FRECHAS DE AMOR I – 14 MAI 2019
Certo dia me contaram que uma freira
(de meu conhecimento) declarava
que amor é coisa que nos começava
pelos olhos e então descia, bem certeira,
para o nariz e a boca, qual ligeira
frecha que um anjinho projetava;
de algum deusinho certamente não falava,
pois tal seria a blasfêmia derradeira!
Porém da boca descia na garganta,
até fazer palpitar o coração
e mais abaixo, sorrateira, adentre,
até que um dia, isto em nada nos espanta,
se viraria em meiga cabecinha,
a espiar para nós do baixo ventre!
FRECHAS DE AMOR II
Claro que usou de algumas artimanhas,
sem dizer, afinal, por A mais B,
mas o que significava bem se vê,
por entre os artifícios e as patranhas...
Seria a frecha de amor somente as manhas
dessa luz que nas retinas se prevê,
uma visão tão bela que se crê
impossível escapar-se de suas sanhas!...
Mas nesse caso, como um cego ama?
Sem alfinetes a perfurar-lhe a vista,
na escuridão sem luz, como a conquista
poderia alcançar quanto reclama?
Não só dos olhos vem-nos a visão,
igual enxerga o palpitar do coração!
FRECHAS DE AMOR III
Já para mim, amor é mais perfume,
não a essência que nos vende o boticário
ou no supermercado algo mais vário,
odor de qualquer flor que venha a lume...
Muito mais forte é esse odor que rume
da própria pele da mulher, igual sudário,
de que procuram, num gesto atrabiliário,
esconder em castidade o seu acume.
Menciono o cheiro totalmente feminil,
melhor que a flor, mais de ouro que ouropel,
nossas narinas assaltando em dom de mel...
Recende o beijo em ardor primaveril,
em tal leveza que nos faz lacrimejar
e só então é que se espelha pelo olhar!
O RIO DA VIDA I – 15
MAIO 2019
Cada um de nós
percorre um rio na vida:
começa estreito, na
primeira infância,
depois se alarga em
pertinaz instância,
sobre os seixos e
calhaus perfaz sua lida...
Algumas vezes, a
água é recolhida,
nas almas fortes a
borbulhar com ânsia,
de outras feitas,
afluentes em constância
vão aumentando seu
fluxo e a descida.
Em certos casos,
despenca em cataratas,
como doença que o
leva ao hospital,
mas geralmente, desce
apenas, sem parar,
mansamente, a cortar
campos e matas,
até o momento que
encontra o seu final,
quando se lança,
enfim, no grande mar.
O RIO DA VIDA II
O ocorre depois,
quem saberá?
Vão-se as gotículas
apenas misturar
com outras mil já a
sobrenadar
ou algum núcleo do
rio persistirá?
Será que as águas
algum peixe beberá
ou um elasmobrânquio
a dominar?
Um tubarão que se
venha abeberar,
suas cartilagens
nosso rio amparará?
Ou é algum
cachalote, orca, baleia,
esses mamíferos de
ampla flutuação,
que os oceanos tanto
tempo dominaram?
Ou qualquer alevim
na imensa veia
de mil cardumes em
vasta multidão,
que até
quanticamente nos tragaram?
O RIO DA VIDA III
E caso crermos que
haverá reencarnação,
dessas águas do rio
final essência,
para que corpos
seguirá toda a potência,
após suas vidas de
tão curta duração?
Será que os peixes
como iguais a nós virão,
com a sua agilidade
e inconsequência
ou será a morsa,
imersa em complacência
ou em nós
reencarnará um tubarão?
Ah, rio da vida, que
corre sem parar,
alegremente em busca
de seu fim,
quantos de nós
quereriam represá-lo?
Mas em tal dique se
iria estagnar,
toda a energia
evaporando, enfim,
até no fim
esgotar-se em estreito valo...
A PRIMEIRA MULHER I – 16 MAIO 2019
(Baseado em lenda dos ameríndios Mohawk norteamericanos.)
Houve um tempo em que a Terra era vazia
de gente humana, porém não dos animais;
havia insetos, musgo e outros vegetais,
porém nenhum ser humano ainda havia.
O povo antigo, de fato, já existia,
porém vivia em pastagens siderais,
povo do céu, habitações astrais,
que nem sequer o chão contemplaria.
Mas de tanto que passeavam pelo céu,
em suas caçadas ou em suas pescarias,
cortando lenha para suas refeições,
certos pontos se afinaram como um véu,
uma arapuca formando nessas vias
a quem passasse sem as devidas precauções!
A PRIMEIRA MULHER II
Ora, um dia, encerrado já o conselho,
o Grande Chefe foi o céu examinar,
devido a queixas que ali fora escutar,
andando rápido, igual a escaravelho!
De fato, já era um homem muito velho
e chegou aonde o céu fora afinar,
porém passou à sua direita, sem parar,
observando ao redor, como em espelho.
Assim cruzou por onde havia solidez,
deixando a faixa à esquerda, onde era fina,
ainda tudo a inspecionar sem negligência
e um relatório para seu conselho fez,
nada encontrando de perigosa sina,
embora tudo examinasse com paciência.
A PRIMEIRA MULHER III
Ao pagé mencionou seu resultado,
mas este não confiou no julgamento
e decidiu-se, no impulso do momento
a inspecionar também o assoalho alado.
Algum espírito talvez fosse perturbado!
Cabia a ele dar-lhe o provimento
e desculpar qualquer dichote violento
que ao espírito tivesse desgostado...
Chegado ao ponto em que o céu afinara,
ele passou pela esquerda, sem parar,
deixando à sua direita a artimanha;
e concluiu que por ali não encontrara
qualquer espírito que pudesse reclamar,
voltando à aldeia, em que narrou a sua façanha.
A PRIMEIRA MULHER IV
Porém o filho do Grande Chefe achou
por contestar o relatório desta feita
e uma nova inspeção foi então aceita:
já pelo piso do céu se encaminhou...
ora, o rapaz por muito tempo cavalgou
e com as pernas arqueadas já se ajeita;
a parte fina do céu bastante estreita
e com um pé de cada lado ele passou...
Ficou, no entanto, até desapontado,
nada encontrando para seu agrado,
com que pudesse contestar o pai...
Tudo era firme em tal pago do céu,
mas consolou-se, no conhecimento seu,
que o Grande Chefe ser um dia ainda vai...
A PRIMEIRA MULHER V
O Grande Chefe tinha também filha,
muito formosa, já núbil a donzela,
curiosa, a espiar pela janela
que uma visão da Terra lhe perfilha...
E por sua vez, empreendeu a mesma trilha,
até a faixa mais estreita, que lhe apela!
Seguiu direito, precipitou-se nela,
descendo à Terra, queda de uma milha!
Porém caiu em pé, numa colina
e os animais, felizes, a rodearam,
de Nova Mãe da Terra a apelidaram;
por entre rios e planícies viu o céu,
por entre nuvens brancas como um véu,
muito feliz ficando então essa menina!
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