sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

 

WHISTERIAS (GLICÍNIAS) I – 23 maio 2019

 

Volto à janela, de novo a contemplar

essa presença do verde sem floradas...

Mas outras flores brilham, encarnadas.

Por que o granizo busca apenas derrotar

essa glicínia de violeta apaziguar,

lágrimas roxas de seus ramos penduradas,

como nos olhos dos racimos consagradas,

qual em místico castigo a derrubar?...

 

Hoje é outono e compreendo, certamente,

que não é tempo de glicínia em floração,

porém o clima em descontrole se acha,

pois os ares se aquecem, de repente,

e muita flor já espia em seu botão,

só a glicínia ainda triste e cabisbaixa...

 

WHISTERIAS II

 

Contudo, em certos anos, amentilho

bem protegido sob a rama da folhagem,

resiste ao vento e da chuva à sua voragem,

qual se amarrado por arame em fio de atilho;

de pouco orvalho se assenhora o brilho,

quase não move ao bafo de uma aragem,

firme aguardando talvez sua reciclagem,

de minha glicínia o derradeiro filho...

 

De meus colegas sei que já morreu

a vasta maioria e os professores;

tantos rostos já não marcham pelas ruas...

Qual a folhagem que me protegeu

da geada e da tormenta em seus penhores,

ainda em meu ramo pendurado pelas gruas?...

 

WHISTERIA III

 

Como as glicínias, conservo-me ainda verde,

mas ao contrário delas, amo o frio,

quando no corpo mais me arde o cio,

quando a saraiva como bênção herde;

pois não me despetala e não se perde

o meu vigor, nem meu erguer adio,

sempre é o inverno que me amplia o brio

e me envigora, quando o calor me lerde.

 

Essas dores que se queixam ter no inverno

opostamente a mim assaltam no verão:

contra a alegria alheia é minha tristeza

e a brisa gélida para mim é um beijo terno,

dou largos passos, sem mais inquietação,

sem pender, qual o amentilho, em sua lerdeza!

 

AMOR EM TECLAS I – 24 MAIO 2019

 

Amor avantajado, nos olhos debruado,

Amor desmilinguído nos tímpanos do ouvido,

Amor adormecido nas gárgulas do olvido,

Amor semialcançado nos lábios relembrado...

 

Amor de belo ensejo no palpitar do beijo,

Amor no corpo havido em táctil sentido,

Amor nalma nutrido, marcado num gemido,

Amor de leve adejo que só nos olhos vejo...

 

Amor de beijo ardente, por mais indiferente,

Amor de malvasia no instante em que fazia

Amor de hipertensão nos palpos da emoção...

 

Amor quase inconsciente, que surge de repente,

Amor feito alforria no espasmo que sentia,

Amor sem condição em plena escravidão...

 

AMOR EM TECLAS II

 

Pois certamente amor é puro descontrole,

Quando se quer alguém bem mais do que se tem,

Amor feito azevém a balbuciar também

No coração atado, arfante como um fole!

 

Amor uma armadilha, no corpo inteiro bole,

Amor que vem do além e para o além nos vem,

Amor de bem e mal, de mal tornado bem,

De bem tornado mal, que inteiro nos engole!

 

Quem nalma não sentiu tal pura escravidão

Só passou pela vida, na vida não viveu

O amor que nos invade e tolhe a liberdade,

 

Porém nos alforria na mesma redenção,

A única razão que o corpo não morreu

Até cumprida a sina de toda a humanidade!

 

AMOR EM TECLAS III

 

E que seria de ti, sem ter amor?

Por isso tantos dormem nessa entrega,

Sem tal calor a vida não se apega,

Melhor deitar-se sob a terra, sem temor.

 

Mas é de ti que o amor brota em seu valor

E pouco importa que a amada seja cega

E pelo teu amor, amor algum te lega,

Em ti é que arde toda a brasa desse ardor.

 

Sempre é possível amor se distribuir,

Seja a parentes, a amigos, ao trabalho,

Ou mesmo às simples flores do jardim,

 

Embora tal amor que vem de nós fluir

Não seja aquela servidão de fino talho

Que eu sentiria, caso olhasses para mim!

 

MARATONAS NOTURNAS I – 25 MAIO 2019

 

Meus olhos correm, contudo não percebo

que sob as pálpebras não param de correr.

 

Em seu ergástulo, não o posso conceber,

Estou cativo e sinto-me em placebo.

 

Não eu mesmo verdadeiro, mas me embebo

De onírico fulgor e me vejo a percorrer

 

As hipnagógicas paragens de meu ser,

Das quais a origem e a fonte mal concebo.

 

Sei que me dizem que o movimento REM

Está a indicar de meu sonho a duração.

 

Para onde bate, então, meu coração?

Será que o eu do sonho vai também

 

Sonhar que está sonhando e seu olhar

Por sob as pálpebras não pare de ondular?

 

MARATONAS NOTURNAS II

 

Mais de uma vez, enquanto adormecido,

Os pampas de minhalma percorrendo,

 

Sinto no sono estar adormecendo,

Para sonhar no sonho ainda incontido.

 

Não sei se isso é comum, não tenho lido

Sobre sonhos intra um sonho acontecendo.

 

Mas é certo que nos meus vem ocorrendo

E então nem sei se permaneço recolhido

 

No espaço onírico, seja no inconsciente

Chamado coletivo por Jung, esse judeu,

 

Que contrariou a Freud, judeu e mestre seu

Ou se acaso me acordei na noosfera

 

Do bom padre Teilhard, que então me gera

Os pensamentos alheios no presente.

 

MARATONAS NOTURNAS III

 

Somente sei que meus sonhos são vibrantes

E dentro deles posso sempre dominar.

 

Se não me agrada para onde caminhar,

Lembro que é sonho nesses tais instantes

 

E modifico suas inflexões constantes

Para outro algo que me agrade vivenciar.

 

Por vezes, é igual que estivesse a partilhar

O mesmo sonho com parceiras cintilantes...

 

Nesses momentos é que pareço adormecer

Dentro do sonho, quiçá em devaneio,

 

Sem um impulso externo, não me acordo

Dos sonhos vívidos, iguais que em meu viver,

 

Tato, cheiro, sabor, brotando sem arreio,

De que minhas pálpebras demarcam o rebordo.

 

MARATONAS NOTURNAS IV

 

Seria vulgar, neste ponto, apresentar

A já multimencionada indagação:

 

Sobre se os olhos se abrem na ocasião

Da realidade ou em tal sonho singular.

 

Mas não sinto ser assim.  Venho acordar

Para o vento da rua e essa canção

 

Dos passarinhos no beiral desta mansão,

Modesta embora, mas verdadeiro lar.

 

Mas como saberei se os olhos correm

Por sob as pálpebras, se não olhar de fora?

 

Somente alguém a meu lado o pode ver...

E nesse dia em que meus olhos morrem.

 

Para onde irão os sonhos meus de outrora,

Sem mais retinas para percorrer?


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