare para um ordálio delirante,

que o reino inteiro você deixou comprometido!”

 

De sua cela, ela escutou as chibatadas

nas costas do mordomo desferidas;

da ama da aranha a execução por negligência,

a suplicar de pavor e de impotência...

Muito mais que das torturas esperadas

ela chorava por sua filha Leodiceia;

somente as pedras das paredes sua plateia...

Somente em vão ao carcereiro suplicou

notícias da menina, quando este lhe entregou

seu pão e água e saiu sem despedidas...

 

No dia seguinte, levaram–na até o rei

e então Leora ajoelhou-se, tiritando...

Um fora espancado, a outra enforcada!

A que castigo seria ela condenada?

“Sei crime é grave e não a perdoarei,”

disse-lhe Belezzar, “mas não é crime de morte:

há três maneiras de expiar sua sorte:

primeiro, pode se casar com o macho velho!”

“Mas sou casada, senhor!...” “O meu Conselho

sua viuvez já está considerando...”

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